quinta-feira, 8 de abril de 2010

1883) Cegueira cultural (22.3.2009)



A incapacidade de ver algo não tem nada a ver com nossos olhos, e sim com a nossa educação. Jorge Luís Borges observava que um índio vê uma cadeira de um modo diferente de nós, porque elas não existem na sua cultura. Quando vemos uma cadeira, sabemos que aquela plataforma horizontal serve para apoiarmos nossas nádegas enquanto descansamos nossas pernas, e que o restante (encosto, braços, pernas) é de importância secundária. Um índio talvez veja uma cadeira e fique intrigado com aquela árvore estranha que tem quatro troncos em vez de um só.

Num artigo sobre Leon Tolstoi em The New Yorker, James Woods comenta “…uma técnica pela qual Tolstoi viria a ser elogiado pelos críticos formalistas russos das décadas de 1920 e depois: o distanciamento, a arte de tornar estranho o que é familiar. Às vezes, isto envolve a visão do mundo com os olhos de uma criança. Quando Natacha vai à ópera, ela se recusa a ver qualquer outra coisa além de telões pintados e homens e mulheres com roupas esquisitas, e acha tudo aquilo falso e pretensioso”.

Todo espetáculo precisa da suspensão voluntária de descrença. Senão, nada acontece. No romance de fantasia Swordspoint (1987), Ellen Kushner mostra personagens indo ao teatro pela primeira vez:

“Em seguida, aconteceu uma cena num hospício, com todo mundo cantando e dançando. O que a cena fazia ali Richard nunca descobriu; mas quando ela acabou, foi erguida uma cortina por trás dela, revelando uma enorme escadaria que dividia o palco de alto a baixo. O espadachim apareceu, e anunciou que era meia-noite, e que isto o libertava da missão imposta pelo duque”.

Um espectador com um mínimo de experiência entende que a cena musical está ali justamente para dar tempo a que seja preparada a escadaria para a cena seguinte; e que as horas anunciadas pelos personagens não correspondem à hora marcada pelo relógio do público.

Em seu conto “A Busca de Averróis” (em O Aleph), Borges comenta a crise intelectual de um muçulmano que, vindo de uma cultura onde não existia o teatro, era incapaz de compreender o sentido de uma peça:

“Uma tarde, os mercadores muçulmanos de Sin Kalan me conduziram a uma casa de madeira pintada, na qual viviam algumas pessoas. Não se pode contar como era essa casa, que mais parecia um só quarto, com filas de armários ou balcões, uns sobre os outros. Nessas cavidades havia gente comendo e bebendo, e também no chão, e também num terraço. As pessoas desse terraço tocavam tambor e alaúde, menos umas quinze ou vinte (com máscaras vermelhas) que rezavam, cantavam e dialogavam. Estavam presas, e ninguém via o cárcere; cavalgavam, mas não se percebia o cavalo; combatiam, mas as espadas eram de cana; morriam, e logo estavam de pé”.

Estes três exemplos teatrais bastam para ilustrar que toda representação do real é absurda, quando ignoramos (ou quando nos recusamos a conhecer) o código em que foi concebida. Vale para qualquer tipo de espetáculo, para o cinema, a literatura.









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