Tive
muitos “pais adotivos” ao longo da juventude; em geral eram professores que me
botavam embaixo da asa com o nobre propósito de incutir um pouco de juízo na
eterna bagunça que era a minha cabeça. Um deles foi Guido Araújo, o criador da
Jornada de Curta-Metragem da Bahia.
Acho
que conheci Guido em 1973, quando fui participar da Jornada em Salvador. Era a
“II Jornada Nordestina de Curta-Metragem”, e eu fui com José Umbelino Brasil e
Romero Azevedo, representando a Federação Nordeste de Cineclubes, que naquela
época estava sob a nossa responsabilíssima gestão.
Viramos
a noite no ônibus da São Geraldo, amanhecemos indo direto para o Corredor da
Vitória, onde ficava a sede da Jornada: o ICBA, ou Instituto Goethe. Fomos
direto fazer o credenciamento. Guido nos recebeu, passou as informações básicas
e anotou um endereço no papel:
--
Vocês vão ficar hospedados neste endereço, nos Barris. É a pensão da mãe de
Glauber Rocha.
(ÁUDIO: três
cineclubistas desmaiando.)
Ficamos
voltando à Jornada todos os anos, e em 1977 eu resolvi me mudar com armas e
bagagens para Salvador; era no tempo que eu estava casado com Lili (Arly
Arnaud) e ela ia estudar teatro na UFBA. Guido prometeu emprego, e o saudoso
Luís Orlando fez a costura para nossa ida.
Guido
ensinava cinema na UFBA e era presidente vitalício do Clube de Cinema da Bahia,
a entidade que organizava a Jornada. O Clube de Cinema funcionava em salas
cedidas pelo ICBA e tinha verbas para pagar dois ou três funcionários (eu
fiquei sendo o “ou três”).
Quem
não viveu aquela época não pode imaginar o que era; dias atrás estive
comentando com Bené Fonteles o que foi o ICBA durante a ditadura. Por ser um
instituto cultural alemão, até mesmo a censura da ditadura ficava a uma
prudente distância do torvelinho de festivais, shows, recitais, lançamentos,
cursos, assembléias e manifestações artísticas e políticas que rolava lá
dentro.
O
diretor do ICBA era Roland Schaffner; ele e Guido tinham em comum a preocupação
obsessiva com detalhes, e a neurose de fazer com que todas as coisas dessem
certo. E funcionavam bem em conjunto. Se tenho alguma fé na humanidade, deve-se
em grande parte ao fato de ter trabalhado quatro anos num instituto de alemães
e baianos, dois povos tão alienígenas entre si, e ver os dois convivendo em
harmonia e trabalhando com eficiência.
Guido
fez da Jornada um canal de defesa do cinema brasileiro tanto no lado estético
quanto no lado administrativo: se não me engano, a ABD (Associação Brasileira
de Documentaristas) foi criada lá, nas reuniões paralelas da Jornada.
Ano
passado, Jorge Alfredo estava filmando uma série de TV sobre ele, “O Senhor das
Jornadas”, e me chamou para participar de uma rodada de conversas que iam
promover com Guido na Bahia. Não pude ir; tinha compromisso que não podia
remarcar.
O
perfil de Guido como cineasta era de documentarista ao estilo do Cinema Novo, e
muitas vezes o vi impaciente ou incomodado com o que ele chamava “as maluquices
dessa rapaziada do super-8”; mas a Jornada sempre esteve aberta para a
rapaziada e alguns dos clássicos mais irreverentes desse formato foram exibidos
lá.
Na
Jornada eram freqüentes os arranca-rabo entre Guido e os cineastas que iam para
lá na expectativa de mais um festival com boca-livre e uísque de graça no
frigobar. Guido cortava tudo: era café da manhã, ticket de refeição, e mais nada.
Os cineastas se desesperavam: “É o stalinismo!”. Ele dizia: “Isso aqui é um
evento de trabalho. Todo mundo pode beber, mas cada um pague o seu.”
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