quarta-feira, 18 de outubro de 2017

4279) A Mansão Onde os Deuses Vão Morrer (18.10.2017)




Para alguns críticos, um dos elementos principais da “literatura gótica” é o fato de que essas histórias se dão em torno de um Edifício. É no Edifício que está entranhada a essência do Gótico, que seria (numa simplificação extrema) uma narrativa trágica onde ocorre uma invasão do sobrenatural no mundo físico e uma invasão do Passado no Presente.

(Digressão: Quando dizemos “um Edifício”, vejam a importância dessa inicial maiúscula, é quase uma metalinguagem holográfica do Edifício propriamente dito, com o “E” sugerindo uma estrutura vertical (“um retângulo de pé”), com andares superpostos.)

O Edifício em questão, quando a história é ambientada no tempo renascentista ou medieval, é geralmente um Castelo, uma Torre, uma Fortificação, um Templo, uma Abadia. Quando situado num ambiente urbano, pode ser um Palácio, uma Mansão, uma Catedral... Romances modernos de terror gótico têm usado com sucesso um Hotel, um Manicômio, uma Prisão, uma Escola, um Hospital, um Centro de Pesquisas, uma Biblioteca.

Lápis e papel na mão, e cada um lembre os seus exemplos preferidos, porque são de perder a conta.

Essa literatura nos propõe de início a existência de um Espaço limitado, fechado, de contornos bem definidos, algo que se avista sem dificuldade e que se destaca inequivocamente da paisagem-fundo ao seu redor. Um bloco de realidade mais compacto do que a realidade que o cerca.

E ao mesmo tempo esse Espaço é um bloco que condensa em si um Passado inteiro, uma História inteira. É um lugar saturado de Passado a tal ponto que o peso desse Passado altera o fluxo do Tempo. Distorce as relações temporais comuns, assim como um objeto de grande massa física as distorce no espaço sideral.

(Digressão: Tá vendo? Só esta tesezinha aí em cima poderia resultar num belo coffee-table book de umas 200 páginas, belamente ilustrado em cores com exemplos da literatura, do cinema-TV e das artes plásticas; e copiosas citações de textos. Alguém, que não eu, certamente botará um dia essa grana no bolso.)



Malpertuis (1943), de Jean Ray (1887-1964) é um romance famoso do gênero, que catei durante algum tempo e somente agora pude ler. Não sei de nenhuma edição brasileira até hoje. A única edição à venda na Estante Virtual (por 120,00, um preço justo) é a de La Renaissance du Livre (Bélgica), que reúne o romance e mais as coletâneas Les Contes du Whisky e Autres Histoires Noires et Fantastiques (os três livros juntos dão cerca de 600 páginas).



Malpertuis é o nome de uma misteriosa mansão decadente, numa cidade soturna, onde um homem muito rico, em seu leito de morte, convoca vários parentes e conhecidos e deixa para eles uma fortuna monumental a ser igualmente dividida entre todos, com uma condição: que todos venham morar ali para sempre, sem direito a ir embora.

Passam a acontecer então episódios grotescos, sangrentos, eróticos, inexplicáveis. Criaturas monstruosas ou meramente bizarras aparecem e desaparecem. A narrativa é a superposição de vários manuscritos redigidos em épocas diferentes, e montam um quebra-cabeças que se elucida aos poucos.

O tema central do romance, que se esclarece no final, é a morte dos deuses das religiões antigas, que começam a definhar e a se extinguir depois que os seres humanos deixam de acreditar neles. Não estou dando nenhum spoiler, porque o próprio autor, nas copiosas epígrafes de antes de cada capítulo, reitera esse tema sem cessar.

Malpertuis seria um predecessor ilustre de American Gods (Neil Gaiman, 2001) que também mostra deuses antigos vivendo hoje como seres humanos banais, envelhecidos, ainda metidos a arrogantes mas já sem muitos poderes.

Há uma adaptação cinematográfica interessante, dirigida por Harry Kümel em 1971, e que pode ser vista aqui, numa versão dublada em espanhol:


O filme realça o aspecto bizarro da narrativa, que tem algo de filmes como Delicatessen (Jeunet & Caro, 1991) e de romances clássicos de fantasia como a trilogia “Gormenghast” de Mervyn Peake (1946-50-59). São espaços fechados porém gigantescos, “maiores por dentro do que por fora”, como a Mansão Edgewood imaginada por John Crowley em outro clássico da fantasia, Little, Big (1981).

Jean Ray é um autor interessante, um produtor de pulp fiction em série que assimilou muito da excêntrica imaginação fantástica belga (a que já me referi em meu artigo aqui sobre James Ensor). Diferentemente da maioria dos autores góticos, que seguem o modelo vitoriano de livros gigantescos e parágrafos intermináveis, ele escreve uma prosa rápida, quase cinematográfica, de parágrafos curtos, uma narrativa cheia de sugestões visuais mas sem excesso de detalhe.


Ele hoje é mais famoso pela gigantesca série de aventuras de “Harry Dickson, le Sherlock Holmes américain”, que ele manteve com enorme sucesso entre 1920 e 1940. Uma série que Alain Resnais tentou filmar durante muitos anos, mas ao que parece não conseguiu levar adiante o projeto.






domingo, 15 de outubro de 2017

4278) "Mar Paraguayo" de Wilson Bueno (15.10.2017)




Neste ano completam-se 25 anos de lançamento deste livrinho fora-de-esquadro de Wilson Bueno, Mar Paraguayo (São Paulo: Iluminuras, 1992), surgido sem alarde, mas que durante esse período manteve uma presença inquietante na atenção e na memória de muitos leitores.

Presença reforçada agora com as matérias de capa feitas pelo periódico Cândido (mês de maio 2017), da Biblioteca Pública do Paraná. Mar Paraguayo é um volume de menos de 100 páginas, e sua curiosidade principal é o multidioma em que foi escrito.

O livro tem, misturadamente, trechos em português, espanhol, guarani e um meta-portunhol que a rigor não pertence a nenhuma dessas três “línguas de verdade”, cujas ortografias e gramáticas foram juntas pro espaço. A prosa do autor transita pelas três línguas sem pagar pedágio a nenhuma.

Tive um breve contato com Wilson Bueno quando ele editava a revista literária Nicolau em Curitiba e publicou um texto meu (no. 26, 1989). O lançamento deste livro, alguns anos depois, foi comentado na imprensa com a surpresa inevitável diante de um livro de idioma não apenas misto, mas “bárbaro”, e as comparações inevitáveis com o também curitibano e “bárbaro” Catatau (1975) de Paulo Leminski.

Mar Paraguayo é basicamente o monólogo de uma mulher que se defende de uma possível acusação de assassinato pela morte de um “velho” com quem ela vivia. Um “viejo” lúbrico mas impotente:

(...) el sexo de total impossibilidad. El deseo en el contudo segue existindo como una pierna amputada que prosseguisse coçando. (p. 20)

Um bordão recorrente do livro é a afirmação de que “eu não matei el viejo”, embora ela confesse o tempo todo que o traía e que era apaixonada por “el niño”, um rapaz mais jovem e atlético que lhe faz uma caridade de vez em quando e por quem ela é arriada dos quatro pneus.

...hay que devorarlo a el siempre imprevisto: dibujado en la tanga su sexo ostensivo: mas sobretodo los ojos verdes contra la cara de risa y sol: lo tórax en los embates del viento y del lamiento: a bailar en la siesta: sueño: soy su araña: álgebra: pronta jibóia: toda me enlambe su língua destra: todo lo unto de cuspo y baba: humores: suores: los miasmas: espasmos: la siesta me pone abrasado el útero profundo: (...) (p. 47)

E este recurso do “dois pontos”, usado com frequência ao longo do texto, transforma-o num trajeto sem fim de corredores que desembocam em corredores, ou frases completas que veem brotar de dentro de si frases maiores, como bonecas russas às avessas. É um recurso de pontuação ainda mais vertiginoso do que a mera vírgula das enumerações comuns.

A narradora sem nome vive com o “viejo” no balneário de Guaratuba, por onde “el niño” desfila seu físico de surfista, e ela, sabendo-se suspeita da morte do velho, desfila seu rosário de explicações que tanto a justificam quanto mais a incriminam.

Ela se confessa velha, feia, gorda, mas indomável:

“madona macunaíma” (p. 66), “puritana putana” (p. 60)

...pero nunca que abandoné mis vicios necessários e insubstituíbles en troca de estas cosas desatinadas de la estetica y del capricho. (p. 65)

O ciúme do rapaz a corrói por dentro quando ela pragueja contra as bonitinhas da praia:

...casi impossible debujar lo que sea su boca entranhada en la boca de esta chica ordinária, que se va en vano por las playas, que exibe sus tangas ecandalosas y de resto vulgares, ai que ya deseo mi madre, ai que es intransponível viver, casi imposible debujar como su piel que es mi piel toda se eriçe por esta niña sin imaginación o personalidad que es apenas un cuerpo-de-miss y nada más. (p. 52)

O velho a sustentou por um tempo, foi seu arrimo, depois virou um peso, e não há leitor que duvide que ela teria sido capaz, sim, de dar cabo dele, nem que fosse para ficar

...en nesta casa que la muerte del viejo me legô – assim como uno triunfo desnecessário. Lo mismo lo digo de nuestra conjunta corriente conta en el Banestado – en todo sentido, fundamental. (p. 51)

O que a narradora-confessional consegue, no entanto, é redimir-se e transcender-se via linguagem, porque sua prosa impura, ou “impúrpura” (como diria Chico César) é de um furor poetizante que bota abaixo as regras e se impõe pela mera força do desejo verbalizador:

Ah, mi felicidad es un cristal ante el sol, advinadora esfera cargada por el futuro como una bomba que se va a explodir en los urânios del dia. (p. 15)

Que terror puede ser la beleza! (p. 26)

El susto es el agudo espectro del pânico, una cosa asi como se fuera su íntimo fantasma, una cosa cerca de lo ante-ante-escabroso, el ante de los antes de antes. Los ancestrales y los mayores. (p. 31)

Com certas “banguelas” ladeira abaixo num torvelinho verbal vertiginoso onde não se sabe mais o que é memória, o que é léxico, o que é invenção:

...como um juego-de-jugar: pimpirrota, piribela floral, loculho sierva, cincinati, abrolhos, carmencinda, madressilva, pirilampos, antanas bástistas, casamarilla, locos complutos, boludo lorgo, lacalhe-seda, amarelinhas, esconde-atrás, noclins ereiras, marcha adelante, los cantantes juegos de rueda, teresinas-de-jesus, las teresinas, entraçada gaucha, guapa glauchas, catatéicos, constreros, filíciquis, rosaes, oscuro mistério de fábula original, las tranças, las troupas, helicáreos rans, duncans, vitrinas, duendes, vagaus, pilvos conscentes, broquílides silfos, lunfens de lérias, lunfens vivaces, como um juego-de-jugar (...) (p. 35)

(...) la fala ancestral de padres y avuêlos que se van de infinito a la memoria (p. 42)

A marafona do balneário é uma dessas entidades narradoras sem físico, só voz, cujo corpo invisível vai sendo tornado concreto pela voz com que fala, como o do narrador do clássico “Meu Tio, o Iauaretê” de Guimarães Rosa (1961; em livro, 1969), que é outra narração em português malassombrada por indigenismos em borbotão.

Experiência rara de prosa poética multilíngue, o livro e o seu autor são comentados no Cândido em artigos de Márcio Renato dos Santos e Luiz Manfredini, revelando a fortuna crítica que se amplia aos poucos ao seu redor, em estudos de Antonio R. Esteves, Douglas Diegues, Sérgio Medeiros, Carlos Henrique Schroeder e outros. Além das traduções do livro na Argentina, México, Chile e EUA.

No sê, solamente lo que miro al derredor es esto lento abismar-se del sol en el mar, suprema rueda de fuego y metal a la manera de una herida abierta en los pentimientos del cielo. (p. 50)

Que es el amor? Una solitária rosa en el desierto? Ô el simples sentimiento odioso de que es impossible, de que es impossible uno vivir sin que caiga y se levante, sin que levante-se y se caiga de nuevo, recorriente... (p. 53)

...ô ya sea mordida por el escorpión vivo de la autêntica felicidad. (p. 52)








quinta-feira, 12 de outubro de 2017

4277) Por que nunca li Kazuo Ishiguro (12.10.2017)



Coitado de Kazuo Ishiguro: entrou neste título como Pilatos no Credo. Podia ter sido Haruki Murakami, ou Yasunari Kawabata, ou Yukio Mishima, para ficar somente em alguns dos seus conterrâneos nobelizáveis.

A lista dos autores que nunca li daria alguns terabytes de arquivo “.rtf” e serviria como um excelente guia de estudos para a juventude dos próximos séculos.

Alguém me diz:

– BT, o que você acha da obra de Gilles Deleuze?

– Nunca li – respondo.

– Por quê?

E aí a conversa trava, porque não sei o que responder. Já quis ler. Já devia ter lido. Preciso ler! Seguramente lerei, daqui para o ano 2095.

Eu não tenho a menor idéia de por que não li esses caras, porque em tese todos me interessam, eu não tenho nada contra nenhum deles, não acho que sejam chatos, que sejam reacionários, que sejam incompreensíveis, que sejam entediantes.

Às vezes pego finalmente o livro para ler e não gosto, porque descubro que têm um desses defeitos, ou algum outro. Mas isso nunca me ocorre antes da leitura.

Ouço falar em “Peter Ackroyd”, em “Elisa Lispector”, em “Jane Austen”, em “Mário Palmério”, em “Harold Bloom”, em “Dyonélio Machado”, nesse pessoal que todo mundo lê e elogia, e sempre me dá uma vontade danada de conhecer a obra deles.

E não se fale na inacessibilidade dos livros, porque muitas vezes já tenho alguns na estante.

Acontece que “ler um livro de alguém” é um ato voluntário, uma decisão. “Não ler um livro de alguém” não o é. Cada livro pegado pra ler tem no outro lado da balança 100 livros que não tiveram essa sorte (ou azar). Ler um é cancelar a possibilidade de estar lendo os outros. E nem sempre estamos lendo “A” porque achamos que ele é superior ao restante do alfabeto. As razões para ler são milhões, e as razões para não ler, quase nenhuma.

Existem pessoas metódicas, que leem metodicamente, fazem listas de leitura e as cumprem fielmente. É uma questão de profissionalismo, que admiro.

O respeitável S. T. Joshi afirma que para escrever seu clássico ensaio The Weird Tale (1990) programou-se para ler tudo que foi escrito pelos seus autores estudados (Arthur Machen, Lord Dunsany, Algernon Blackwood, M. R. James, Ambrose Bierce e H. P. Lovecraft). O grau de detalhe com que ele aborda essas obras (às vezes várias dezenas de livros, no caso de alguns deles) dá a entender que leu mesmo tudo.

E existem leitores que só fazem isso quando estão trabalhando a sério sobre algum assunto, mas são totalmente caóticos nas leituras complementares. Eu, por exemplo, não tenho a menor idéia do que estarei lendo daqui a dois meses, quando terminar os livros que leio no momento. E conheço gente que tem os próximos 10 meses de leitura já escalonados: tantas semanas para o livro A, tantos dias para o livro B...

Em geral eu estou lendo um livro policial e vejo uma menção a um livro de história da II Guerra; encontro no sebo e leio no mês seguinte. Nele alguém fala da importância de um filme da época, e lá vou eu ler a biografia do obscuro diretor. O diretor discute uns assuntos interessantes que me levam a um livro de filosofia, e este a uma antologia de poetas gregos. Lendo os poetas gregos me lembro de um poeta uruguaio. E por aí vai.

Muita gente lê assim: lê por associação de idéias, às vezes por um tema, às vezes porque tem curiosidade por um país ou uma época e quer ler algo que tenha a ver com aquilo. Outras vezes lê por uma recomendação, ou por ser amigo do autor. Todo livro fervilha de razões para ser lido.

Essas pessoas leem com uma curiosidade inesgotável pelo mundo, sem plano de estudo, sem outra utilidade a não ser a de ficar sabendo, entendendo melhor certas coisas, vendo o muito com mais nitidez, ou com mais colorido, ou com mais nuances.

Leem como se fossem Correspondentes Estrangeiros vindos de outro planeta, e soubessem que a hora da volta se aproxima; e que nada poderão levar consigo a não ser o que está de fato consigo, o que se imprimiu na memória do seu corpo.








segunda-feira, 9 de outubro de 2017

4276) As metáforas agrícolas (9.10.2017)




Em todo tipo de linguagem e comunicação, as formas tendem a degenerar com o tempo. É o efeito da entropia.

As metáforas, por exemplo, degeneram em clichê. Todo clichê da linguagem (literária, jornalística, cotidiana, etc.) já foi uma imagem original e surpreendente. O sucesso a viralizou; o excesso a diluiu.

Imaginem quando alguém disse pela primeira vez: “O incêndio foi grande, mas os bravos soldados do fogo conseguiram apagá-lo!”  Ninguém (suponho) tinha usado isso antes. O editor, impressionado, bateu com o lápis na folha datilografada e disse ao jornalista: “Ih, rapaz, que imagem bonita essa aqui!”  Pronto.

Poucos anos depois o mesmo editor estava amassando uma lauda, jogando na cesta, e dizendo a algum novato perplexo: “Se disser isso de novo eu lhe boto na rua, ora que saco. Se é pra dizer um clichê desses, diga bombeiros e acabou-se.”

O tempo todo utilizamos uma imagem concreta para descrever algum processo ou situação abstrata.  Dizemos, por exemplo: “A história de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño, gira em torno de um grupo de poetas mexicanos de vanguarda”. 

A história, na verdade, não gira em torno de nada. Se é para vê-la em termos de um movimento físico, o mais que podemos dizer é que ela avança. Mas à medida que avança ela volta a mostrar, repetidamente, personagens e episódios já aparecidos antes. E assim existe uma semelhança com um movimento circular, ou em espiral ascendente (movimento helicoidal), algo que avança e retorna ao mesmo tempo.

Quando um historiador do século 22 ler nossas resenhas literárias ficará embasbacado diante do modo como as histórias, em nosso tempo, sempre “giravam em torno” de algo.

No momento em que uma expressão é usada pela primeira vez, pode produzir um pequeno choque de estranheza, que se reequilibra no momento em que o leitor reconheceu a validade da comparação. 

É o caso de expressões tipo “o Ibope está tomando o pulso da opinião pública”.  O leitor, um segundo depois, reconhece que “tomar o pulso” admite o significado extensivo de “verificar as reações, acompanhar o comportamento”. 

O uso da expressão se propaga e ela rapidamente se converte em lugar comum.  Daí em diante a usamos sem enxergar ao pé da letra a imagem que está sendo usada.

O Governo precisa arregaçar as mangas e resolver o problema do ensino básico?  Todos entendem o que estamos dizendo, mesmo que o Governo, como entidade abstrata e coletiva, não tenha mangas para arregaçar.  Arregaçar as mangas significa preparar-se para executar uma tarefa difícil, que demanda esforço. 

Do mesmo modo, se o interlocutor responde que já está na hora, porque há muito tempo as autoridades vêm botando panos quentes nesse problema, a analogia se processa automaticamente.  O que talvez não tenha acontecido quando ouvimos esta expressão pela primeira vez.  Talvez nos tenha custado um segundo de surpresa, e depois o entendimento, um “aaah...” dando sinal de que a comparação é válida.

Um dos usos mais arraigados na nossa fala cotidiana é o das metáforas agrícolas, que são nossa herança de um modo de vida com o qual temos familiaridade há milênios, mesmo que uma familiaridade indireta. 

Está na hora de colher os frutos desse investimento...

Estou em busca das minhas raízes culturais...

Este é um gênero literário cuja seiva já se esgotou há muito tempo...

Não quero entrar na seara alheia e discutir o que não entendo... 

Esse pessoal está semeando a discórdia para colher Poder...

O Parnasianismo foi quando o soneto floresceu mais intensamente em nossa poesia...

Usamos este tipo de linguagem no jornalismo, na política, na conversa informal.  Todos entendem o que estamos querendo dizer; ninguém imagina que estamos tratando de agricultura. 

A figura de linguagem deixou de ser figura em si, tornou-se invisível de encontro à paisagem abstrata do discurso.  É apenas o sentido abstrato que captamos.

Outra categoria rica de clichês é a da linguagem têxtil, pela semelhança (inclusive etimológica) com as características de um texto escrito.

A certa altura do romance, o autor corta o fio da narrativa para fazer uma longa digressão.

A história se desenrola no começo do século 19.

O livro de Fulano de Tal tem um estilo pouco brilhante, mas sua trama é uma das mais bem urdidas que vimos nos últimos tempos.

A telenovela deixou a desejar, porque a narrativa ficou com muitas pontas soltas.

A analogia do texto com fios (fios têxteis, claro) está por toda parte; e denuncia o fato de que texto, têxtil, tecido, todos estes termos têm uma origem comum e sugerem atividades parecidas.    

Comparar sangue e dinheiro é outra tendência tão frequente em nosso discurso que a decodificação é imediata.  Ambos são essenciais à vida, ambos precisam circular...  Dizemos que a economia de tal ou tal país está anêmica, ou que os países do Terceiro Mundo vêm sofrendo há séculos uma hemorragia financeira, ou então que bancos ameaçados de quebra precisam de uma transfusão de dinheiro público.  Diferentes comparações vão se superpondo, e isso nos deixa ainda mais predispostos a aceitar futuras variantes. 

Autores desajeitados ou desatentos costumam usar frases com figuras incompatíveis entre si.  “Precisamos apertar o cinto, porque estamos nadando contra a maré”.

Isto acontece muitas vezes quando o autor, levado pelo entusiasmo, utiliza dois clichês mais ou menos habituais, sem perceber que o segundo vem de uma origem diferente.

O crítico Fulano de Tal aborda o livro com destemor e o disseca sem dó nem piedade.

Existe aí algo que não combina, porque algo que pode ser abordado (um navio, por exemplo) não pode ser dissecado.

O Governo botou seu melhor time em campo disposto a ganhar a votação por nocaute

O exemplo clássico de metáfora confusa ou incompetente, incorporando três elementos que não se encaixam, é a frase atribuída a Henri Monnier (1799-1877):

“O carro do Estado navega sobre um vulcão”. 








sexta-feira, 6 de outubro de 2017

4275) Ariano e a Jornada de Passo Fundo (6.10.2017)




Estive na quarta-feira passada na 16ª. Jornada Nacional de Literatura, em Passo Fundo (RS). Participei da mesa intitulada emblematicamente “Centauro, Pedra, Rosa e Estrela”, em que quatro escritores analisaram a obra de quatro mestres, respectivamente: Moacyr Scliar (por Cintia Moscovich), Ariano Suassuna (por mim), Carlos Drummond (por Ricardo Silvestrin) e Clarice Lispector (por Nádia Battella Gotlib). Como se não bastasse, a conversa foi mediada por Augusto Massi, Alice Ruiz e Felipe Pena.

Muitas coisas interessantes foram ditas pelos colegas, e podem ser vistas inclusive neste link da Jornada:


De minha parte, foi uma oportunidade para comentar alguns aspectos da obra de Ariano que nem sempre ficam claros para os leitores que leram apenas alguns dos seus textos, e viram uma ou outra aula-espetáculo.

Felipe Pena fez uma brincadeira com o meu currículo enviado à Jornada, onde eu me apresentava, entre outros oxímoros, como “escritor de literatura oral”. Era exatamente isso que Ariano Suassuna era, até mais do que eu, aliás. Ariano fazia isso, é claro, no seu teatro: que outra coisa é uma peça de teatro senão uma literatura que é impressa no meio do caminho, mas nascendo do oral e destinando-se a ele?

Ele fazia um pouco na sua poesia, nas décimas, martelos e galopes que escreveu, nos quais, por mais que o texto seja elaborado e hermético, o impulso oral nunca desaparece de todo.

E fez, mais marcadamente ainda, no romance, ou na série de romances de “Quaderna, o Decifrador”: o Romance da Pedra do Reino, sua sequência O Rei Degolado: Ao Sol da Onça Caetana e a terceira parte (publicada em jornal mas inédita em livro) O Rei Degolado: As Infâncias de Quaderna.

A voz narrativa dos romances de Ariano é uma voz oral, se me permitem a redundância. Ariano confessou mais de uma vez que na sua idéia original do romance o herói era para ser Sinésio Garcia-Barretto, o príncipe desaparecido, e Quaderna um mero narrador.

Durante a escrita, porém, a voz de Quaderna foi ganhando espaço, ajudada pelo fato de que ele, mais do que o idealizado e sebastianista Sinésio, estava muito mais próximo do espírito moleque e galhofeiro e iconoclasta e quixotesco do escritor. Quaderna engoliu o livro.

Perguntado por que abandonou o teatro depois que enveredou pelo romance, Ariano chegou a dizer:

– Parei de escrever peças, mas não abandonei de todo. Vejam que dois terços do Romance da Pedra do Reino são o depoimento de Quaderna diante do Juiz Corregedor, então de certa forma isso é uma imensa peça teatral centrada em dois atores.

“Literaturas da Voz”, como chamava Paul Zumthor se referindo à poesia recitada e cantada, mas que pertence também ao domínio do romance. O que é Grande Sertão: Veredas senão um grande monólogo de um homem que só fala para outro que só escuta?

A inspiração oralizante e épica de Guimarães Rosa certamente presidiu a criação do Romance da Pedra do Reino. O livro de Rosa saiu em 1956, e logo em seguida Ariano recebeu uma carta (o relato é dele próprio) de Hermilo Borba Filho, seu amigo e mestre, que nessa época estava em São Paulo, dizendo que o livro era algo assombroso, e que se havia alguém capaz de fazer com o Sertão nordestino o que Rosa fez com o Sertão mineiro, seria Ariano. Ariano aceitou o desafio e em 1958 iniciou seu romance.

Essas influências dos amigos, aliás, foram decisivas para encaminhar sua obra escrita. Na década de 1950, Ariano tinha uma amizade muito próxima com João Cabral de Melo Neto, sete anos mais velho do que ele. João era agnóstico e angustiado. Ariano era católico e brincalhão.

Os dois participaram do Gráfico Amador, um grupo recifense editor de livros artesanais que hoje são verdadeiras preciosidades. Quando voltavam juntos à noite, a mãe de Cabral perguntava se o filho tinha voltado com Ariano. “Como a senhora soube?” perguntava ele. E a mãe: “Porque ouvi você dando gargalhadas na calçada, e você só ri quando está com Ariano”.

Ariano fez suas primeiras tentativas de peça teatral querendo imitar Ibsen, o clássico dramaturgo norueguês. Foi Cabral quem lhe disse:

– Deixe de ser besta, você é um cara naturalmente engraçado. Tragédia não tem nada a ver com você. Seu teatro tem que ser comédia.

Morte e Vida Severina (1954) de Cabral e Auto da Compadecida (1955) de Ariano são dois resultados dessa convivência e dessa influência recíproca. E foi certamente Cabral que repassou para Ariano o nome do seu herói, através de Quaderna, título do livro de poemas publicado por ele em 1960, que Ariano pegou emprestado e carregou de nuances estróficas, heráldicas, lúdicas e ibéricas.











terça-feira, 3 de outubro de 2017

4274) Quando misto quer dizer quente (3.10.2017)




Eu estava num hotel onde não tem serviço de quarto, tem geladeirinhas na recepção, com sanduíches. Pedi um sanduíche, perguntei os sabores que tinha. A moça olhou e disse: “Peito de peru e queijo”. Pedi esse, ela tirou, trouxe para o balcão. Aí veio a pergunta: “O senhor quer só o sanduíche, ou misto?”  Eu achei que pela descrição já estava misto o bastante, mas perguntei por que. E ela disse: “Misto a gente esquenta na chapa”.

Trata-se de uma visível contaminação da expressão “misto quente”. O misto, no caso, absorveu para si a temperatura do adjetivo. Para a moça, misto quer dizer quente. Se não está quente, não é misto.

Esses errinhos endoidecem os gringos que tentam aprender português. Temos a tendência a abreviar as coisas até elas ficarem meio ininteligíveis para um não iniciado. Você tem um hóspede estrangeiro em casa aí diz a ele: “Está fazendo muito calor. Liga o ar.”  Ele pergunta perplexo: “Mas não já estamos respirando?”  Ele não sabe que no Brasil “ar” é abreviatura de “ar condicionado”.

É a mesma coisa de “liga o som”, quando queremos ligar o “aparelho de som”.

Quando abreviamos palavras ainda há uma certa medida de entendimento. O Facebook é o “feice” e o notebook é o “nôte”.

Isso é só no Brasil? Claro que não. O inglês é faz isso mais do que nós: “ammunition” é “ammo”, “illustration” é “illo”, “pictures” é “pix”...

É uma espécie de erosão linguística em que uma palavra mais longa (ou grupo de palavras) vai se desgastando pelo uso e vai perdendo fragmentos, até restar somente um núcleo radical que passa a valer semanticamente por todo o conjunto anterior – mas o novato muitas vezes não decifra, nessa abreviação compacta que sobrou, o termo original onde o significado saltava aos olhos.

Funciona até com nomes artísticos, porque me lembro muito bem que o grupo paulista “Premeditando o Breque” acabou se transformando em “Premê”, porque de fato dá muito trabalho dizer aquilo tudo. E o norte-americano Prince achou que esse nome já estava longo demais (esse pessoal refinado é fogo) e resolveu se autodenominar com um símbolo gráfico. Não adiantou muito, porque a imprensa pulou para o extremo oposto e passou a chamá-lo “The Artist Formerly Known as Prince”. Era melhor ter ficado quieto.

Toda esta lenga-lenga é para comentar pela enésima vez que “ficção” é uma coisa e “ficção científica” é outra. Imagine o seguinte diálogo:

– Me fala aí um romance de ficção que você gosta.

São Bernardo, de Graciliano Ramos.

– Mas isso não é ficção. Ficção é 2001, Odisséia no Espaço.

Por alguma razão que não encontro no momento as pessoas não têm o hábito de chamar de ficção as obras literárias em geral. Balzac, Virginia Woolf, Dostoiévski, Agatha Christie, Machado de Assis... Chamam de romance, ou de livro, ou de história, mas não consideram que isso é ficção. (E é.) Para elas, a palavra ficção é abreviatura de “ficção científica”, assim como Cacá Diegues dizia que para a geração dele “cinema” era abreviatura de “cinema americano”.











sábado, 30 de setembro de 2017

4273) Ariano Suassuna e o cinema (30.9.2017)




(The Ape, 1940)

Quando Ariano Suassuna era menino, morou durante alguns meses em Campina Grande. A mãe dele, viúva, teve que passar um tempo lá para ajudar uma prima que estava doente, algo desse tipo. E lá vai Ariano, um dos filhos mais novos, morar com ela, e estudar no Colégio Alfredo Dantas, que era do Tenente Alfredo, um parente deles pelo lado materno.


(antiga fachada do Colégio Alfredo Dantas)

Isso foi logo após a inauguração do Cine Capitólio, que se deu em 1934, com o filme Cavadoras de Ouro  (“The Gold Diggers”), um dos títulos de uma série de musicais da década de 1930. Acho que era esse o filme que Ariano comentava ter visto:

– Era um filme besta danado, uma porção de mulheres abrindo caixas de chapéus e experimentando os chapéus, ô negócio mais sem graça!


(Cavadoras de Ouro)

A história mais interessante, porém, era a que ele contava de quando uma das suas tias de Campina o levou para ver um filme de terror, que eu depois identifiquei como sendo The Ape (1940), com Boris Karloff. Segundo Ariano, era a história de um cientista louco que se vestia numa pele de gorila e saía de noite pela cidade, cometendo crimes.

Acontece que a tia de Ariano era uma senhora pouco acostumada ao cinema e ia só para fazer gosto ao sobrinho-visitante. Ela tinha um raciocínio – digamos – um pouco lento para acompanhar a história, e de vez em quando fazia comentários ou perguntas que provocavam o riso nas pessoas das cadeiras próximas, e Ariano, menino, morria de vergonha, ficando com vontade de se enfiar embaixo dos assentos.


(The Ape, 1940)

Perto do fim do filme, o cientista, disfarçado de gorila, teve a luta final contra a polícia, ou algo assim, foi alvejado e caiu morto. E nesse momento acontece a clássica cena da re-transformação (comum em filmes de lobisomens e em histórias como “O homem invisível”, “O médico e o monstro”, etc.), quando após a morte o monstro revela sua identidade humana.

Os policiais examinaram o gorila caído e, rasgando a roupa de pele, viram Boris Karloff lá dentro. Um silêncio enorme pairou no Cine Capitólio e no meio do silêncio a voz excitada da tia de Ariano, que enfim entendera a história:

– Eita, Ariano!  Entendi!  O urso tinha comido o doutor!

O cinema veio abaixo e Ariano quis desaparecer.


(Vida e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, Ferdinand Zecca, 1905)

Essa história me lembra outra, que se contava lá em casa. Antigamente, durante a Semana Santa era costume dos cinemas exibir uma versão bem antiga do filme A Paixão de Cristo: um filme mudo, sempre em cópia bem estragada, com aquele movimento aceleradozinho. E o pessoal católico ia assistir todos os anos o mesmíssimo filme.

(Que ainda não sei se era o filme de Ferdinand Zecca de 1905 ou o de Cecil B. De Mille de 1927).

Aí... Hollywood produz O Rei dos Reis (1961), um filme em Technicolor, de Nicholas Ray, com Jeffrey Hunter – lourinho, bonitinho, de olhos azuis – no papel de Cristo.

Uma beata que morava nas redondezas foi ao cinema, como ia todos os anos, e voltou para casa pegando ar.

– Isso é um desaforo!  A gente vai no cinema pra ver a paixão de Nosso Senhor e eles botam um filme colorido com um artista americano!!!

– Mas tia, e que filme a senhora queria ver?

– Eu queria aquele outro que tem todo ano, o antigo, o que foi feito com Jesus Cristo de verdade!

Ela pensava que A Paixão de Cristo era um documentário filmado no ano 33 da Era Cristã.

Essas histórias são engraçadas por que mostram o caráter alucinatório que o cinema sempre teve para as populações mais simples, principalmente em suas primeiras décadas de existência. Os espectadores estavam diante de várias coisas ao mesmo tempo: uma cerimônia coletiva (centenas de pessoas) numa sala escura, contemplando uma coisa luminosa, impressionante e gigantesca – e que não entendiam por completo.

E mais do que isso: sendo forçadas a fazer sentido de uma sucessão de imagens cuja gramática e sintaxe elas levavam talvez anos para aprender.

Me lembro de ter lido um comentário de um jornalista, nas primeiras décadas do século 20, dizendo mais ou menos assim: “O filme é incompreensível. Vemos um casal sentado a uma mesa, conversando, de repente aparece a cabeça de um gigante, e em seguida vemos o casal de novo, bem tranquilo, aparentemente sem perceber nada.”  O gigante era o rosto do ator em close-up.

Isso era ainda mais notável quando sabemos que a imagem cinematográfica, em suas primeiras décadas, era muito mais sujeita do que hoje a desfoques, trepidações, manchas, má projeção, películas arranhadas ou mofadas, telas de má qualidade.

Focalizar aquelas imagens, identificá-las, fazer a conexão entre elas... isso era um trabalho insano, para mentes de garotos ou mesmo de adultos cujos cérebros jamais tinham sido submetidos a uma tal montanha-russa imagética. (Comparados ao cinema, o teatro e a ópera eram um oásis de continuidade e foco.)

Em As Palavras (“Les Mots”, 1963), Jean-Paul Sartre lembra com carinho essa fase psicodélica, alucinógena de sua infância nos cinemas parisienses repletos (tradução de J. Guinsburg):

Eu raspava minhas costas em joelhos, sentava-me num assento rangente, minha mãe introduzia uma coberta dobrada sob minhas nádegas a fim de me alçar; por fim eu olhava a tela, descobria um giz fluorescente, paisagens pestanejantes, raiadas de aguaceiros; chovia sempre, mesmo em pleno sol, mesmo nos apartamentos; às vezes um asteróide em chamas cruzava o salão de uma baronesa sem que ela parecesse espantada. Eu amava esta chuva, esta inquietação sem repouso que trabalhava a muralha. (...) Eu, por meu lado, queria ver o filme o mais de perto possível. No desconforto igualitário das salas de bairro, aprendera que a nova arte pertencia a mim, como a todos. Éramos da mesma idade mental: eu tinha sete anos e sabia ler, ela doze, e não sabia falar.

Sartre usa aí de uma certa licença poética, porque o cinema era na verdade dez anos mais velho do que ele.















quarta-feira, 27 de setembro de 2017

4272) Guido Araújo 1933-2017 (27.9.2017)



Tive muitos “pais adotivos” ao longo da juventude; em geral eram professores que me botavam embaixo da asa com o nobre propósito de incutir um pouco de juízo na eterna bagunça que era a minha cabeça. Um deles foi Guido Araújo, o criador da Jornada de Curta-Metragem da Bahia.

Acho que conheci Guido em 1973, quando fui participar da Jornada em Salvador. Era a “II Jornada Nordestina de Curta-Metragem”, e eu fui com José Umbelino Brasil e Romero Azevedo, representando a Federação Nordeste de Cineclubes, que naquela época estava sob a nossa responsabilíssima gestão.

Viramos a noite no ônibus da São Geraldo, amanhecemos indo direto para o Corredor da Vitória, onde ficava a sede da Jornada: o ICBA, ou Instituto Goethe. Fomos direto fazer o credenciamento. Guido nos recebeu, passou as informações básicas e anotou um endereço no papel:

-- Vocês vão ficar hospedados neste endereço, nos Barris. É a pensão da mãe de Glauber Rocha.

(ÁUDIO: três cineclubistas desmaiando.)

Ficamos voltando à Jornada todos os anos, e em 1977 eu resolvi me mudar com armas e bagagens para Salvador; era no tempo que eu estava casado com Lili (Arly Arnaud) e ela ia estudar teatro na UFBA. Guido prometeu emprego, e o saudoso Luís Orlando fez a costura para nossa ida.

Guido ensinava cinema na UFBA e era presidente vitalício do Clube de Cinema da Bahia, a entidade que organizava a Jornada. O Clube de Cinema funcionava em salas cedidas pelo ICBA e tinha verbas para pagar dois ou três funcionários (eu fiquei sendo o “ou três”).

Quem não viveu aquela época não pode imaginar o que era; dias atrás estive comentando com Bené Fonteles o que foi o ICBA durante a ditadura. Por ser um instituto cultural alemão, até mesmo a censura da ditadura ficava a uma prudente distância do torvelinho de festivais, shows, recitais, lançamentos, cursos, assembléias e manifestações artísticas e políticas que rolava lá dentro.

O diretor do ICBA era Roland Schaffner; ele e Guido tinham em comum a preocupação obsessiva com detalhes, e a neurose de fazer com que todas as coisas dessem certo. E funcionavam bem em conjunto. Se tenho alguma fé na humanidade, deve-se em grande parte ao fato de ter trabalhado quatro anos num instituto de alemães e baianos, dois povos tão alienígenas entre si, e ver os dois convivendo em harmonia e trabalhando com eficiência.

Guido fez da Jornada um canal de defesa do cinema brasileiro tanto no lado estético quanto no lado administrativo: se não me engano, a ABD (Associação Brasileira de Documentaristas) foi criada lá, nas reuniões paralelas da Jornada.

Ano passado, Jorge Alfredo estava filmando uma série de TV sobre ele, “O Senhor das Jornadas”, e me chamou para participar de uma rodada de conversas que iam promover com Guido na Bahia. Não pude ir; tinha compromisso que não podia remarcar.

O perfil de Guido como cineasta era de documentarista ao estilo do Cinema Novo, e muitas vezes o vi impaciente ou incomodado com o que ele chamava “as maluquices dessa rapaziada do super-8”; mas a Jornada sempre esteve aberta para a rapaziada e alguns dos clássicos mais irreverentes desse formato foram exibidos lá.

Na Jornada eram freqüentes os arranca-rabo entre Guido e os cineastas que iam para lá na expectativa de mais um festival com boca-livre e uísque de graça no frigobar. Guido cortava tudo: era café da manhã, ticket de refeição, e mais nada. Os cineastas se desesperavam: “É o stalinismo!”. Ele dizia: “Isso aqui é um evento de trabalho. Todo mundo pode beber, mas cada um pague o seu.”









domingo, 24 de setembro de 2017

4271) Contracapa de FaceTime (24.9.2017)




&  tem dias em que é preciso botar o mundo no chão e descansar meia hora antes de pegar de novo

&  não adianta pedir a vinda do meteoro: nosso castigo é que não virá nenhum

&  falta alguém inventar pratos com base imantada para usar com bandejas de metal

&  há duas coisas que sempre dão a impressão de melhorar aquilo que acompanham: violinos e molho vinagrete
  
&  aquele momento em que um cara é apanhado com a boca na cumbuca e a mão na botija

&  nunca foi tão fácil dizer que tá difícil

&  achar-se moralmente superior não difere muito de achar-se socialmente superior

uma caixa com um boneco-de-molas que salta e sai correndo

&  condecorações de guerra tatuadas no peito

&  uma escola de tradução onde pinturas a óleo são transpostas para xilogravuras

&  posso não morrer de pé mas vou morrer de frente

&  chuva só presta bem forte, pra gente tomar a decisão firme de não sair de casa

&  todo livro de memórias tem algo de maquiagem diante do espelho

&  não gosto de aniversários porque me parecem uma espécie de contagem regressiva

&  toda campanha política é a subida de uma montanha-russa que chega ao ponto mais alto no dia da posse

&  um museu só de objetos aleatórios, com fichas em branco ao lado, onde caberá ao público explicar que coisa é aquela

&  certos nomes próprios moderninhos parecem uma camisa e uma calça que não combinam

&  como zumbis fazendo fila no caixa do açougue de cérebros

&  tá cheio de gente por aí que nasceu e não sabe

&  redes sociais se alternam entre a babação-de-ovo e o linchamento gratuito

&  só as grandes catástrofes públicas são capazes de nos unir no mesmo suspiro de alívio

&  de vez em quando a gente percebe como é fácil ter certeza de alguma coisa

&  duvido que alguém fazendo as malas num dia de calor ache necessário botar casacos e lãs

&  reencontrei um amigo dos velhos tempos e só consegui identificá-lo pela arcada dentária

&  o mundo tá cheio de carrapato que só por gostar de sangue acha que é tubarão

&  máquinas caça-níqueis onde você bota uma moeda, puxa uma alavanca, e ela produz um poema randômico e irrepetível

&  ergui o binóculo e avistei uma banquisa de gelo à deriva e sobre ela 200 ursos polares com mochilas às costas

&  quando estiver na cama com ela não pergunte o que é o recheio daqueles travesseiros

&  eu estou como quem levou uma surra de um grupo de fantasmas

&  certas pessoas começam a decepcionar a gente já no primeiro aperto de mão

&  em pleno sol do deserto surge uma miragem de dunas de areia, fazendo crer que o deserto é maior ainda

& não vai demorar muito até cada cidadão se transformar no robocop de si mesmo

&  quebrar um recorde é como quebrar uma vidraça barata e botar um cristal caro no lugar

&  o discurso ideológico é uma roupa que quando o menino cresce começa a estourar nas costuras

&  tem gente que não quer aceitar a morte e nunca foi capaz de aceitar a vida

&  não sei o que faço numa cidade onde a gente tem que dormir com as janelas fechadas e os olhos abertos








quarta-feira, 20 de setembro de 2017

4270) Palavras do dicionário paraibano (20.9.2017)



Quando falamos em linguajar regional, geralmente pensamos em palavras específicas de uma parte do Brasil . “Oxente” é nordestino, “bah” é gaúcho, “porreta” é baiano, “uai” é mineiro e assim por diante.

Outro aspecto, também muito comum, é que uma mesma palavra, de uso geral, seja dita com um significado num lugar, e com outro significado numa região diferente.

VEXAME
Acho que já falei nesta coluna sobre a palavra “vexame”. No Sudeste, ela é usada como sinônimo de “constrangimento, vergonha”: “Passei o maior vexame no restaurante porque meu cartão apareceu como bloqueado”. No Nordeste, usamos com mais frequência como sinônimo de “pressa”: “Deixe de vexame porque ainda falta meia hora para o banco fechar, vai dar tempo”.

MALA
Outro termo que às vezes gera malentendidos: “mala”. No Rio, um sujeito mala é um chato-de-galochas, um cara insuportável, sentido reforçado na fórmula intensificada: “Fulano é um mala sem alça”. Em Campina Grande, pelo menos, “mala” é sinônimo de “malandro, esperto”, e muitas vezes é usado como elogio: “O atacante foi muito mala, bateu a falta depressa e pegou a defesa deles aberta”.

EMBALAGEM
Veja outro termo interessante: “embalagem”. Na Paraíba, pelo menos, não é apenas sinônimo de “papel de embrulho, invólucro”, e sim de “embalo, impulso, momentum (massa x velocidade)”.  “O motorista até tentou frear, mas o caminhão vinha numa embalagem muito grande e acabou virando por cima do muro da casa.”  Também se usa “aproveitar a embalagem” no sentido figurado, equivalente a “aproveitar que está com a mão na massa”:   “Já que você está lavando a cozinha, aproveita a embalagem e lava também o banheiro”. Nesse sentido, quem e de fora deve interpretar a palavra como se fosse “embalo”.

ENGUIÇAR
No Brasil inteiro enguiçar é “dar defeito, pifar” – aplicado a máquinas e motores em geral. No Nordeste, enguiçar é passar andando por sobre o corpo ou as pernas estendidas de alguém que está sentado no chão.  Diz a superstição popular que quando isto acontece a pessoa que foi “enguiçada” não cresce mais. Acredita-se que para anular o efeito basta “desfazer” o ato, passar de trás para diante.  “--Ei!  Que história é essa de vir entrando e enguiçar a gente?  Pode voltar, e desenguiçar!” Também já vi ser atribuído ao ato de “enguiçar” o poder de cura contra mau-olhado.  “Esse menino só vive doente ultimamente!  Tá bom de alguém enguiçar ele, isso deve ser mau-olhado.”

E ali com um punhal
Para Adriano avançou
Mas Adriano ligeiro
Por cima dele saltou
Então quando o enguiçava
Mesmo no vão lhe cravou.
(Expedito Sebastião da Silva, folheto “Adriano e Joaninha”)


ARRUMAR
Diz-se no sentido de “arranjar, conseguir”.  "Me arruma aí um dinheiro, que eu deixei a carteira em casa".  "Vou falar com meu tio para ver se ele me arruma um emprego na Prefeitura."  "Ele foi passar as férias no Rio e acabou arrumando uma noiva."

CAÇAR
Parece ser um arcaísmo no sentido que descrevo aqui, o de “procurar”. É geralmente usado por gente iletrada ou gente bem do interior rural.  “Desde hoje que eu estou caçando meus óculos e não sei onde botei.”   “Fulano está caçando emprego desde o fim do ano passado.”   É linguagem bem característica de “gente do mato”. 

CARREGAR
Não é apenas “dar carga” (“Preciso lembrar de carregar o celular antes de sair”). Usa-se mais como “levar embora”, no mesmo sentido em que se usa dizer “Vá para o diabo que o carregue”: “Quem foi que carregou meu guarda-chuva, que eu deixei aqui junto da porta?”  « Cuidado com esses meninos brincando soltos na rua, um dia aparece um tarado e carrega um! » 

DOIDINHO
É o que chamam de “bobo” no Rio de Janeiro. No futebol, brincadeira em que um grupo de jogadores troca passes entre si, enquanto um deles, escolhido por sorteio, tenta apoderar-se da bola; quando o consegue, o “doidinho” passa a ser o jogador que perdeu a bola para ele.  Também se diz “zorra”.  Usa-se também como termo de comparação: “Eu não sei pra que escalaram Fulano como centroavante: a defesa dos caras passou o jogo todo fazendo doidinho com ele.”

RAZÃO
Usa-se muito no Nordeste como sinônimo exato de "arrogância, prepotência": "Ei, que razão é essa?  Quem é você pra vir me dar ordens?"  "Fulano é muito engraçado: a gente faz o trabalho todo, resolve todos os problemas, aí quando é depois ele chega, com a maior razão do mundo, botando defeito em tudo."  É mais frequente na expressão "cheio de razão": "Estava tudo muito tranquilo, mas de repente chegou um cara todo cheio de razão, dizendo que era amigo do dono do bar e que aquela mesa era dele."  

BONDADE
Assim como “razão” é usado com viés negativo, o mesmo se dá com “bondade” em certos contextos. Quando se quer dizer que um indivíduo é humilde, pacato, não quer ser melhor do que ninguém, diz-se: “Fulano me surpreendeu, é uma pessoa sem bondade, conversa com todo mundo, trata todo mundo como igual”. O sentido subjacente é que o sujeito não pretende ser “mais bom” do que ninguém.