domingo, 21 de fevereiro de 2010

1685) Machado: “Ex Cathedra” (6.8.2008)



O Brasil comemora o centenário da morte de Machado de Assis, com seminários, conferências e reedições que não acabam mais. Resolvi contribuir com esse debate comentando alguns contos do autor de Brás Cubas. Não direi que são os seus melhores contos, mas como a crítica só fala num punhadozinho deles (“Missa do Galo”, “Noite de Almirante”, etc.) vou falar nos que guardo na memória afetiva desde que comecei a ler Machado, por volta dos dez anos de idade.

Por exemplo, “Ex Cathedra”, um contozinho insignificante pelo qual sempre tive o maior carinho. É a história do Dr. Fulgêncio, um homem meio aluado que vive entre os livros e para os livros, numa chácara da Tijuca, com sua afilhada, Caetaninha, de catorze anos. Melhor dizendo, é a história de Caetaninha, que adora o padrinho e as mucamas, mas algo lhe falta até o dia em que à porta da chácara apeia-se um rapaz órfão, da idade dela. Raimundo é sobrinho do doutor, instala-se na chácara e na vida dos dois.

Caetaninha vivia só, raramente descia à cidade: “Quando via passar na estrada uma cavalgada de homens e senhoras, punha a alma na garupa dos animais, e deixava-a ir com eles, ficando-lhe o corpo ao pé do padrinho que continuava a ler.” Os dois jovens ficam inseparáveis, e o Dr. Fulgêncio cisma em casá-los. Para tanto, põe-se a preparar um curso explicando-lhes as razões físicas e metafísicas do amor. Faz isto com a autoridade intelectual de quem redigiu por iniciativa própria uma constituição para a Turquia (que enviou ao ministro inglês) e de outra feita dedicou-se a estudar a anatomia dos olhos para saber se eles podiam ver de fato (concluiu que sim).

O Dr. Fulgêncio ensina o amor aos jovens pelo método “ab ovo”, principiando com a descrição do Universo. As aulas aproximam ainda mais Raimundo e Caetaninha. “Enquanto o velho falava, reto, lógico, vagaroso, curtido de fórmulas, com os olhos fixos em parte nenhuma, os dois alunos faziam trinta mil esforços para escutá-lo, mas vinham trinta mil incidentes distraí-los”. Os meses se passam, os dois passam a sentir emoções que não compreendem. “Para a semana,” pensa o doutor, “entro na organização das sociedades; todo o mês que vem e o outro é para a definição e a classificação das paixões; em maio, passaremos ao amor... já será tempo...”

Esse é o penúltimo parágrafo do conto, porque no último registra-se o primeiro beijo do casal, testemunhado por algumas lagartas, um marimbondo e um gafanhoto que passavam pelo terraço da chácara. Nada acontece de memorável no conto, como aliás na maioria dos contos de Machado. Tudo está no jeito de dizer, nas comparações, da descrição dos movimentos dos olhos dos personagens, na escolha das palavras, que têm sempre uma carga afetiva maior que sua carga denotativa, imediata. E na tensão (que é a da conto inteiro) entre um intelecto, que tudo quer compreender e explicar, e uma imaginação desejante, que dele se desprende e alça vôo.

1684) O regional e o universal (5.8.2008)





(Árido Movie, de Lírio Ferreira)

A literatura nordestina tem que ser literatura regional? Depende. “Literatura regional” deve ser uma literatura que fale da região, exprima o que é característico (embora não exclusivo) daquela região. 

Não é preciso reproduzir o que fizeram José Lins do Rêgo, Graciliano, Rachel de Queiroz, etc. A região mudou. Literatura regional não é apenas falar da cana-de-açúcar, dos cangaceiros ou dos beatos.

Nosso regionalismo de hoje poderia falar de transplante e comércio clandestino de órgãos, algo que ocorre muito no Nordeste.  

Ou prostituição infantil; ou o cultivo da maconha. Poderia falar do fato de que condomínios inteiros, terrenos imensos na orla marítima estão sendo vendidos para investidores estrangeiros. 

Poderia falar da ação das igrejas evangélicas; da invasão dos DVDs piratas, das lan-houses, dos cybercafés nas cidades e vilas do Sertão. 

Poderia falar da destruição de sítios arqueológicos por causa da exploração das mineradoras.
  
Essas mudanças sociais estão gerando histórias, conflitos, dramas humanos, fortes emoções.

Regional é o que retrata o visível, o imediato, o que está à nossa volta, o aqui-e-agora da nossa experiência direta como nordestinos. O interesse desse tipo de literatura é poder mostrar experiências humanas que são típicas de um grupo social: o dia-a-dia de um criador de cabras na Paraíba, de um esquimó no Alasca, de um agricultor no Cáucaso, de um missionário em Uganda, de um pescador no Mar do Norte. 

O regionalismo é sempre descritivo, demonstrativo, quer mostrar algo que os outros talvez não conheçam. Muitas vezes é lido e admirado apenas pelo que tem de exótico. Muitas vezes fica na história da literatura, não pelo que tem de literário, mas pelo que tem de etnográfico, de documental.

Quem aprofunda os personagens, os conflitos psicológicos, sociais, econômicos, etc., torna-se universal. O “universal” é algo profundo, como um lençol de petróleo. Obras superficiais não o alcançam. O universal está dentro das pessoas, é o conflito humano, que é basicamente o mesmo; é o “inconsciente coletivo”, são os medos, os desejos. 

Superficial é quando você descreve um cangaceiro ou um agricultor que são meras figuras, que agem de forma previsível, convencional; são “cangaceiros” entre aspas, “lavradores” entre aspas. 

Se você projeta num personagem desses tudo que você sabe sobre o ser humano, ele pode se tornar tão universal quanto um personagem de Shakespeare ou de Balzac.

Machado de Assis é um ótimo exemplo de autor regional que atingiu, por ser profundo, uma dimensão universal. Toda a obra literária de Machado ocorre numa região limitada, num raio de algumas dezenas de quilômetros quadrados, na cidade do Rio de Janeiro. Só sai desse âmbito para descrever lugares exóticos e imaginários. 

Machado é tão regional quanto José Lins do Rego. E ambos são universais, porque foram fundo nos personagens e nas histórias contadas, não se limitaram a descrever as coisas de fora.





1683) Os movimentos literários (3.8.2008)



Os movimentos literários podem surgir de várias maneiras. Existem os movimentos programáticos, produto de um grupo de pessoas que vivem em estreita convivência, geralmente têm um líder, colaboram intensamente uns com os outros, e atuam na imprensa através de manifestos, declarações públicas, editoriais (quando publicam revistas), etc. E existem movimentos totalmente diversos: são reconstituídos anos depois por historiadores e críticos, que descobrem, “a posteriori”, traços em comum nas obras de autores que na melhor das hipóteses só se conheciam indiretamente, mas não tinham nenhuma atividade coordenada, coletiva.

Talvez caiba uma distinção entre “escola” e “movimento”. Uma escola seria uma forma coletiva de fazer literatura, praticada à distância por autores que se relacionam de maneira indireta. Aprendem uns com os outros, mas as suas descobertas se dão através de uma rede de influências recíprocas, sem haver uma militância propriamente dita. Certas formas de narrar ou de escrever ganham evidências, e novos autores passam a adotá-las por que se identificam com elas, ou pela admiração que sentem pelos autores que as praticam, ou porque acham que participar daquela “nova onda” ajudará a torná-los conhecidos. Os motivos são vários, mas uma escola é basicamente um conjunto de influências indiretas, e de natureza majoritariamente literária. Seria o caso do Realismo, do Romantismo, etc.

Já um “movimento” pressupõe algo mais ativo, mais dinâmico, mais interligado. Autores que fazem parte de um movimento entram em contato direto, tornam-se amigos, freqüentam a casa uns dos outros ou freqüentam os mesmos ambientes (bares, restaurantes, clubes, festas, academias, etc.). Essa mistura entre o literário e o pessoal exige deles um envolvimento maior, e eles passam a ter uma ação que só pode ser descrita como política. Entram de maneira organizada e consciente na política literária: deflagram polêmicas através da imprensa, pressionam editores a publicar suas obras, defendem-se dos ataques dos críticos, redigem e publicam manifestos coletivos, e, principalmente, fazem tudo isto sob a égide de um nome: o Surrealismo, o Nouveau Roman, a Poesia Concreta, o Modernismo, a Ficção Científica...

O corolário disto é que movimentos podem ser criados artificialmente, escolas não. Um editor interessado na produção de certo tipo de literatura pode investir pesadamente em uma dúzia de autores, inclusive fornecendo-lhes (ou incentivando-os a criar por conta própria) um rótulo, um manifesto, uma plataforma estética e ideológica... A criação da ficção científica nos anos 1920-1940 teve algo deste espírito, mas, curiosamente, o que movia esses editores (Hugo Gernsback, John W. Campbell, Horace L. Gold) era menos o interesse comercial do que o sonho futurista de influenciar a mentalidade de uma população. Esses editores, Campbell principalmente, acreditavam no vôo espacial, por exemplo, e usaram os jovens autores que os cercavam (Asimov, Heinlein, etc.) como os profetas de um movimento que ainda hoje não se esgotou.

1682) Nós, ou seja, eu mesmo (2.8.2008)





Reclamam às vezes da minha disposição em meter o chanfalho em diversas categorias de pessoas: os políticos, os militares, os jogadores de futebol, e assim por diante. Defendo-me dessas acusações com o mais nobre dos argumentos, a liberdade de expressão, e com o mais acessível deles, a obrigação de escrever todo dia.
 
Nós, escritores... nós, brasileiros... nós, os homens... Tudo isto são os plurais humildes, de uso obrigatório por quem tem equilíbrio moral para exercer a crítica. 


Isto nada tem a ver com o chamado “plural majestático” com que os reis se auto-referem; “Nós consideramos que, para o bem do império...” O plural monárquico sempre me pareceu muito mais chique do que trono, coroa e cetro. Os reis sempre se referem a si próprios no plural, como se fossem uma Santíssima Trindade da tradição bíblica, ou uma Tríade da ficção científica. 


Por outro lado, o irreverente Mark Twain disse certa vez: “O uso do plural majestático só deveria ser permitido aos reis, aos presidentes, aos editores, e às pessoas que hospedam uma solitária na barriga”. 


Mas a exceção que defendo é a de quando estamos fazendo uma crítica a uma categoria inteira. Porque incluindo a si mesmo nessa categoria o crítico deixa claro que não está legislando em causa própria, não está salvando a própria pele. 


Além disso, tenho que aduzir um elemento que não sei se é sempre perceptível ao leitor: em geral, eu me incluo nas críticas que eu próprio faço. Por exemplo: “Nós, nordestinos, não valorizamos o forró pé-de-serra...” Embora acreditando que eu, sim, o valorizo, incluo-me na crítica porque provavelmente eu poderia fazer pelo forró pé-de-serra muito mais do que faço, e portanto tenho que colocar em mim uma das numerosas carapuças que estou distribuindo.


Criticar os outros é mais fácil do que criticar um grupo do qual nós mesmos fazemos parte. Em contrapartida, criticar nosso próprio grupo é muito mais útil, porque estamos contribuindo para melhorá-lo, ao passo que criticar um grupo adversário ou distante não parece render os mesmos dividendos.


Diz-se que certa vez alguém disse uma graçola diante da Rainha Vitória, e a comandante do império britânico retrucou: “Nós não achamos graça alguma”. Não há dúvida de que a rotunda soberana se considerava a encarnação viva da Inglaterra.


Ninguém mais, para o escritor do Mississipi, poderia considerar-se plural a esse ponto. E ele está muito certo. Quem mais pode falar de si próprio usando o “nós”? Um esquizofrênico? Um par de irmãos siameses?


Incluir-se no grupo dos criticados deixa bem claro que o objetivo da crítica não é dizer “eu estou certo, vocês estão errados”. E sim, numa crítica que se preza, dizer: “Existe o certo, que é um ideal ao qual todos nós aspiramos, e existe o nosso modo de agir, que pode ser aperfeiçoado para que possamos todos chegar lá”. É a única crítica que vale a pena fazer.







1681) “Encarnação do Demônio” (1.8.2008)



Fui à pré-estréia carioca deste novo filme de José Mojica Marins, o retorno triunfal de Zé do Caixão, que nos anos 1960 foi o grande personagem do nosso filme B de terror com filmes como À Meia Noite Levarei Sua Alma (1963), Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967), O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1967) e outros. Perseguido pela censura e pela igreja, Zé do Caixão dividia a crítica. Uns o achavam violento, tosco, de mau gosto. Outros (como Glauber Rocha) o consideravam um talento bruto, bem brasileiro, e com aquilo que Borges chamava de “fulgor satânico”.

Mojica fez inúmeros filmes menores na Boca do Lixo paulistana, inclusive filmes pornô. Participou como ator de filmes alheios (como no extraordinário, e esquecido, O Profeta da Fome de Maurice Capovilla) e agora retorna de forma triunfal. O projeto de Encarnação do Demônio existia há mais de quarenta anos, antes mesmo do nascimento de seus atuais produtores, Paulo Sacramento e Fabiano Gullane, como eles lembraram antes da sessão.

O filme de Mojica tem de tudo: câmaras de tortura, terreiros de macumba, chacina policial, rituais violentos que nada devem a Hannibal Lecter ou ao Massacre da Serra Elétrica. Neste sentido, a evolução técnica e a produção cara (1,8 milhão de reais, quando o próprio Mojica confessa que teria feito o filme com 120 mil) deixam o filme mais parecido com os filmes de terror norte-americanos de hoje e menos parecidos com os filmes toscos, desajeitados, mas visceralmente pessoais, que Mojica fazia. Em 1970, não havia ninguém no Brasil cujo cinema parecesse com o dele. Hoje, continua a não haver, mas seu filme corre paralelo ao cinema de terror “gory” que enche hoje as nossas telas.

O lado positivo dessa mudança é que os antigos filmes de Zé do Caixão eram uma espécie de viagem pessoal, delírio particular do cineasta. Trechos deles aparecem em “Encarnação do Demônio”: em preto-e-branco, mostrando um Mojica jovem, magrinho, de barba preta. Era o tempo em que Zé do Caixão sentava à janela, vendo passar a procissão da Sexta-Feira Santa e devorando um blasfemo pedaço de galinha. Seu filme atual, contudo, está visceralmente misturado à violência e ao terror de São Paulo: crianças que cheiram cola, policiais que fuzilam favelados, garotas góticas que freqüentam cemitérios. Os filmes de Mojica nos anos 1960 eram contemporâneos dos porões da tortura na ditadura militar; o filme de hoje tem o seu próprio porão de tortura, no meio de uma favela miserável onde Zé do Caixão vive seu pesadelo de super-homem maligno.

As cenas de violência são para espectadores de estômago forte. Outras cenas insólitas mostram o talento selvagem do diretor, como a cena da mulher enforcada num galho de árvore que abre os olhos, volta à vida, corta a corda com uma faca e cai de pé, para perseguir Zé do Caixão. Uma imagem de pesadelo, mais forte que as cenas de tortura, e típica da imaginação “uncanny” de Mojica.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

1680) Imagens clássicas da FC (31.7.2008)




No imenso areal, sob um sol abrasador, ergue-se o corpo gigantesco na Estátua da Liberdade, enterrada até a cintura, erguendo sua tocha de pedra, toda avariada. Esta imagem dispensa explicações. Sabemos logo que centenas ou milhares de anos terão se passado, e que no mundo do futuro isso será tudo que sobrou da ilha de Manhattan. A maioria dos espectadores recordará esta como sendo uma das imagens clássicas da ficção científica no cinema. Ela é o clímax do filme O Planeta dos Macacos de Franklin J. Schaffner (1968). (A imagem pode ser vista, p.ex., aqui: http://fatadelic.wordpress.com/2007/12/05/you-know-the-saying-human-see-human-do/

Qualquer sujeito que usasse hoje uma imagem tão famosa seria imediatamente acusado de plágio. Mas tenho aqui sobre a minha mesa o exemplar de fevereiro de 1964 da revista Amazing Stories, cuja capa, desenhada por Alex Schomburg, mostra (quatro anos antes do filme) a mesmíssima imagem, só que as ruínas da estátua são contempladas por astronautas que acabaram de descer de um disco voador.




Um leitor esperto irá argumentar que o filme dos macacos se baseia num romance de Pierre Boulle, de 1963, e que talvez Schomburg tenha colhido de lá a idéia.

Mas uma visita ao websaite “The Last Flight of Icarus”, relacionado ao filme, nos mostra (http://www.goingfaster.com/icarus/faq.html) que o mesmo Schomburg havia desenhado outra capa com o mesmo tema para a revista Fantastic Universe em 1953! O saite mostra as duas capas de Schomburg.



Quando a gente começa a pesquisar coisas desse tipo, é como extrair conchas ou cacos de cerâmica de um sambaqui. Quando mais cava, mais aparece.

Uma olhada na indispensável Encyclopedia of Science Fiction de Peter Nicholls & John Clute, mostra, no verbete relativo ao filme, este comentário, sobre a imagem da estátua semi-soterrada: “uma imagem maravilhosa, talvez inspirada pela capa que Hubert Rogers fez para a revista Astounding Science Fiction, em fevereiro de 1941”.



Não contei conversa, cliquei no Google e fui lá (http://storypilot.com/sf/art/asf/asf-194102.jpg). De fato, lá está a imagem de um casal em roupas de tarzan-e-jane, remando numa canoa, aproximando-se de uma praia na qual se ergue o familiar pedestal de pedra, sendo tomado pelo matagal, e a familiaríssima estátua, meio estragada mas reconhecível. A única diferença é que não está meio enterrada; mas trata-se, claramente, da única ruína sobrevivente de uma grande cidade.

Chegando em 1941 resolvi parar, pois só o que me faltava era ir parar num romance de FC anterior a 1886 (ano da inauguração da estátua) onde ela já aparecesse cumprindo esse papel de derradeira ruína de nossa civilização.

Cópias, imitações, influências, plágios, empréstimos compulsórios, homenagens à revelia, tudo isto é o feijão-com-arroz da indústria cultural. No caso da FC, é o processo através do qual se criam e se perpetuam os nossos mitos sobre o Espaço e o Tempo.





1679) O pensamento animal (30.7.2008)



(Sue Savage-Rumbaugh)

Cientistas vivem pesquisando (com verbas minguadas e pouco interesse da imprensa) a comunicação entre seres humanos e animais. É sintomático que a gente seja capaz de acreditar em “inteligência artificial”, algo produzido em laboratório com chips e fiação elétrica, e não se interessa pela inteligência de criaturas que convivem conosco há milhões de anos. Já defendi a necessidade de pesquisas para que pudéssemos nos comunicar com os macacos (http://mundofantasmo.blogspot.com/search?q=0095). Arrependo-me do modo impudente com que tratei nossos semelhantes, e temo que em poucas décadas, já alfabetizados, eles leiam aquela coluna e cuspam no meu túmulo.

Leio agora na New Scientist de 24 de maio que cientistas como Sue Savage-Rumbaugh, da Georgia State University (Atlanta) têm feito progressos notáveis na comunicação com os chimpanzés, principalmente os chamados chimpanzés-anões (“bonobos”). Os macacos já são capazes de entender centenas de palavras inglesas e mesmo frases de construção complexa. Não as repetem, porque seu aparelho fonador é diferente do nosso; mas entendem instruções, cumprem ordens. Diz a revista que “usando quadros com figuras, eles participam de conversas entre dois, três ou quatro interlocutores, entre humanos e macacos, falando sobre objetos, intenções, ações e estados de espírito”.

Os chimpanzés-anões são capazes de entender frases que contenham um verbo e três substantivos: “Pode levar o chocolate para a sala do meio?” Bonobos chegaram a inventar palavras compostas, reunindo “água” e “ave” para designar “pato”. Há um animal chamado Kanzi que é capaz de entender centenas de frases, como “mostre-me a bola”, “traga a figura com a cobra” ou “posso beliscar seu bumbum?”. A Dra. Savage-Rumbaugh cita uma ocasião em que ela entregou a Kanzi uma cenoura, pedindo-lhe que a colocasse na água. O chimpanzé jogou a cenoura pela janela. Ela achou que ele não tinha entendido, e repetiu o pedido. O chimpanzé apontou para fora: estava chovendo.

E não só chimpanzés. O mesmo artigo cita um papagaio chamado Alex, que foi estudado durante 20 anos numa universidade em Massachusetts. Alex conhecia as palavras que designavam mais de 50 objetos, sete cores e cinco formas geométricas. Entendia os números de 1 a 10, embora não soubesse contar em seqüência; e (o artigo afirma, mas não explica como) compreendia o conceito do zero, que mesmo para a humanidade demorou milhares de anos para surgir. Infelizmente, Alex morreu no ano passado.

Se dedicássemos a isto meros 10% do que dedicamos à informática (não que eu tenha nada contra ela!) talvez chegássemos a resultados surpreendentes. Dizemos que os animais não são inteligentes apenas porque eles não são inteligentes como nós, e nos maravilhamos com eles quando aprendem formas rudimentares de nossa apreensão do mundo. Não custaria nada tentarmos aprender um pouco o modo como eles próprios pensam, lembram, sentem, se comunicam.

1678) Bushismos (29.7.2008)



Um dos passatempos da imprensa, nos regimes democráticos, é ridicularizar sem dó os chefes de governo. Alguns são mais fáceis de ridicularizar do que outros. Rir de Itamar Franco, por exemplo, era mais fácil do que de Fernando Henrique. Hoje em dia, o presidente Lula, com seus improvisos zé-limeirianos e seus freqüentes solecismos faz a festa da imprensa metida a chique, que volta e meia brada: “Estão vendo no que dá, botar um operário nordestino no poder?!” Nos EUA, George W. Bush é outro que não pára de fornecer material a quem o ridiculariza, a tal ponto que a imprensa criou o termo “bushismos” para designar seus erros de concordância, suas deficiências de informação, suas falhas de lógica ou simplesmente suas frases mal-arrumadas que acabam dizendo o contrário do que pretendiam.

Uma coluna na revista eletrônica “Slate” atualiza periodicamente os bushismos do Líder Deles. No dia 15 passado, George W. descreveu assim a brutalidade dos terroristas afegãos: “Eles não têm desrespeito pela vida humana”. Como todo sujeito que não sabe onde está nem o que está fazendo, Bush parece estar pensando sempre numa coisa e no seu oposto. Volta e meia, é o oposto que lhe escapa pela boca. Suas construções frasais também geram sentidos inesperados, como quando ele disse em 26 de junho: “Lembro-me de ter me encontrado com a mãe de uma criança que foi raptada pelos norte-coreanos aqui mesmo no Salão Oval da Casa Branca”. Garanto que metade da população diante da TV derramou um pouco de café ou cerveja no sofá, diante da ousadia dos comunistas orientais.

Bush é o seu mais ferrenho contraditor. Disse ele, em 2 de julho: “Deve o regime do Irã – deve ele ter o direito soberano de possuir energia nuclear para fins civis? Bem, tipo assim, se eu fosse vocês, era o que eu estaria me perguntando. E a resposta é: sim, eles têm”. Ainda estou esperando para ver no YouTube uma seqüência de vídeos em que o nosso bravo George W. discute consigo mesmo.

A afabilidade diplomática de “Dubya” (como é chamado o presidente, devido ao modo como pronuncia a letra “W”) é muitas vezes traída pela sua geografia. “Temos excelentes relações com os países de nossa vizinhança,” anunciou ele em plena Eslovênia. E em Ghana ele afirmou: “Muitas vezes me perguntam que diferença faz para os EUA se há pessoas morrendo de malária num lugar como Ghana. Faz muita diferença. Faz muita diferença, moralmente, e é do nosso interesse nacional”.

Bush, como Reagan, reforça minha teoria de que o Presidente é quem tem menos poder nas democracias atuais. O Presidente é um mero relações públicas, que faz discursos na TV. Cabe-lhe ser o porta-voz dos que realmente governam, os quais lhe explicam as decisões que precisa tomar. Como ele mesmo disse, em 12 de maio: “Vai demorar muito até uma pessoa esperta descobrir o que aconteceu aqui neste Salão Oval”. Quando descobrir não vai fazer diferença. Haverá outro cumprindo o mesmo papel.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

1677) Se beber, não dirija (27.7.2008)



As estatísticas sobre a recém-promulgada Lei Seca no trânsito têm sido as melhores possíveis. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou uma complicada estatística ao fim da qual anunciava que a redução de mortes no trânsito nas últimas semanas foi de 57%. Eu considero isto um fato da maior importância. O cálculo foi feito comparando os fins de semana paulistanos (5a a domingo) antes e depois da vigência da lei. Segundo a Folha Online, “a soma dos 12 dias dos últimos três finais de semana do mês de junho é de 35 mortes, numa média de 2,91 mortes/ao dia. O cálculo dos outros oito dias (26 a 29 de junho, e de 3 a 6 de julho), dá um total de 10 mortes, numa razão de 1,25 mortes/ao dia. A diferença dessas duas médias -- de 2,91 a 1,25 -- é que aponta a redução de 57%.”

Note-se que a lei não proíbe o cara nem de beber nem de dirigir. Apenas estabelece uma penalidade para quem for apanhado fazendo as duas coisas juntas. Isto deveria valer para as drogas em geral. Se o sujeito quer usar, que use, mas qualquer bobagem que ele fizesse “sob o efeito” deveria ser punida com muito maior severidade, se fosse visível uma relação entre a droga e a bobagem. Como é o caso de bebida e carro. O álcool perturba a capacidade de guiar, mesmo que pessoas diferentes reajam ao álcool com maior ou menor resistência.

Temos a tendência e encarar as coisas com bom-humor, principalmente no que se refere ao nosso lazer e à nossa diversão. O nosso folclore urbano de mesa de bar é cheio de histórias divertidas sobre bêbados ao volante, como aquela do carro que se espatifa num poste, os bombeiros retiram dois bêbados das “ferragens retorcidas”, perguntam qual dos dois vinha dirigindo e um deles responde: “Não sei, vínhamos ambos no banco de trás”.

Parece brincadeira? Não é assim que pensam os leitores dos jornais da cidadezinha canadense de Abbotsford, onde recentemente dois homens foram presos porque dirigiam embriagados. O problema é que vinham os dois dirigindo o mesmo carro. Harvey Miller, de 43 anos, não tem as pernas, e vinha manobrando o volante, enquanto seu amigo Edwin Marzinske, de 56 anos, pisava nos pedais. O comportamento errático do veículo atraiu os guardas de trânsito, que constataram o estado de embriaguez dos dois motoristas. Ambos recusaram-se a receber a multa. “Eu não vinha dirigindo, pois não posso frear nem acelerar,” dizia Miller, e seu colega afirmava: “Eu não vinha dirigindo, nem toquei no volante!” O jornal não explica qual a punição salomônica que os dois devem ter sofrido.

O que não deixa de me lembrar outra história, provavelmente apócrifa, sobre os tremendos pileques que Chico Buarque e Tom Jobim costumavam tomar juntos. Num certo amanhecer, encerrando uma carraspana homérica, os dois voltavam de carro para Ipanema quando Chico advertiu: “Tom, vai mais devagar, a gente bebeu bastante”. E Tom respondeu: “Quem está dirigindo é você”.

1676) A elite invisível (26.7.2008)



(Ladder of Heaven de John Klimakos)

Quando a vida social é vista como uma escada, procuramos escalar os degraus de cima, e fugir aos de baixo. Ao percebermos as diferenças sociais, muda o uso de verbos como “subir” ou “descer”. Subir é bom, descer é uma catástrofe, porque desde cedo nos acostumam a ver a sociedade como uma pirâmide: um Topo onde está uma elite que tem tudo, uma Zona Média em que estamos nós, e uma Base onde estão aqueles que, na melhor das hipóteses, conseguem arranjar um emprego que lhes suga 12 a 14 horas por dia, mas evita que morram de fome. Quando nos ensinam a ver o mundo dessa forma, não há dúvida de que somos tomados de um desejo incoercível de subir. Talvez nem mesmo pela sedução dos paraísos de consumo e de hedonismo que possam nos aguardar lá em cima, mas pelo mero terror de ficarmos presos a um “aí em baixo” que para nós, da classe média, é ameaçadoramente próximo.

“Subir” tem dois objetivos: reconhecimento social e recursos financeiros, os populares “Fama e Fortuna”. São diferentes mas interligados, quanto mais a gente consegue de um mais fácil fica conseguir do outro. Algumas pessoas se contentam com um. Muitos artistas, por exemplo, passam a vida inteira numa pindaíba de dar dó, mas são felizes porque concedem entrevistas diárias, são chamados para animar bailes de formatura ou desfiles de modas, dão autógrafos no supermercado... E outras pessoas se contentam com a fortuna, como é o caso dos grandes banqueiros e investidores cujo nome sempre aparece nas listas dos “Cem Mais Ricos” e cuja foto nunca sai no jornal, que eles não são bestas.

Eu reconheço a existência e o peso dessa concepção verticalista da sociedade, mas questiono frontalmente seus critérios. Nunca tive como objetivo a escalada social. Nunca tive vontade de sair da classe média onde nasci. Não só nunca procurei ficar rico, como sempre evitei, cuidadosamente, qualquer atividade que pudesse me levar nessa direção. Nunca quis ser publicitário, por exemplo, para desconsolo de vários amigos que me profetizavam um futuro brilhante, tostando-me em Ibiza ou Aruba, tomando daiquiris, rodeado de havaianas dançando hula-hula. Não quis. Não combino.

Acho que o nosso objetivo (se não de todos, pelo menos dos sensatos) deveria ser uma ascensão, mas não uma ascensão rumo ao topo da pirâmide social, mas rumo a uma Elite. Nos seus textos em prosa, Fernando Pessoa se refere à existência de uma elite de seres humanos superiores, que possuem saber mas não o ostentam, que possuem poder mas só o exercem submetendo-o ao equilíbrio. Essa elite não consta de gênios, reis ou banqueiros. É formada por pessoas de ocupações modestas: escriturários, alfaiates, donas de casa, mestre-escolas, tipógrafos. Não são intelectuais: são sábios. Não são aristocratas: sua nobreza é a do espírito. São essas pessoas invisíveis o esteio de sabedoria e ética que mantém a humanidade a salvo de si própria. É a essa Elite que espero um dia pertencer.