sábado, 19 de novembro de 2011

2718) Cão do segundo livro (19.11.2011)




É uma dessas expressões bem nordestinas, equivalente a “cachorro da mulesta”, para qualificar um sujeito que está arrasando, que está botando pra quebrar. Um sujeito competentíssimo no que faz, sem rival, sem comparação. 

“Rapaz, esse Ayrton Senna é o cão do segundo livro... A caixa de marcha quebrou, e ele levou o carro até o fim só no muque!” 

"Meu amigo... aquele ponta-esquerda é o cão do segundo livro, recebeu dez bolas e cruzou todas dez na cabeça dos atacantes".

Fala-se no “cão chupando manga”, “cão chupando pena”, fala-se até no “raio da silibrina”, mas a discussão mais interessante é sobre a origem do “cão do segundo livro”. 

Minha primeira impressão foi de que o Cão seria o Diabo, e que o segundo livro seria o Novo Testamento. O tal termo de comparação seria portanto aquele Diabo melífluo e insidioso que leva Jesus lá em cima da montanha e diz: “Tudo isto será teu, se prostrado me adorares”, ao que Jesus responde, em aramaico: “Vôte, capirôto!”.

No Blog “Gandavos – Os contadores de histórias”, de Carlos Lopes (http://tinyurl.com/d9hnxld), discute-se a origem do termo. Um texto de Augusto Sampaio Angelim naquele blog, reproduzindo uma imagem da carta “O Diabo”, do Tarô, diz: 

“Usava-se a expressão ‘o cão do segundo livro’ em dois sentidos. Um de conotação negativa, quando se queria dizer que o indivíduo era ruim, feio ou horrível. Outro, positivamente, para identificar alguém como o melhor da turma, o melhor jogador, o mais astuto, o “tampa”, etc...” 

E o autor afirma que o poeta Soares Feitosa, no seu “Jornal de Poesia”, teria provado que a origem do termo era uma fábula moralista (em que o Diabo mergulha um rapaz no vício do álcool), que aparece no Segundo Livro de Leitura, de Felisberto de Carvalho, famoso livro didático que as gerações mais antigas estudaram na infância.

Essa informação coincide parcialmente com um artigo do pintor José Cláudio (Diário de Pernambuco, 23-2-1999), onde este também atribui a origem aos livros de Felisberto. Ele cita essa mesma imagem do Diabo do Tarô, mas com certo desdém, e afirma: “Cão, pra mim, é o do terceiro livro!”. 

O Terceiro Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho contém a imagem de um cão ameaçador. Esse artigo no DP reproduz ambas as ilustrações, do diabo e do cachorro, e de fato a imagem do cachorro é muito mais impressionante.

É curiosa esta hesitação entre os dois sentidos da palavra “cão” e o fato de dois livros do mesmo autor conterem ilustrações que podem ter dado origem ao termo. A menos (como sempre) que uma nova explicação apareça, engenhosa e plausibilíssima como costumam ser as explicações inventadas.






sexta-feira, 18 de novembro de 2011

2717) Armadilhas de hotel (18.11.2011)




Eu sou diferente da maioria das pessoas: adoro dormir em hotel. Muita gente se queixa da “impessoalidade” dos hotéis, mas é justamente disso que eu gosto. Gosto de ambientes impessoais, onde ninguém sabe quem eu sou, e posso ser tratado com a cortesia e a distância que se dedica a qualquer cliente, freguês, usuário. Hotel é a coisa mais democrática que existe. Ninguém está me tratando bem porque eu sou eu, está me tratando bem porque tem o compromisso de tratar bem qualquer hóspede. (Estou falando dos bons hotéis, é claro. Que são muitos.)

Mas hotel é um lugar perigoso danado. Uma vez, eu estava fora do Brasil, sozinho, e saí para tomar umas cervejas. Ao retornar para o hotel de madrugada resolvi tomar um banho. Era uma daquelas banheiras de chão recurvo, e quando isso se juntou com o sabonete e a espuma do xampu, não precisou nem o efeito da cerveja para me fazer escorregar e cair com toda força. Sofri uma fratura no crânio e meu corpo só foi encontrado na manhã seguinte, quando a arrumadeira passou no corredor e viu a água saindo por baixo da porta do quarto. (Brincadeira: só fiz machucar o ombro, mas imaginem a perda que a Literatura Brasileira por um triz não sofreu!)

Outra armadilha de hotel, onde muita gente já se deu mal, é a tal da água aquecida. Parece que existe um “boiler” central no porão, que ferve a água e a distribui pelos encanamentos na direção dos quartos. (Lembram-se do “boiler” de que Jack Torrance tinha que cuidar, em “O Iluminado” de Stephen King?) A gente liga a água fria, e depois vai temperando com a água quente. Já vi notícias de jornal sobre gente que se atrapalhou (senhoras idosas, a maioria delas), ligou somente a torneira de água quente e postou-se embaixo. Amigos, aquilo desce fervendo. Altamente desaconselhável.

Pior é quando a gente esquece de trancar a porta por dentro ou colocar o “Não Perturbe”. De manhã cedo a arrumadeira mete a mão na maçaneta e emburaca quarto adentro, empunhando balde e esfregão. Vai ver que foi isso que ocorreu com Dominique Strauss-Kahn, aquele garanhão de terceira idade do FMI, que abrecou uma camareira em Nova York. Até agora não sei se foi ela que caiu na armadilha dele ou ele que caiu na armadilha dela – pense numa dupla de raposas!

Hotel de serial killer (o Bates Motel de Psicose). Hotel de onde não se consegue sair (“Hotel California”). Hotel povoado de fantasmas residuais (o “Hotel Avenida” de Drummond). Hotel transtemporal onde os universos paralelos se entrelaçam (Ano Passado em Marienbad). Todo hotel é uma área de superposição de destinos humanos, um máximo de linhas-de-tempo individuais por metro quadrado.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

2716) Getúlio, Jânio, Tancredo (17.11.2011)





A política é um gigantesco mecanismo coletivo que repousa, com um peso às vezes injusto, em cima de indivíduos. 

É possível prever em linhas gerais o desenrolar e o desfecho de campanhas eleitorais, campanhas de oposição, movimentos de massa pacíficos (“Primavera Árabe”, etc.) ou armados. Nunca se pode saber, porém, como os indivíduos vão reagir àquilo, por mais que os conheçamos. 

Um indivíduo é um “x”, uma incógnita, uma variável escorregadia que já nos deu (e nos dará) muitos dribles.

Ano: 1954. Getúlio Vargas é o homem mais idolatrado e mais perseguido do país. Ninguém já teve tanto poder popular quanto ele, por tanto tempo. (Não comparem com D. Pedro II; era outro Brasil.) Perseguido pela oposição e pela imprensa, acusado de corrupção, de ordenar assassinatos, de mergulhar num “mar de lama”. 

Imaginava-se que Getúlio fosse capaz de prender, arrebentar, dar outro golpe de Estado, renunciar, vingar-se, pendurar as chuteiras... Fez o que ninguém imaginava: deu um tiro no peito e mudou a História.

Ano: 1961. Jânio Quadros era um político estabanado e veemente, com um discurso moralizante que agradou muito à classe média conservadora e cristã. No poder, fez avanços surpreendentes e teve uma porção de atitudes de Odorico Paraguaçu. Ninguém sabia o que ele faria no dia seguinte; ele próprio parecia não entender o que tinha feito na véspera. 

O Brasil apertou o cinto de segurança e preparou-se para quatro anos de turbulência. Com menos de oito meses de governo, Jânio fez o impensável: renunciou. Por quê? Não se sabe. Temos 735 teorias, o que equivale a não ter nenhuma.

Ano: 1985. Eleito presidente pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves foi um improvável ponto de convergência entre direita, centro, esquerda, conservadores, liberais, o escambau – todos concordaram em que naquele momento ele era a melhor pessoa para assumir o leme do barco. 

Uma euforia juvenil fervilhava nas ruas. Depois da derrota do “Diretas Já”, a eleição de Tancredo era uma saborosa vingança. Na véspera da posse, a TV anunciou que o futuro presidente não seria empossado: sofreria uma cirurgia de emergência no hospital de Base de Brasília. 

Quem esperava por essa? Ninguém. Nem mesmo José Sarney, que tomou posse no lugar do presidente eleito.

Isto é a política, isto é a História, isto é a vida. Podemos calcular a trajetória dos grandes movimentos sociais. Mas vemos os indivíduos com a incerteza do físico que tenta calcular a velocidade e a posição de uma partícula subatômica. 

Na História, o indivíduo não é importante por ser grandioso, genial ou heróico, e sim porque é nele que giram as dobradiças do Imprevisível.









2715) Uma doença nova (16.11.2011)



O mundo anda muito louco, só está faltando sair num jornal da Austrália que Philip Buckley, um fazendeiro lá do “outback”, adquiriu uma estranha doença mental. Ele pronuncia duas vezes seguidas cada frase completa que diz, e parece não ter consciência disto. Por mais que os médicos comentem e façam perguntas a respeito ele parece não entender o que estão lhe perguntando e muda de assunto, dizendo algo como “ Pois é, pois é, ando muito cansado, ando muito cansado, aquele chá me dá sono, aquele chá me dá sono, boa noite, boa noite”.

Ou então o vigilante noturno de uma estação de trem na Sérvia, Piotr Danilovic. Ele sofre de um desequilíbrio aleatório no eixo visual. Durante uma conversa normal ele de repente começa a girar o torso como se o interlocutor estivesse caminhando à sua volta e ele quisesse ficar sempre de frente; e ao mesmo tempo seu corpo da cintura para baixo fica imóvel, o que faz o corpo parecer um parafuso. A maioria das pessoas dá a volta para poder falar com ele de frente, o que o faz girar de novo. Às vezes chega a ficar assim por meia hora, e conversando normalmente, fumando um cigarro, descontraidamente, como se nada excepcional estivesse acontecendo.

Suponhamos, também, a existência de Rosa d’Amico, uma dona de casa numa vila da Itália atingida por uma inundação. A enxurrada arrastou todos os móveis e pertences que havia na sua casa, entrando pela porta da frente e saindo pela dos fundos. Depois que a água baixou, contudo, ela voltou para casa e continuou movimentando-se normalmente, como se cozinhasse, arrumasse, dormisse, etc., mesmo com a casa sem móveis e toda enlameada. Move as mãos como se estivesse manipulando os objetos costumeiros. Os vizinhos a retiram, e ela dá um jeito de voltar, protestando.

Aqui no Brasil não poderia deixar de ser o caso de um adolescente de boa família, de Copacabana, que tem o hábito de entrar por uma porta qualquer se vir que está aberta. Entra nos apartamentos do seu prédio, em lojas, em residências. Se entra numa residência senta na sala, puxa uma revista da mochila e fica lendo. Quando as pessoas o enxotam, ele pede desculpa, sai, e entra na próxima porta aberta que encontra. Assim como os outros, não fala a respeito com os médicos; no máximo diz que não pretendia incomodar ninguém, estava apenas querendo sentar um pouco, ou fugir da chuva, etc. Quando os pais lhe perguntam de onde veio essa mania esquisita, ele responde apenas: “Eu não me acho mais esquisito do que a maioria das pessoas. Eu sou normal. Todo mundo é normal. Todo mundo é esquisito. Estou aqui na casa de vocês há quinze anos e vocês ainda não chamaram a polícia”.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

2714) A verdade de Deivid (15.11.2011)




O Flamengo tem um atacante chamado Deivid que é um mistério maior do que a Esfinge. Em primeiro lugar, não é um mau jogador; já o vi jogando muito bem pelo Santos e outros clubes. Tem técnica, é esforçado. Mas quando desembarcou no Flamengo protagonizou a maior série de gols-feitos-perdidos-pelo-mesmo-jogador já vista em nosso futebol. Tornou-se candidato permanente àquela graçola do “Globo Esporte”, o “Inacreditável Futebol Clube”. (Está se redimindo, aliás – já é o 2o. artilheiro do Brasileirão.)

Mas não é dos gols de Deivid que quero falar, e sim de suas entrevistas. Dias atrás, o Flamengo teve que disputar uma partida no Chile precisando vencer de 5x0 para se classificar. Perguntaram a Deivid se ele viajaria de boa vontade, e ele disse: “Claro, pelo menos para ir no free-shopping”. A imprensa pegou esse mote e não falou noutra coisa durante dias (se isso era “atitude de profissional”, etc.). Não passou muito tempo, perguntaram a Deivid numa coletiva quem iria ser o campeão brasileiro, e ele disse: “Acho que é o Corinthians”. Pronto! Outro quelelêi. Agora leio no jornal que ele puxou a cadeira para dar mais uma coletiva e foi logo dizendo aos jornalistas: “Querem que eu fale a verdade ou que dê uma resposta-padrão?”.

Convenhamos, uma interpelação desse tipo não é comum num jogador de futebol, e só pela coragem e sinceridade de fazê-la perdôo a Deivid os últimos vinte gols feitos que ele perdeu, inclusive aquele contra o Santos. Existe uma sutileza insuspeitada nessa pergunta. Porque as respostas padrão existem para não responder nada (“Estamos bem preparados, é levantar a cabeça, vamos em busca do nosso objetivo, etc.”); e as respostas sinceras, mais capazes de surpreender e de causar assunto, são as que os jornalistas mais gostam. O engraçado, porém, é que o jogador em geral é elogiado quando dá respostas-padrão e criticado quando diz o que pensa.

Na política do futebol, tanto quanto na política da literatura ou na política da administração pública, nem sempre se deve dizer o que se pensa. É um jogo, e não devemos revelar ao adversário que cartas temos na mão, ou que movimentos pretendemos fazer daqui a pouco. Qualquer ABC de diplomacia desaconselharia Deivid a dar aquelas duas respostas. A diplomacia é a hipocrisia do Bem, aquela que prefere uma grande mentira a um pequeno constrangimento. Deivid falou na entrevista aquilo que os jogadores conversam entre si, quando não há jornalistas por perto. Os jornalistas deveriam agradecer-lhe por esse “flash”, essa revelação do que é o mundo quando não precisamos contar mentiras politicamente corretas para ninguém.

domingo, 13 de novembro de 2011

2713) Riscando livros (13.11.2011)




(Tom Philips, A Humument, pág. 312)

Diz-se que riscar um livro é uma mistura de falta de educação e desprezo. Não acho. Um livro é um mero suporte de um texto. 

Algumas pessoas o têm como uma distração descartável: o sujeito lê, põe o livro de volta na estante e, daí a alguns anos, manda vender no sebo. 

Para outros, porém, o livro é um objeto de trabalho. Ele não pega o livro para uma leitura casual e sem compromisso, e sim para um enfrentamento intelectual. Pega no livro (inclusive um romance, uma obra literária qualquer) para estudar. Nesses casos, meu conselho é que meta a caneta pra cima, se achar que com isso estuda melhor. 

A caneta serve, como diz Fausto Fawcett, como um contador Geiger que vai assinalando a radioatividade literária dos melhores trechos.

Há pessoas que têm memória visual, e recordam melhor um livro quando visualizam trechos sublinhados, parágrafos destacados com colchetes, anotações feitas nas margens. Minha memória é assim; quando penso naqueles livros que consulto com frequência, é a imagem da página que me vem à memória, com todos os riscos e todas as notas que fiz com meu próprio punho. Se lembro de uma frase que me é muito familiar, sei até se está a página da esquerda ou na da direita; lembro se fica no alto ou na parte baixa da página.

Se você não lembra as coisas assim, não precisa riscar o livro, mas, se riscá-lo desse modo o ajuda a marcar melhor as coisas na memória, meu conselho é que o faça. 

Quando releio um livro, releio primeiro as partes sublinhadas, porque sei que ali estão os trechos que nas leituras anteriores achei mais importantes. Não que eu concorde, necessariamente, com o que está dito; mas porque aquilo concentra melhor as idéias do autor, sejam elas o que forem. 

Alguns leitores desenvolvem códigos próprios. Diz-se que Guimarães Rosa criou o código “m%” (“meu, cem por cento”) para indicar trechos com os quais se identificava especialmente.

Costumo fazer conexões entre trechos do livro, quando vejo a mesma idéia repetida em pontos diferentes. Se vejo na pág. 150 algo que tem tudo a ver com um trecho importante da pág. 82, coloco: “ver pág. 82” ao lado, e voltando à primeira coloco “ver pág. 150”, incluindo aí quantas referências houver. Daqui a 20 anos, quando precisar consultar o livro, não preciso ficar procurando aqueles trechos durante uma tarde inteira. 

Também aconselho criar um índice remissivo no final, registrando os assuntos importantes e as páginas em que aparecem. Muitos livros trazem esses índices, mas nem todos registram os assuntos que interessam à gente. Rabisco um livro para poupar tempo a um leitor de daqui a dez anos, que por coincidência serei eu mesmo.






sábado, 12 de novembro de 2011

2712) Pior do que o mal (12.11.2011)




Na cozinha de um restaurante, um sujeito não conserta direito a mangueira de um bujão de gás, que dias depois explode, matando algumas pessoas. 

Na estrada, um motorista se distrai tentando trocar o CD que estava ouvindo, bate de frente com outro carro, e morrem duas famílias. 

Num campo de batalha, uma ordem pelo rádio é mal compreendida e um batalhão se desloca para leste ao invés de oeste, sendo dizimado pela artilharia inimiga. 

Dois homens fazem uma piada de mau gosto na porta de um bar; um transeunte pensa que estão rindo dele e inicia uma briga que, muitos tiros depois, deixa alguns mortos.

Goethe afirmou certa vez que os mal-entendidos e as negligências causam mais danos ao mundo do que a maldade humana. A gente tem uma tendência a ver o Mal como um jorro íntegro e maciço de ruindade, algo que existe apenas para ofender, matar, destruir, corromper, vilificar. 

O Mal é uma força que tem a intenção, o orgulho e a vaidade de ser má. Faz a maldade com a dedicação circunspecta de quem cumpre uma missão inadiável, com a euforia de quem está fazendo o que mais gosta, com a brutalidade de quem só tem uma ação que justifique sua existência e precisa cumpri-la integralmente o mais depressa possível.

Este será o Mal grandioso, o Mal montanha, o Mal cordilheira. Mas pelo que se vê existe uma forma mais minúscula e mais insidiosa, uma espécie de varejo do Mal, em que nada é grandioso, nem mesmo as intenções, mas dá passagem ao Mal de qualquer forma (o Mal compreendido aqui como a fonte da infelicidade e da destruição humana). 

Há um poema de Brecht que diz: “Escapei dos tigres, alimentei os percevejos”. Esse Mal-percevejo habita nosso cotidiano. Mesmo quando escapamos aos tanques de guerra, aos genocídios étnicos, aos serial killers, existe uma maldadezinha mixuruca e tacanha destinada a empobrecer nossa vida, roê-la pelas beiradas, como uma cárie capaz de deteriorar tudo em pequena escala.

Pior, muitas vezes, do que o Mal grandioso, é o Mal insetóide, minúsculo, fervilhante, que se exprime pelo mal-entendido, pela má vontade, pela coisa mal feita; pelo erro de cálculo, pela imprevidência, pelo descuido, pelo esquecimento relapso, pela desatenção, pela omissão, pelo vacilo, pela bobeira. 

Razão tinham os primitivos que acreditavam na existência de um Demônio Chefe mas também na existência de mil demoniozinhos menores, que quebram a telha, deixam o gás aberto, furam o pneu, desencapam o fio, travam o fecho, e produzem com certo esforço na mente humana aquele “branco” de dois ou três segundos de duração que é tudo de que o Mal precisa para fazer explodir sua catástrofe repentina.





sexta-feira, 11 de novembro de 2011

2711) As 7 maravilhas (11.11.2011)



(Ayers Rock)

Encerra-se hoje uma eleição, promovida pela Fundação New7Wonders (de promoção do turismo), para indicar as 7 Maravilhas da Natureza, por todo o mundo. Milhões de internautas estarão votando em 28 lugares candidatos a essa honra. Para chegar a eles, foram feitas 440 inscrições de 220 países, que depois foram filtrados até chegar a 77, entre os quais finalmente foram selecionados os 28. Como meu conhecimento geográfico é muito escasso, não conheço nem sequer de fotografia a maior parte dos candidatos. Mas votaria com prazer em sete lugares que, para mim, têm algo de especial.

Os dois primeiros são, é claro, os dois candidatos brasileiros: as Cataratas do Iguaçu e a Floresta Amazônica. Nunca fui ao Iguaçu, mas já sobrevoei um longo trecho da floresta amazônica no Pará, num daqueles Fokker para 6 pessoas. Aquela floresta é um acesso de megalomania da Natureza. Faz a gente se sentir, ao mesmo tempo, minúsculo em comparação com aquilo, e imenso por participar daquilo.

Eu votaria no Mar Morto, que é um dos lugares mais extraterrestres da Terra, um lago de sal, uma água onde não se afunda, abaixo do nível do mar. Parece inventado por um escritor de FC com depressão. Votaria no Grande Canyon, que ainda tenho esperança de conhecer um dia, e que deve ter proporcionado aos que o descobriram uma verdadeira “experiência numinosa” como dizia Jung.

Outro lugar que para mim merece ser eleito é o Vesúvio, talvez o vulcão mais famoso do mundo, herói de filmes e romances. Causou algumas das hecatombes mais notórias e foi responsável pela preservação intacta da cidade de Pompéia, cuja visão nos faz regredir no tempo e captar vidas humanas eternizadas em cinza. Votaria no Monte Kilimanjaro na África, que é famoso por ter virado personagem de livro de Hemingway. Com o aquecimento global as suas famosas neves estão derretendo; comparar as fotos de vinte anos atrás com as de hoje nos faz perceber o quando o mundo parece perto de acabar.

E finalmente eu votaria num dos monumentos naturais mais misteriosos do mundo: Uluru, ou Ayers Rock, aquela gigantesca plataforma rochosa no meio do deserto australiano, adorada pelos aborígenes como a morada dos deuses. Parece o lombo de um lagarto de pedra semi-soterrado, com 350 metros de comprimento, 8 quilômetros de circunferência.

Seriam estes os meus sete candidatos; e o mais curioso é perceber como conhecemos pouco o planeta. Se eu conhecesse todos, talvez escolhesse sete lugares completamente diferentes. O que é uma boa coisa. Pensamos tanto nas maravilhas que encontraremos em outros planetas, e o planeta mais estranho e mais belo é justamente este onde já estamos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

2710) Micro-história presente (10.11.2011)



A ciência da História passou por uma grande mudança no último meio século. Grosso modo, a História antigamente era centrada nos grandes fatos (guerras, descobrimentos, revoluções, etc.) e nos grandes personagens (reis, imperadores, generais, presidentes, etc.). 

A gente folheava a História Geral de Borges Hermida e tinha a impressão de que no mundo só tinham acontecido coisas importantes. 

Aí surgiu a micro-história, que foi uma tentativa de falar do povo comum, ao invés dos reis e princesas. Como viviam os mercadores, os camponeses, os pedreiros, os artesãos? A História começou a vasculhar de novo os documentos acumulados nos museus e a deduzir daqueles relatos como era a vida cotidiana de gente sem importância, ou seja, nós, que não somos nem ditadores nem líderes de exércitos. 

É como se de repente todos os historiadores tivessem lido aquele poema de Bertolt Brecht, “Perguntas de um Operário que Aprendeu a Ler”: “Depois de cada batalha um banquete, mas quem servia as mesas?”. A História tornou-se a micro-história, contando, como a poesia de Drummond, a vida “do sineiro, da viúva e do microscopista”. 

Amigos, os micro-historiadores que forem um dia contar o que era o Brasil do começo do século 21 não vão ter problema nenhum. Estamos vivendo o apogeu do detalhezinho, a hegemonia da banalidade, o endeusamento compulsório das tutaméias de cada um. Cada anônimo sabe de cor a pasta de dentes de cada famoso, e fica sonhando com a chance de alguém perguntar qual a pasta que ele próprio usa. 

Mal posso esperar o dia em que uma apresentadora de TV perguntará ao vivo a que horas eu acordo, a marca do meu tênis, minha cor preferida, que livro eu levaria para uma ilha deserta. Andy Warhol previu 15 minutos de fama para cada um, mas não viu que esses 15 serão esticados até virarem um estado de microvisibilidade permanente. 

O famoso é famoso até engraxando os sapatos ou tomando banho de chuveiro. O escritor não se sente realizado quando discute as idéias do seu livro, e sim quando alguém lhe pergunta se ele dorme de calção ou de pijama. Ele não se sente importante pelas coisas grandiosas que fez – porque qualquer idiota que faça uma coisa grandiosa é importante. Não, ele é importante porque come pão com goiabada, e sabe que basta revelar isso no Facebook para que uma horda de admiradores proclame o pão com goiabada como “o top do top”. 

Pobres micro-historiadores do futuro. Vão ter que copiar e decorar cada quark de informação que estamos preservando para eles. Overdose de infrassignificado. Que façam bom uso de cada estátua desenterrada deste Panteão das pulgas, deste Monte Rushmore dos ácaros.





quarta-feira, 9 de novembro de 2011

2709) A Tortura em Ostimburg (9.11.2011)



Por três vezes em minha vida visitei Ostimburg, aquele principado balcânico cujos vorazes desfiladeiros adornam cartões postais. Há quase um século aquela nação conhece uma paz ignorada pelas democracias do Ocidente, graças ao íntegro regime instaurado por Rabidovic I, que soube guiar seu povo com os cuidados de um pastor e a firmeza de um lobo. Na minha primeira visita a Ostimburg, aos 19 anos, foi-nos (a um grupo seleto de estudantes ocidentais) permitido conhecer os recentemente instalados Jardins do Perdão. Que não eram jardins, tecnicamente falando, mas aquilo que em outras circunstâncias teríamos denominado de calabouços subterrâneos, onde os inimigos do povo recebiam sua paga. Vimos, cela após cela, os complicados aparatos eletro-mecânicos; os foles-sanguessuga; as clarabóias-lupa; os poços-ampulheta, onde uma finíssima areia dava aos réus o tempo exato para uma autocrítica final. Nenhum condenado (disse-nos o guia) passava ali mais de três dias sem que a Natureza tomasse a iniciativa misericordiosa de perdoá-lo para sempre.

Voltei a Ostimburg aos 43 anos, como adido cultural de nosso país, e, nos intervalos da minha missão, matava as saudades de alguns ambientes que tinham me impressionado. (Os cafés são tão bons quanto os turcos, os bordéis superiores aos tailandeses.) Visitei os Jardins do Perdão, e vi que haviam evoluído. Agora, a intenção era impedir o desenlace. Como os dissidentes nunca passavam de algumas centenas, era possível preservar-lhes indefinidamente a vida, fazendo com que as máquinas omitissem com mestria todos os pontos vitais. Transfusões, comas induzidos, UTIs adaptadas, tudo conspirava para que aqueles réus estivessem recebendo há décadas os benefícios da arte da aprender na própria carne.

Agora, aqui estou pela terceira vez, aos 76, como convidado do jovem Rabidovic II, redigindo minhas memórias de diplomata. E os Jardins tornaram-se algo semelhante a um retiro ou spa. Não mais que trinta traidores da pátria sobrevivem, cada qual em sua cela. Celas amplas, dotadas de uma multiplicidade de aparelhos da mais avançada tecnologia. Prescindem de guardas e de carcereiros. Décadas de sofrimento contínuo os prepararam. Todo dia acordam, tomam um desjejum frugal, e eles mesmos se manietam e se plugam às engenhocas; eles mesmos manipulam os botões de controle; eles mesmos acionam os dínamos, as autoclaves, as vagarosas prensas, os tornos e parafusos, os velcros esfoladores, as espumas corrosivas. Há anos, nenhum guarda desce àquele subsolo que cheira a sangue e creolina, e onde os pecadores administram e refinam, dia após dia, seu pedido permanente de perdão.