quinta-feira, 8 de abril de 2010

1887) “Watchmen” o Filme (27.3.2009)



É mais um filme de super-heróis com orçamento de centenas de milhões de dólares, e cheio de efeitos especiais? Sim, não deixa de ser. Mas é também um filme escrito por Alan Moore, um dos grandes (e mais sérios) roteiristas de quadrinhos de nosso tempo, embora nem sempre tenha sido transposto para a tela de maneira justa. (A Liga Extraordinária, por exemplo, foi uma diluição e uma violação da HQ original.) Como tudo que Moore escreve, é uma exploração, uma homenagem e uma crítica ao gênero escolhido.

As melhores coisas do filme são os personagens de Rorschach, o caçador de criminosos deprê, existencialista, desiludido e cruel, e do Dr. Manhattan, o gigante azul com super-poderes. Cabe a este último uma notável sequência de efeitos especiais passada em Marte, com um gigantesco relógio de vidro (ou coisa parecida). E a trilha sonora com Bob Dylan, Leonard Cohen, Jimi Hendrix e outros contemporâneos à primeira edição de série de quadrinhos.

Watchmen segue a tendência de captar um grupo de super-heróis na meia-idade, em crise, questionando seu passado e insatisfeitos com seu futuro. A América em que vivem é uma América alternativa, sombria. Um mundo em que os EUA derrotaram o Vietnam, Nixon cumpre um terceiro mandato, e os Watchmen, antigos defensores da Lei, estão sendo mortos misteriosamente um por um. Quem dá o tom do filme é o diário escrito por Rorschach, acompanhando toda a narrativa como um monólogo em voz baixa na trilha sonora.

A gente pode dizer, vendo esses filmes e lendo esses álbuns, que os super-heróis norte-americanos viveram duas eras. A primeira foi a Era Radiante, quando brotaram Super-Homem, Batman, o Fantasma, etc., heróis que combatiam bandidos em nome dos ideais de uma América honesta, justa, democrática. Um país de valores voltados para o amor, o trabalho honesto e a família; uma América em quem só os bandidos não acreditavam, e por isto deveriam ser punidos. A outra é a Era Tenebrosa, a atual, em que eles combatem em nome de valores em declínio, e vêem a sua América afundada na corrupção, na truculência política, na violência, no sadismo e nas drogas. Tentam salvar um mundo que não quer (e não merece) ser salvo.

Os filmes de super-heróis estão cada vez mais se dividindo em dois troncos. De um lado, o simples espetáculo dos efeitos especiais, da aventura inconsequente mas levemente moralizadora; filmes que conseguem dar uma sobrevida à Era Radiante dos quadrinhos. De outro lado, uma série de filmes “noir”, problemáticos, que devem mais ao romance policial sórdido do que à ficção científica, e que encarnam um certo “vigilantismo” – a noção de que o mundo é podre, as autoridades são corruptas, e cabe a nós fazermos a justiça com nossas próprias mãos. Essa noção é subjacente aos quadrinhos de super-heróis, que sempre foram uma espécie de polícia por conta própria, suprindo a incapacidade das forças do governo para enfrentar os arqui-vilões.

1886) Os deserdados de Deus (26.3.2009)



(Praça de São Pedro, Vaticano)

Há pouco tempo a Igreja Católica criou uma polêmica do nada quando um bispo anunciou a excomunhão das pessoas responsáveis pelo aborto de uma menina de 9 anos, estuprada e grávida de gêmeos. A reação geral foi tão forte que autoridades mais elevadas apressaram-se em conciliar e a dizer que não era bem assim. Agora, o Papa, em visita à África, diz que a distribuição de camisinhas não apenas não detém a Aids, como pode contribuir para sua disseminação.

Eu tenho uma relação de respeito e impaciência com a Igreja Católica. Não sou cristão, mas fui criado na cultura cristã, como a maioria dos brasileiros, e me sinto no direito de dar palpite – assim como não sou filiado a nenhum partido político mas dou palpite na condução do país. (É, aliás, algo que essas instituições têm em comum: uns acham que só se chega a Deus através de uma igreja organizada, outros acham que só se faz política através das máfias partidárias.) Acho o Cristianismo muito deficiente em explicar a origem do Universo e da vida; neste aspecto, o que a Ciência diz me parece mais próximo da verdade, embora, por definição, saibamos que jamais saberemos.

A melhor coisa do cristianismo é o seu humanismo, sua valorização da pessoa em si, o seu senso de fraternidade, de que somos todos iguais e estamos todos juntos, e que, como já disse o ateu Bertolt Brecht, “ninguém no mundo será livre enquanto existir uma só pessoa presa”. Surgindo no meio da arrogante e cruel cultura romana, o cristianismo primitivo pegou o que havia de melhor nos humanismos anteriores e criou uma mistura tão forte que resiste até hoje.

Esses problemas que o Vaticano agora enfrenta resultam da maneira errada com que a Igreja encara o sexo. Foi um conjunto de decisões estratégicas tomados há mais de mil anos, mas que vêm apartando a Igreja, cada vez mais, da direção em que vai o mundo. O celibato dos sacerdotes é uma dessas decisões. Se eu fosse cristão, viveria em crise espiritual 24 horas por dia, porque a Igreja defende idéias que considero não apenas erradas, mas catastróficas do ponto de vista social. O cristianismo herdou muito do patriarcalismo puritano da cultura hebraica. O mundo está indo noutra direção, uma direção que me parece mais saudável.

A Igreja não sabe lidar com o sexo e com os assuntos correlatos (virgindade, uniões civis, opções sexuais, controle da natalidade, doenças venéreas). Já ouvi muitos cristãos sinceros dizerem: “Eu desobedeço ao que minha Igreja manda fazer, porque acho que a Igreja está errada. Deus está vendo tudo e sabe que a decisão moralmente mais correta é esta.” O que é uma pena, porque é justamente nesse aspecto da vida sexual e das decisões morais concernentes ao sexo que a Igreja está erodindo todo o humanismo que ela mesma criou em dois milênios. Ela praticamente inventou o espírito de fraternidade e de caridade que nos salva; e suas decisões sobre o universo do sexo, a cada década, a afastam desse espírito.

1885) Poe: Os embustes de jornal (25.3.2009)



Edgar Allan Poe é conhecido como precursor do romance policial e da história de terror, e se considerava acima de tudo um poeta, no sentido romântico do termo: um criador da Beleza através de palavras. 

Para sobreviver, foi jornalista a vida inteira, colaborando em jornais e editando diversas revistas literárias. E essa vivência o colocou no centro de uma tendência do século 19 que teve amplificações curiosas no século 20. 

Essa tendência foi a dos embustes jornalísticos – matérias inventadas que se faziam passar por relatos autênticos, e muitas vezes iludiam por completo um público leitor que, carente de informação mas incapacitado de encontrá-la por conta própria, acabava acreditando nas peças que jornalistas desocupados lhes pregavam. 

O primeiro embuste bem sucedido de Poe foi “A Aventura Sem Par de Hans Pfaall”, publicado no Southern Literary Messenger, de Richmond, em junho de 1835. O texto é basicamente uma carta escrita por um holandês às autoridades de Amsterdam, narrando com detalhes sua viagem de balão até a Lua, e fornecendo alguns detalhes sobre a paisagem e os habitantes lunares. 

Poe tinha conhecimentos sólidos de astronomia e de balonagem, e era um leitor veloz e onívoro quando precisava informar-se sobre algo. Seu relato, apesar do tom evidentemente satírico (e de um pós-escrito que praticamente entrega o embuste) tinha um tom de tal verossimilhança astronáutica que enganou muitos leitores. É bem possível que essa narrativa tenha fornecido a Julio Verne boa parte da inspiração para seu clássico Da Terra à Lua (1865). 

Poe preparou o terreno para o que ficou conhecido como “O Grande Embuste Lunar”, perpetrado pelo jornal New York Sun a partir de agosto daquele ano, dois meses após “Pfaall”. Os artigos proclamavam que Sir John Herschel (um dos maiores astrônomos da época) tinha descoberto pelo telescópio sinais de vida na Lua. Cada novo artigo dava mais detalhes, alternadamente verossímeis e fantasiosos, sobre a fauna selenita. O jornal conseguiu uma vendagem espantosa nesse período, e a autoria dos artigos, ainda que duvidosa, é hoje atribuída a Richard Locke, jornalista do Sun

Poe ficou um tanto enciumado. O tom satírico de seu próprio texto tinha impedido que ele fosse tão levado a sério quanto dos artigos de Locke, que eram escritos, como dizemos hoje, “na maior cara de pau”. Ele estava na época trabalhando numa continuação das aventuras de “Hans Pfaall” mas abandonou o projeto, por achar que depois do embuste do Sun ser confirmado ninguém mais poderia levá-lo a sério. 

O mais interessante dos embustes de qualquer natureza é que por mais implausíveis que sejam acabam sendo acreditados por milhares ou milhões de pessoas. Nos anos 1830, em que circulavam as mais espantosas (para a época) descobertas astronômicas através de telescópios, e que a navegação por balões se tornava uma realidade, qualquer aventura dessa natureza poderia ser acreditada.






1884) “Quem quer ser um milionário” (24.3.2009)



O vencedor do Oscar deste ano é uma co-produção inglesa-americana rodada na Índia, mas é como filme indiano que conquista nossa simpatia. Apesar de milênios de distância, há uma sintonia de inconsciente coletivo entre Índia e Brasil. São dois países tão parecidos que Pedro Álvares Cabral descobriu um quando procurava o outro.

O filme confessa ser influenciado por Cidade de Deus. Vi gente ficar indignada; eu acho ótimo. Quando imitamos os americanos, diz-se que não temos personalidade; quando eles nos imitam, diz-se que damos idéias de graça. Ora, amigos, os americanos só não imitam o que desconhecem, e só não são imitados pelos que ainda não invadiram. Slumdog Millionaire mostra favelas que não perdem para as nossas, e um elenco de atores infantis iguaizinhos aos guris que nos pedem uma moeda na calçada. Até seus gangsters são clones dos nossos bicheiros.

O grande trunfo comercial do filme é um roteiro que reúne tudo que a Academia gosta de premiar e os americanos de assistir: disputa entre o irmão bom e o irmão mau, história de amor com sucessivas separações e reencontros ao longo dos anos, rapaz pobre que fica rico, crime que não compensa, amor que triunfa. E tem um trunfo técnico. O argumento é um Ovo de Colombo: um rapaz favelado acerta uma dúzia de perguntas aleatórias num programa de TV, e a cada pergunta feita surge um flash-back para mostrar (da maneira mais simples e convincente) por que motivo o rapaz sabia a resposta para justamente aquela pergunta.

Note-se que nem sempre ele sabe a resposta. Em um caso, alguém lhe aplica um golpe e ele recorre à sabedoria da rua (ou seja, à sua percepção instintiva da desonestidade) para evitá-lo; e há outra vez em que ele simplesmente joga, aposta, arrisca, sem medo, sorridente, de peito aberto, que é como se deve jogar o jogo. Se perder, perdeu, e daí?

Vi no jornal USA Today um comentário curioso do filme, assinado por Claudia Puig. Diz ela que o filme tem “uma narrativa vigorosa e um estonteante realismo mágico”; mais adiante, fala de “imagens surrealistas”. É curioso, porque não vi nem uma coisa nem outra. Para mim é um filme absolutamente realista do começo ao fim (com exceção da canção durante os letreiros finais). Mas eu entendo. Por exemplo: para um americano, um garoto pular dentro de uma fossa e sair correndo, coberto de excremento, para pedir um autógrafo, é realismo mágico. Para nós, é tão real quanto uma cena de Nelson Rodrigues.

A indústria subterrânea de fabricar meninos mendigos não é surrealismo: é Charles Dickens puro. A espantosa pobreza da Índia, mesclada a uma riqueza igualmente inconcebível, cria enormes tensões sociais que são o terreno ideal para a produção de histórias em que algumas pessoas são totalmente indefesas e outras totalmente poderosas, em que alguns são totalmente ingênuos e outros totalmente malévolos. É o terreno ideal para o melodrama e o folhetim.

1883) Cegueira cultural (22.3.2009)



A incapacidade de ver algo não tem nada a ver com nossos olhos, e sim com a nossa educação. Jorge Luís Borges observava que um índio vê uma cadeira de um modo diferente de nós, porque elas não existem na sua cultura. Quando vemos uma cadeira, sabemos que aquela plataforma horizontal serve para apoiarmos nossas nádegas enquanto descansamos nossas pernas, e que o restante (encosto, braços, pernas) é de importância secundária. Um índio talvez veja uma cadeira e fique intrigado com aquela árvore estranha que tem quatro troncos em vez de um só.

Num artigo sobre Leon Tolstoi em The New Yorker, James Woods comenta “…uma técnica pela qual Tolstoi viria a ser elogiado pelos críticos formalistas russos das décadas de 1920 e depois: o distanciamento, a arte de tornar estranho o que é familiar. Às vezes, isto envolve a visão do mundo com os olhos de uma criança. Quando Natacha vai à ópera, ela se recusa a ver qualquer outra coisa além de telões pintados e homens e mulheres com roupas esquisitas, e acha tudo aquilo falso e pretensioso”.

Todo espetáculo precisa da suspensão voluntária de descrença. Senão, nada acontece. No romance de fantasia Swordspoint (1987), Ellen Kushner mostra personagens indo ao teatro pela primeira vez:

“Em seguida, aconteceu uma cena num hospício, com todo mundo cantando e dançando. O que a cena fazia ali Richard nunca descobriu; mas quando ela acabou, foi erguida uma cortina por trás dela, revelando uma enorme escadaria que dividia o palco de alto a baixo. O espadachim apareceu, e anunciou que era meia-noite, e que isto o libertava da missão imposta pelo duque”.

Um espectador com um mínimo de experiência entende que a cena musical está ali justamente para dar tempo a que seja preparada a escadaria para a cena seguinte; e que as horas anunciadas pelos personagens não correspondem à hora marcada pelo relógio do público.

Em seu conto “A Busca de Averróis” (em O Aleph), Borges comenta a crise intelectual de um muçulmano que, vindo de uma cultura onde não existia o teatro, era incapaz de compreender o sentido de uma peça:

“Uma tarde, os mercadores muçulmanos de Sin Kalan me conduziram a uma casa de madeira pintada, na qual viviam algumas pessoas. Não se pode contar como era essa casa, que mais parecia um só quarto, com filas de armários ou balcões, uns sobre os outros. Nessas cavidades havia gente comendo e bebendo, e também no chão, e também num terraço. As pessoas desse terraço tocavam tambor e alaúde, menos umas quinze ou vinte (com máscaras vermelhas) que rezavam, cantavam e dialogavam. Estavam presas, e ninguém via o cárcere; cavalgavam, mas não se percebia o cavalo; combatiam, mas as espadas eram de cana; morriam, e logo estavam de pé”.

Estes três exemplos teatrais bastam para ilustrar que toda representação do real é absurda, quando ignoramos (ou quando nos recusamos a conhecer) o código em que foi concebida. Vale para qualquer tipo de espetáculo, para o cinema, a literatura.









1882) Por que parar o tempo? (21.3.2009)




(foto: marleen1951)

O roteirista Tulio Pinelli conta que certa vez estava no Uzbequistão em companhia de Michelangelo Antonioni. Os dois procuravam locações para um filme que estavam começando a realizar. Um dia, vindo de carro por uma estrada, deram carona a três uzbeques. Segundo Pinelli, eram homens majestosos, usando turbantes e vestimentas tradicionais, e pareciam três estátuas religiosas. Quando chegaram no ponto onde eles iam saltar, Antonioni parou o carro e, como um gesto de despedida, tirou uma foto polaróide dos três e a deu de presente. Os homens olharam a foto e a devolveram a Antonioni, perguntando: “Por que parar o tempo?”.

O que teria dito o uzbeque se Antonioni os tivesse filmado caminhando, e depois exibido as imagens? Perceberia que a intenção de quem fotografa ou filma não é propriamente de parar o tempo, e sim de duplicá-lo, multiplicá-lo? Achamos que a foto é um “instante parado” do tempo porque ele retrata uma fração de segundo e dá a impressão de que o que temos ali é “um instante inteiro”. Mas não é. Mesmo numa foto parada, temos a presença de vários instantes sucessivos. Ou você, caro leitor, nunca tirou uma foto que saiu borrada?

Não falo em fotografia fora de foco, falo naquelas fotos em que um movimento rápido (o braço de um tenista, as asas de um pássaro, etc.) aparecem registradas em várias posições sucessivas, mescladas, transformadas num borrão de movimento que invade a tal fração-de-segundo em que a foto é tirada, revelando que é impossível parar o tempo, e que só temos essa ilusão quando fotografamos objetos imóveis.

Dizem que a primeira foto em que aparece um ser humano foi tirada do alto de uma água-furtada parisiense. A foto, que precisou de vários minutos de exposição para poder absorver luz suficiente, mostra pedaços de telhados, uma rua, carros parados, e numa esquina a silhueta difusa de um homem no passeio, que, com a perna semi-erguida, está tendo os sapatos lustrados por um engraxate. A rua estava cheia de movimento, mas tudo passou rápido demais para poder ser captado pelo negativo pouco sensível. Apenas aquele transeunte desapercebido foi registrado; ninguém soube seu nome, e ele próprio, perdido naqueles minutos tão banais, nunca soube que sua silhueta tinha entrado para a História da Imagem.

A fotografia só para aquilo que de certa forma já está parado. Os automóveis passaram incólumes por aquela primeira foto, assim como hoje somente as asas dos beija-flores passam incólumes pelas nossas câmeras digitais. Os uzbeques de Antonioni provavelmente se sentiram aprisionados naquela polaróide; como se vissem três sósias seus transformados em estátuas, doidos para sair caminhando e sem poder. A foto não para o tempo, nós é que paramos para ela. É apenas uma armadilha para que um dia possamos rever aquela imagem e puxar de dentro dela todo um movimento do corpo e da alma que deixou de existir, mas que pela porta da fotografia pode ser acessado novamente.





quarta-feira, 7 de abril de 2010

1881) Os livros impublicáveis (20.3.2009)



Não há nada mais satisfatório, para um autor de sucesso, do que relembrar, do alto de milhões de exemplares vendidos, ou de numerosos prêmios literários, todos os editores que rejeitaram seu livro agora famoso, ou todos os críticos que receberam seu aparecimento inicial com ironias e menosprezo.

A única certeza na indústria cultural é que nunca se sabe o que vai fazer sucesso. Tudo que é feito, é feito com essa intenção, inclusive os grandes fracassos, os grandes micos, as grandes quebradas de cara, os grandes prejuízos. Nos círculos eruditos é costume citar o exemplo de Proust, que teve o primeiro volume do Em busca do tempo perdido rejeitado por André Gide, encarregado da avaliação. Há também os casos de James Joyce com Ulisses e de Henry Miller com o Trópico de Câncer, mas aqui trata-se mais de uma questão de censura – eram livros com conteúdo sexual muito forte para a época.

Um caso pouco conhecido do grande público é o do escritor Stephen R. Donaldson, autor de uma série de romances de fantasia heróica (do tipo J. R. R. Tolkien) cujo conjunto se intitula As Crônicas de Thomas Covenant, o Descrente, num total de seis romances enormes publicados entre 1977 e 1983. (Recentemente, Donaldson retornou ao universo dessa série, com mais dois livros publicados em 2004 e 2007). Thomas é um norte-americano médio que na década de 1970 vê-se arremessado num universo paralelo que está (como o mundo de Tolkien) ameaçado de destruição por um arqui-vilão, Lord Foul. Sua missão, cumprida com relutância e estranhamento, é salvar essa terra desconhecida. Um romance de fantasia igual a tantos – com a diferença de que Thomas é um leproso.

Reza a lenda que Donaldson ofereceu o primeiro livro da série a todas as 47 editoras listadas na revista Literary Marketplace, de uma em uma, por ordem alfabética; e todas o recusaram. O livro acabou sendo publicado pela Del Rey Books, numa segunda rodada de oferta. Donaldson ganhou o Prêmio John W. Campbell de “Melhor Autor de 1979”, e alguns livros da série receberam prêmios de “Melhor Romance do Ano”. No total, a série de Thomas Covenant já vendeu mais de dez milhões de livros. O título mais recente, Fatal Revenant (2007) chegou a 12o. lugar na lista dos mais vendidos do New York Times.

Alguém dirá: “como são burros os editores!” E eu responderei: caro leitor, você investiria seu precioso dinheiro num livro de fantasia de um autor estreante, de 30 anos, cujo protagonista é um leproso? Thomas é um sujeito que fica o tempo inteiro verificando se suas extremidades estão intactas (ele perde 2 dedos nos primeiros livros da série). A obra de Donaldson discute sérias questões éticas e morais. Dentro da fantasia norte-americana, muitas vezes frívola ou infantilóide, seus livros são consideradas obras sérias, de peso, ainda que um tanto soturnas. Ninguém poderia prever o sucesso que obtiveram. Não, não se pode, ninguém pode saber, jamais.

1880) Judeu se Suicida num Cinema (19.3.2009)



"No Suicídio do Último Judeu do Mundo no Último Cinema do Mundo”: este é o ominoso título de um curtíssima-metragem (três minutos) de David Cronenberg, que faz parte da compilação Chacun son Cinéma, um filme coletivo (com 33 diretores e 33 episódios) exibido nas comemorações do aniversário do Festival de Cannes. Cada cineasta recebeu a missão de fazer um episódio de três minutos, do jeito que bem entendesse, com a única exigência de que no filme aparecesse um cinema.

O curta de Cronenberg começa mostrando o rosto de um homem (o próprio diretor) próximo à câmara, distorcido pela lente grande angular; apontando um revólver para a testa, depois para a boca, etc. Por trás dele um cenário pouco visível, que aos poucos percebemos ser o banheiro de um cinema. E ouvimos as vozes de um casal de locutores típicos dos canais a cabo norte-americanos descrevendo, em estilo CNN, o que aparece na imagem. (Reproduzo de memória os nomes e os diálogos, que não são exatamente assim.) O homem diz: “Ah, pronto, já temos imagem. Já estamos com imagens ao vivo, Mary”. Ela: “Exatamente, Bob. Já temos imagem ao vivo da nossa reportagem, que vai registrar o suicídio do último judeu na última sala de cinema do mundo”. Bob: “Você disse última sala de cinema, Mary? Poderia situar melhor isto, para os nossos assinantes?” Mary: “Claro, Bob. As salas de cinema foram eliminadas, mas a polícia localizou esta última sala clandestina, que será demolida depois de nossa reportagem de hoje”.

A imagem não muda: o homem, rosto quase colado à câmara, experimenta a posição ideal do revólver de encontro à própria cabeça. E a reportagem prossegue nesse tom típico de descontração e indiferença. Mary informa a Bob que aquele indivíduo é o último judeu do mundo, o último representante de uma raça extinta. Bob: “E esta raça, Mary, a julgar pelas informações que recebemos, tinha alguma relação com a indústria do cinema? E é por isto que o suicídio terá lugar num cinema?” Mary: “Precisamente, Bob. Pode-se dizer até que os judeus eram a indústria do cinema. Embora isto, é claro, deva ser entendido num sentido muito amplo”.

São apenas três minutos, mas a crueldade e o absurdo são cumulativos. O homem enfia o cano da arma na boca, no olho, no ouvido, enquanto os locutores discutem a maneira mais eficaz de alguém se suicidar; e por fim a imagem se congela quando ele aperta o gatilho.

Cronenberg (com A Mosca, Gêmeos – Mórbida Semelhança, Crash e outros filmes) é um dos principais diretores do que poderíamos chamar de um “cinema da crueldade” de hoje, Em seu livro Le Cinéma de la Cruauté, André Bazin analisa as obras de Erich von Stroheim, Carl Dreyer, Preston Sturges, Luís Buñuel, Alfred Hitchcock e Akira Kurosawa. Hoje, poderia incluir David Lynch, os irmãos Coen, Cláudio Assis, Quentin Tarantino e David Cronenberg, autor deste pequeno e irretocável filme que também poderia se intitular “A Morte do Século 20”.

1879) Poe: a página policial (18.3.2009)





Edgar Allan Poe criou a literatura analítico-detetivesca em 1841, quando publicou o conto “Os assassinatos da Rua Morgue”. Em 1842-43 veio “O mistério de Marie Roget”, publicado em artigos sucessivos numa revista. Em 1844 veio um conto pouco conhecido, “Thou art the man”, e em 1844 “A carta roubada”, que de certo modo é o melhor de todos. 

Estes quatro contos inventaram o que chamamos hoje de “conto detetivesco”: a história de um crime envolto em mistério, que é elucidado por um detetive. A estas características eu somaria outra: o elogio da desconfiança. Todo detetive é um desconfiado, um cético, quase um paranóico. 

Jorge Luís Borges disse que a literatura policial, com Poe, criou um novo tipo de leitor, o leitor que desconfia de tudo que lê. Existe nesse leitor e nesse detetive a predisposição para de tudo duvidar, para tudo tentar observar sob um ângulo diferente. É o leitor moderno, o leitor crítico, cujo prazer não é apenas o de se deixar levar pela história lida, mas principalmente o de não se deixar levar tão facilmente.



Os dois primeiros contos falam de crimes sensacionais cometidos numa grande cidade, que no caso é Paris. (“Marie Roget” é uma transposição parisiense de um crime real ocorrido em Nova York, e que Poe tentou elucidar por conta própria em forma de ficção.) Eles indicam um vínculo essencial da literatura de detetive, em seu nascimento, com as páginas policiais dos jornais diários – que na época, acreditem, eram muito mais sensacionalistas e exageradas do que as de hoje. 

As populações urbanas, a quem se dirigiam os jornais, tinham, como ainda têm, um fascínio permanente por crimes brutais, vinganças sanguinolentas, chacinas impiedosas, assassinatos que conjugavam a violência física e a baixeza moral. Uma multidão necessita de vilões como uma criança precisa de monstros: para descarregar seus medos e curtir depois uma paz provisória (“não foi comigo, foi com outras pessoas”).



Com exceção da “Carta roubada”, os demais contos de Poe são filhos diretos de publicações como The Newgate Calendar, um periódico sensacionalista que de início contava os crimes praticados pelos inquilinos da prisão britânica de Newgate. Essas narrativas (onde entravam em partes iguais o relato verídico, o exagero ficcional e o moralismo) foram coletadas em 1774 em cinco volumes que depois tiveram várias reedições. No tempo de Poe, houve pelo menos duas reedições famosas, em 1824 e 1826. 

O fato de que ele ambientou a maioria dos seus mistérios em Paris levou muitos críticos a verem nisto, também, uma influência das famosas Memórias de Vidocq (1828), criminoso francês que tornou-se depois policial e transformou-se no protótipo de ambas as categorias. 

O diferencial introduzido por Poe nessa literatura sensacionalista foram a capacidade de observação, de análise e de raciocínio de um detetive amador – modelo depois adotado por outros autores, sendo consagrado (e profissionalizado) com o Sherlock Holmes, de Conan Doyle.






1878) Os gêneros literários (17.3.2009)



(Jonathan Lethem)

Um artigo de John Clute em The New York Review of Science Fiction (outubro 2008) cita uma frase de Jonathan Lethem: “Os gêneros literários são como os falsos oásis, só são visíveis a meia distância”. De fato, quanto mais nos aprofundamos num livro mais vemos o que ele tem de único, mesmo os mais medíocres e mais previsíveis. Se penso em quinze livros policiais com o advogado Perry Mason (dos quais já li mais do que isto), todos parecem idênticos. Se parar para folhear qualquer um deles, o gênero se esvai, a fórmula parece se dissipar como uma ilusão de ótica, e enxergo apenas a história que está sendo contada, o seu aqui-e-agora inexistente e eterno.

Clute complementa a metáfora de Lethem dizendo: “Os gêneros, e os oásis, são sem dúvida instrumentos muitos úteis, desde que a gente saiba permanecer à distância. Eles só são falsos se imaginarmos que são reais. São instrumentos que ajudam a ver, mas não sem, em última análise, o que há para ver”. O maior engano (e levante a mão quem ainda não o cometeu) é pensar que quando estamos trabalhando num gênero temos que fazer algo parecido com o que já foi feito antes. O romance de cangaço, por exemplo. É um bom exemplo porque não chega a ser um gênero exaurido, pelo contrário; há apenas algumas dezenas de romances que têm o cangaço como tema central. Conhecê-los é importante, mas não para fazer algo parecido com eles, e sim para imaginar: O que poderia ser escrito sobre o cangaço e não foi ainda?

Um gênero é um conjunto de expectativas que o autor tem sobre suas próprias idéias quando começa a trabalhar num livro ou num filme, e é um conjunto (diferente) de expectativas que o leitor ou espectador tem quando entra em contato com a obra. Quem determina essas expectativas é o grau de informação direta ou indireta de cada um.

Mas para a indústria, o “gênero” é a primeira metade da obra, que é assimilada ao longo da vida do leitor; e o livro, qualquer um, é a segunda metade. Só entende direito a segunda quem tiver assimilado a primeira. O leitor de gênero (ou espectador, no caso do cinema) quer apenas “um pouco mais daquilo mesmo”, quer uma história que utilize aquilo que ele já sabe, e lhe dê o conforto e a segurança de estar pisando em terreno conhecido.

Poucas pessoas terão descrito este mecanismo com tanta candura quanto Robert McKee em seu manual de roteiro Story (1997): “Posicionar a audiência significa que não queremos o público entrando em contato com o filme de uma maneira fria e vaga, sem saber o que esperar, e nos forçando a gastar os primeiros vinte minutos de projeção dando-lhes as dicas para apreciarem a história da maneira correta. Queremos que eles se instalem em suas poltronas, aquecidos, focados, cheios de um apetite que passaremos a satisfazer”. É para isto que a indústria explora os gêneros. Para ela, um gênero tem sempre que ser mais importante do que a obra que o utiliza. A obra é a lata dágua, mas o gênero é o poço.