Em todo tipo de linguagem e comunicação, as formas tendem a degenerar com o tempo. É o efeito da entropia.
As metáforas, por exemplo, degeneram em clichê. Todo clichê
da linguagem (literária, jornalística, cotidiana, etc.) já foi uma imagem
original e surpreendente. O sucesso a viralizou; o excesso a diluiu.
Imaginem quando alguém disse pela primeira vez: “O incêndio
foi grande, mas os bravos soldados do fogo conseguiram apagá-lo!” Ninguém (suponho) tinha usado isso antes. O editor,
impressionado, bateu com o lápis na folha datilografada e disse ao jornalista:
“Ih, rapaz, que imagem bonita essa aqui!”
Pronto.
Poucos anos depois o mesmo editor estava amassando uma
lauda, jogando na cesta, e dizendo a algum novato perplexo: “Se disser isso de
novo eu lhe boto na rua, ora que saco. Se é pra dizer um clichê desses, diga
bombeiros e acabou-se.”
O tempo todo utilizamos uma imagem concreta para descrever
algum processo ou situação abstrata.
Dizemos, por exemplo: “A história de Os Detetives Selvagens, de
Roberto Bolaño, gira em torno de um grupo de poetas mexicanos de
vanguarda”.
A história, na verdade, não gira em torno de nada. Se é para
vê-la em termos de um movimento físico, o mais que podemos dizer é que ela avança.
Mas à medida que avança ela volta a mostrar, repetidamente, personagens e
episódios já aparecidos antes. E assim existe uma semelhança com um movimento
circular, ou em espiral ascendente (movimento helicoidal), algo que avança e
retorna ao mesmo tempo.
Quando um historiador do século 22 ler nossas resenhas
literárias ficará embasbacado diante do modo como as histórias, em nosso tempo,
sempre “giravam em torno” de algo.
No momento em que uma expressão é usada pela primeira vez,
pode produzir um pequeno choque de estranheza, que se reequilibra no momento em
que o leitor reconheceu a validade da comparação.
É o caso de expressões tipo “o Ibope está tomando o pulso da
opinião pública”. O leitor, um segundo
depois, reconhece que “tomar o pulso” admite o significado extensivo de
“verificar as reações, acompanhar o comportamento”.
O uso da expressão se propaga e ela rapidamente se converte
em lugar comum. Daí em diante a usamos
sem enxergar ao pé da letra a imagem que está sendo usada.
O Governo precisa arregaçar as mangas e resolver o problema
do ensino básico? Todos entendem o que
estamos dizendo, mesmo que o Governo, como entidade abstrata e coletiva, não
tenha mangas para arregaçar. Arregaçar
as mangas significa preparar-se para executar uma tarefa difícil, que demanda
esforço.
Do mesmo modo, se o interlocutor responde que já está na
hora, porque há muito tempo as autoridades vêm botando panos quentes nesse
problema, a analogia se processa automaticamente. O que talvez não tenha acontecido quando
ouvimos esta expressão pela primeira vez.
Talvez nos tenha custado um segundo de surpresa, e depois o
entendimento, um “aaah...” dando sinal de que a comparação é válida.
Um dos usos mais arraigados na nossa fala cotidiana é o das
metáforas agrícolas, que são nossa herança de um modo de vida com o qual temos
familiaridade há milênios, mesmo que uma familiaridade indireta.
Está na hora de colher os
frutos desse investimento...
Estou em busca das minhas raízes
culturais...
Este é um gênero literário
cuja seiva já se esgotou há muito tempo...
Não quero entrar na seara
alheia e discutir o que não entendo...
Esse pessoal está semeando a
discórdia para colher Poder...
O Parnasianismo foi quando o
soneto floresceu mais intensamente em nossa poesia...
Usamos este tipo de linguagem no jornalismo, na política, na
conversa informal. Todos entendem o que
estamos querendo dizer; ninguém imagina que estamos tratando de
agricultura.
A figura de linguagem deixou de ser figura em si, tornou-se
invisível de encontro à paisagem abstrata do discurso. É apenas o sentido abstrato que captamos.
Outra categoria rica de clichês é a da linguagem têxtil,
pela semelhança (inclusive etimológica) com as características de um texto
escrito.
A certa altura do romance, o autor corta o fio da narrativa para fazer
uma longa digressão.
A história se desenrola no começo do século 19.
O livro de Fulano de Tal tem um estilo pouco brilhante, mas sua trama é
uma das mais bem urdidas que vimos nos últimos tempos.
A telenovela deixou a desejar, porque a narrativa ficou com muitas
pontas soltas.
A analogia do texto com fios (fios têxteis, claro) está por
toda parte; e denuncia o fato de que texto, têxtil, tecido, todos estes termos
têm uma origem comum e sugerem atividades parecidas.
Comparar sangue e dinheiro é outra tendência tão frequente
em nosso discurso que a decodificação é imediata. Ambos são essenciais à vida, ambos precisam
circular... Dizemos que a economia de
tal ou tal país está anêmica, ou que
os países do Terceiro Mundo vêm sofrendo
há séculos uma hemorragia financeira, ou então que bancos ameaçados de
quebra precisam de uma transfusão de
dinheiro público. Diferentes comparações
vão se superpondo, e isso nos deixa ainda mais predispostos a aceitar futuras
variantes.
Autores desajeitados ou desatentos costumam usar frases com
figuras incompatíveis entre si. “Precisamos apertar o cinto, porque estamos nadando
contra a maré”.
Isto acontece muitas vezes quando o autor, levado pelo
entusiasmo, utiliza dois clichês mais ou menos habituais, sem perceber que o
segundo vem de uma origem diferente.
O crítico Fulano de Tal aborda o livro com destemor e o disseca sem dó
nem piedade.
Existe aí algo que não combina, porque algo que pode ser
abordado (um navio, por exemplo) não pode ser dissecado.
O Governo botou seu melhor time em campo disposto a ganhar a votação
por nocaute.
O exemplo clássico de metáfora confusa ou incompetente,
incorporando três elementos que não se encaixam, é a frase atribuída a Henri
Monnier (1799-1877):
“O carro do Estado navega sobre um vulcão”.
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