terça-feira, 21 de março de 2017

4219) "Sagarana": "Minha Gente" (21.3.2017)




(ilustração: Poty)

“Minha Gente” é o quinto conto de Sagarana, de Guimarães Rosa (1946). Foi o terceiro conto a ser escrito para o livro, segundo comentário do autor, incluído nas duas primeiras edições e retirado nas seguintes.

Num depoimento-carta, bem longo,  para o jornalista João Condé, incluído no livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, de Vilma Guimarães Rosa  (Nova Fronteira, 1983, p. 331-337), Rosa comenta assim a história:

MINHA GENTE – Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais.

É um conto considerado menor dentro do livro, mas para mim é um dos mais bem amarrados, embora não pareça. É inclusive um conto cujo desfecho, no último parágrafo, nos leva a rever a história inteira com outros olhos, embora não chegue a ser uma surpresa mirabolante, e sim um mero cair da moeda, que girava, para um dos dois lados.

O Narrador do conto é um rapaz que vai passar uns tempos descansando na fazenda do seu tio Emílio. Lá reencontra a prima Maria Irma, com quem tivera um namorico na adolescência. O tio está enfronhado nas disputas eleitorais do município. O rapaz passeia, pesca, troca idéias com os moradores, azara a prima, presencia um crime. Não acontece nada de excepcional.

É uma historinha de amor no meio rural, mas um meio rural já consciente do moderno, do poder gravitacional da cidade grande (como ocorre também em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”).

O Narrador volta disposto a reencontrar o passado: no vilarejo “a ladeira para a Rua de Cima ainda é "a mesma”, “a casa do Juca Cintra ainda tem a mesma pintura”, e por aí vai. Mas quando ele bota o pé na fazenda do tio tudo muda. O tempo passou. O tio está galvanizado pela campanha política, e a prima está mais crescida, mais bonita e mais sabida. O Narrador começa a arrastar uma asa firme na direção dela.

O tema da ida-e-volta, presente em todo o Sagarana, se orquestra nesse rencontro do Narrador com sua adolescência transformada, e o modo como ele, ainda ameninado, é manipulado pelos que cresceram mais depressa. E ecoa no nome da prima Maria Irma, quase um palíndromo, que se lê indo-e-voltando.

Outros elementos dão o tom da história. Um deles é Santana, o amigo mais velho que o Narrador reencontra logo no começo. Um típico interiorano de Rosa, que gosta de jogar xadrez e de citar a Odisséia de Homero. Descrevendo com propriedade os movimentos e a dinâmica do jogo, Rosa nos adverte de que o “modo enxadrístico de pensar” não é estranho ao autor.

Outro elemento é a política local (para o brasileiro médio, a única política que é possível compreender e ver com entusiasmo). Ele descreve o tranxinxim estratégico do tio Emílio num parágrafo saboroso:

Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câmara no seu Município (no. 1), ao mesmo tempo que apoia, devotamente, o Presidente do Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a leste (no. 2), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do município no. 1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande município ao norte (no. 3). Dessa trapizonga, em estabilíssimo equilíbrio, resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.

Não parece; mas é o tema do xadrez quer retorna com outro figurino. Sempre o tema das mil variantes de ataque e defesa, de pergunta e resposta, de aproximação e afastamento, de sedução e separação.

O grande momento dramático do conto é o assassinato de Bento Porfírio, um morador local que acompanha o Narrador em suas pescarias. Bento Porfírio está metido em um caso intrincado de amor e adultério (como ocorre em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”, “Sarapalha”). Casado, está tendo um caso com uma mulher casada.

Um dia a pescaria é interrompida pelo surgimento do marido da outra, Alexandre, que o mata com uma foiçada. Olha o modo rápido e entrecortado como o assassinato é descrito:

Fui testemunha. Pode lá a gente ser mesmo testemunha? Não sei como foi: um grito de raiva, uma pancada, o t’bum n’água de uma queda pesada, como um pulo de anta. Alexandre, o marido, de calças arregaçadas. Só as calças arregaçadas, os pés enormes, descalços na lama... Um ramo verde-maçã, a se agitar, em rendilha... Daí, a foice, na mão do Alexandre... O Alexandre, primeiro de cara fechada, depois com um ar de palerma... A foice, com sangue, ficou no chão. A água ensanguentada... O Alexandre vai indo embora. Já gastou a raiva. O morto não se vê. Está no fundo.

Bento Porfírio tinha perdido a chance de casar com a de-Lourdes, cujo pai o queria para genro. Não se interessou em conhecê-la. Quando a conheceu, ela já estava casada com o Alexandre. Ele se apaixonou e se arrependeu. O que fez? Casou com a Bilica, “só por pirraça e falta do que fazer”. E o quadrângulo amoroso ficou formado, pois Bento e de-Lourdes se embrenharam num amor que terminou numa foiçada à beira-rio.

O xadrez, a política e o crime são elementos fortes que dão o tom do conto. Porque o conto na verdade é sobre outro quadrângulo amoroso, que nos lembra o famoso poema “Quadrilha” de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria...”

O Narrador começa a achar que ama a prima Maria Irma, mas descobre que ela tem um amigo muito gentil chamado Ramiro, que lhe empresta livros, o que acaba gerando ceninhas de ciúme; mas Ramiro é noivo de Armanda, grande amiga de Maria Irma, então tudo bem.

O Narrador elogia a prima sem parar. Inclusive relata, logo na chegada à fazenda, um episódio típico do que hoje se chama “mansplaining”, o vício masculino de dar às mulheres longas explicações sobre qualquer assunto antes mesmo de perguntar o que elas pensam a respeito:

Tolamente, fui empunhando a conversa. E o pior foi que minha prima me deixou discorrer, muito tempo, e eu procurava abaixar o nível do discurso, porque punha pouco preço no poder da sua compreensão. No fim, muito maldosa, com duas ou três respostas, deixou-me atônito. Tive ímpetos de gritar: -- Priminha, o falado até aqui não vale! Vamos riscar a conversa e principiar tudo de novo!...

Dubitativo, distraído, com a cabeça cheia de vacilações, o Narrador vai se deixando enredar. Quando acusa Maria Irma de estar interessada no Ramiro, a prima não faz outra coisa senão lembrar que Ramiro é noivo da Armanda, e começa a elogiar a amiga:

É muito bonita, foi educada com parentes no Rio, já esteve na Europa, é filha de fazendeira – porque o pai já morreu -, mora no Cedro... (...)  Da minha altura. Mais cheia de corpo... É bonita... (...) E guia automóvel muito bem. É saída... (...)  É muito desembaraçada... Independente... Moderna...

O Narrador é um inocente simpático e vai se deixando enredar. Quando se aproxima da prima querendo coisa, pensa consigo que se trata de “ceder terreno, para depois recuperá-lo. É boa tática... Um ‘gambito do peão da Dama’, como Santana diria”. Ele sabe que o jogo amoroso é um xadrez.

A política, também, e ele acaba ajudando sem querer o tio quando visita um adversário político deste e, tendo feito comentários inocentes, recebe do tio o elogio: “você costurou certo”. Costurou sem querer, porque o jogo político é aquele em que o adversário diz que vai viajar e a gente deduz que aquilo é para a gente pensar que ele vai ficar em casa, e que portanto o mentiroso vai viajar mesmo. Como na negociação do bezerro entre o tio Emílio e um fazendeiro amigo, minuciosamente narrada com suas idas e vindas.

No final, o partido do tio ganha a eleição e o Narrador, que tinha ido visitar outra fazenda, volta e reencontra quem? Maria Irma ao lado de Armanda:

Alguém riu. Era Armanda, a de maravilhosa boca e olhos esplêndidos. (...) Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa definitiva, assim como a impressão de já conhecê-la, desde muito, muito tempo. Nossas mãos se encontraram, de repente, e eu senti que ela também estremeceu.

Há histórias que vão o tempo todo numa direção, e no final dão uma guinada para outra, e só então percebemos para onde a história estava indo o tempo todo, com seus subterfúgios da política, suas estratégias de xadrez, sua arte de resolver os desencontros amorosos de maneira mais diplomática e moderna, sem tragédias e sem foices. E o conto se fecha com esse parágrafo exemplar:

E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.

Ou, como disse Shakespeare ao tratar de situações semelhantes: “Tudo está bem quando acaba bem”, principalmente se deixarmos que as mulheres façam o corte e a costura das alianças amorosas.







sábado, 18 de março de 2017

4218) Eu me lembro - 10 (18.3.2017)




(foto: bairro do São José, por Cláudio Medeiros)


Eu me lembro de quando as maiores ameaças aos meninos de Campina eram um bandido chamado João Cabeludo e um tarado chamado Barba Rala.

Eu me lembro de uma exposição que teve na antiga FUNDACT, onde depois foi o Forum da av. Floriano Peixoto, onde eu nunca esqueci uma coleção encadernada dos livros de Walter Scott (que até hoje ainda não li).

Eu me lembro de quando os ônibus trocaram as senhas de papel por fichas de plástico, redondas e coloridas, que a gente enfiava numa urna ao sair.

Eu me lembro de uma brincadeira de mesa de bar que consistia em mandar o outro procurar a fórmula “dd042” no rótulo da cerveja Brahma Chopp, e era a palavra “Chopp” de cabeça para baixo.

Eu me lembro da lojinha Zimbo Música, na Cardoso Vieira (eu morava em frente), e toda vez que botavam um disco de coco de embolada formava-se uma pequena multidão na calçada para escutar; isso não acontecia nem com Roberto Carlos.

Eu me lembro de quando botaram uma pipoqueira no saguão do cinema com um vidro redondo onde a gente via as pipocas pulando; dava a hora do filme começar e eu ficava com pena de não poder mais assistir as pipocas.

Eu me lembro de uma loja que tinha perto da esquina da Floriano Peixoto com a Venâncio Neiva chamada “O Palácio das Louças” e eu quando era menino lia de longe “O Palácio das Loucas” e imaginava uma história meio Mil e Uma Noites.

Eu me lembro de uma época em que o clima entre Treze e Campinense andava tão tenso que em cerca de um mês houve uns três episódios de jogadores que cruzavam uns pelos outros no centro da cidade e acabavam brigando de murros.

Eu me lembro dos bailes de carnaval em clubes, quando a orquestra tocava frevo durante horas e quando mudava para samba as pessoas diziam: “Agora é bom um samba, para descansar”.

Eu me lembro da primeira e talvez única vez em que passeei de canoa no Açude Velho. Com meus pais, talvez. Entramos, sentamos, a canoa começou a dar voltas, e depois de algum tempo eu enfiei a mão na água. Tive um susto, porque como a água do açude era parada eu esperava senti-la parada, e o que senti foi como uma correnteza muito forte, quase levando embora o meu braço.

Eu me lembro de uma caneta-tinteiro preta que eu usava e que tinha sido de meu pai (trazia o nome dele gravado, em pequeninas letras de imprensa) e um dia eu vinha descendo a Irineu Joffily pela lateral do Cine Capitólio e veio um cara, esbarrou em mim, e seis passos adiante quando levei a mão ao bolso da camisa, cadê minha caneta?

Eu me lembro de propagandas de lojas nas rádios: “Vais ou não vais à Casa Vaz?”, “A Insinuante: a mais moderna! A Moderna: a mais insinuante!”, “Casas José Araújo, onde quem manda é o freguês”, “Armazéns BBB, onde tudo é bom, bonito e barato!”.

Eu me lembro das laranjas vendidas na rua, descascadas com uma maquininha com um torno horizontal onde a laranja ficava presa e o cara girava uma manivela fazendo a laranja rodar de encontro a uma ponta metálica que tirava a casca em espiral.

Eu me lembro de Cadete, o fotógrafo do bairro de José Pinheiro, cuja propaganda dizia: “FOTO CADETE – dez letras a serviço da sua economia!”.

Eu me lembro do time amador do Fracalanza, que jogava muitas preliminares de jogos do Treze, e tinha um jogador chamado Lambretinha que tinha um pique assombroso com a bola nos pés.

Eu me lembro dos abajures com paisagens coloridas que, quando a lâmpada esquentava, começavam a girar e produziam um efeito parecido com o de um desenho animado.












quarta-feira, 15 de março de 2017

4217) A palavra "editor" (15.3.2017)



É uma das palavras mais ambíguas do nosso mercado literário. Aliás, não sei por que fico me referindo à literatura como um “mercado”. Mercado é a livraria! 

Literatura é cirurgia da alma, é fantasia compensatória, é beco sem saída, é delta de veias abertas, é som e fúria, é guerra e paz, é bobagem sem sentido, é profecia no deserto, é voyeurismo da tragédia e da farsa nas vidas alheias. 

“Mercado” é aquele momento em que a moça do Caixa nos ergue os olhos desamparados de quem precisa tanto daquele salário e pergunta: “Débito ou crédito?”.

De qualquer modo, grande parte das confusões em torno da palavra “editor” e do verbo “editar” decorrem da nossa promiscuidade com a língua inglesa e com o jargão encantatório com que os povos de língua inglesa fazem brotar dólares onde antes só existiam as coisas acima enumeradas.

Reconheço que a língua inglesa é muito mais clara do que a nossa, porque emprega dois termos para duas funções: o publisher e o editor

O publisher é o cara que cuida do mercado: o dono da empresa, o patrãozão, o acionista-mor, o CEO, o cara que toma as grandes decisões estratégicas, que contrata a peso de ouro os autores best-sellers que em seus romances usam expressões como “a peso de ouro”. 

Os editors são os caras logo abaixo dele, que cuidam do varejo, do dia a dia: que lêem e avaliam originais, dialogam com os autores ao longo das etapas da produção do livro, coordenam projeto gráfico, tradução, capa, etc. São os que cuidam da literatura.

(Nada impede que um publisher exerça, quando lhe interessa, funções típicas de um editor, visto que o dono da empresa é ele.)

Em português, tanto o publisher quanto o editor são chamados de “editor”. Quando é uma mulher, de “editora”, que é também o termo que designa a empresa publicadora de livros. Isso gera frases meio desengonçadas como:

- Amanhã vou na editora conversar com meu editor.
- Meu editor brigou com o editor e acha que vai ser demitido.
- Minha editora disse que a editora não pode me pagar esse adiantamento.
- Meu editor mudou de editora.
- Minha editora trocou meu editor.

E assim por diante.

Sem falar que o crescimento do mercado televisivo trouxe para nosso vocabulário cotidiano o termo “editor de filmes”, que é apenas o velho “montador” do cinema, ou seja, o cara que pega 100 horas de imagens filmadas e as transforma no filme de hora e meia que vemos na tela.

Essa tarefa de cortar-e-colar é chamada em português de “montagem”, no cinema, por influência da língua francesa; mas em inglês a atividade chama-se editing e o técnico-artista que a pratica é um editor, numa coincidência de termos que não tem nada a ver com o trabalho editorial do livro.

Não tem nada a ver, vírgula. Tem sim. Todo esse palavreado vem do latim, do verbo edere, que significa “trazer à existência, produzir”, e é formado de “ex”, prefixo que indica uma ação geradora, de dentro para fora, e “dere”, que é uma variante de “dare”, origem do nosso verbo “dar”. 

“Editar” exprime a mesma idéia básica de “dar à luz”, o que no sentido lato (sentido mais amplo) tanto se aplica a quem faz imprimir livros quanto a quem fornece a versão final de um filme.

Voltando especificamente ao trabalho do livro, a sofisticação crescente dessa indústria começou a trazer novos sentidos para os termos correlatos. 

O Dicionário Etimológico Online registra, no inglês, que o verbo edit (=editar) é assinalado no sentido de “publicar” em 1791; no sentido de “supervisionar para publicação”, em 1793; no sentido de “fazer revisões num manuscrito”, em 1885. Já o termo inglês editor é detectado em 1712 no sentido de “pessoa que prepara trabalhos escritos para publicação” e a partir de 1803 para a mesma função relativamente ao jornal impresso.

É bom notar também que a palavra “editar” acabou, no meio desse tranxinxim todo, ganhando um novo sentido, que usamos com frequência: “cortar, alterar, introduzir mudanças substanciais”.  Dizemos que o discurso de Fulano foi editado e apareceu na TV numa versão mais pacífica ou mais agressiva. Dizemos que certa imagem foi editada para remover um detalhe indesejável. Dizemos que um jornalista se demitiu porque quiseram editar a coluna dele removendo referências a tal ou tal assunto.

Em todos esses casos, o sentido original de “dar à luz, fazer aparecer, produzir” sofre um desvio: “editar” vira sinônimo de “interferir em”, e deriva, visivelmente, do conceito de “editar” filmes de cinema e de TV.  (Embora o exemplo literário de 1885, citado acima, já traga em si a semente dessa idéia: revisar algo para publicação, modificar, “dar uma melhoradazinha”.)









domingo, 12 de março de 2017

4216) Dicionário Aldebarã XIV (12.3.2017)



(ilustração: Michael Whelan)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.



“Arp-indul”: o calor abafado em dias de sol sem vento, quando se tem a impressão de que o espaço em volta está coberto por uma redoma.

“Arp-kadhan”: o calor em dias de sol compensado por rajadas de vento fresco que anunciam a aproximação de uma chuva forte.

“Manthiess”: os últimos dois-dedos de café na caneca, que acabam sendo jogados na pia, porque já esfriaram; por extensão, qualquer coisa que perdeu a serventia por decurso de tempo.

“Zumpian”: a sensação terrível de que esquecemos alguma coisa de importância vital e que no instante em que lembrarmos nosso cérebro dará um pipôco.

“Xickmus”: duplas de trabalhadores que se revezam numa mesma função, tendo ambos o mesmo preparo, para que o trabalho flua sem interrupção enquanto um dos dois descansa.

“Nessimans”: pequenas coreografias combinadas que alguns grupos de dançarinos preparam para executar em festas populares, espaços públicos, bailes em residência, numa competição informal, brincalhona, com outros grupos que fazem o mesmo.

“Vorr-Porr”: certas palavras em outro idiomas sujo som corresponde ao de uma palavra na língua local, mas com um significado totalmente diferente, dando origem a interpretações engraçadas.

“Tinger”: perigos desnecessários que as pessoas correm; as histórias de jactância que contam depois, como se tudo aquilo tivesse sido uma prova de coragem. 

“Kanlions”: colares feitos de fios macios e resistentes, pendurados ao pescoço, com presilhas onde as pessoas penduram objetos leves como relógios, espelhos, artigos de maquilagem, etc.

“Matatum”: aquele argumento irrespondível que não apenas encerra em definitivo uma discussão mas deixa alguns minutos de desconfortável silêncio no recinto.

“Rev-Doiul”: a tensão contraditória de quem, às vésperas de um fato crucial, de desfecho imprevisível, precisa tomar providências cansativas e desgastantes visando ambos os resultados possíveis, sabendo que, depois, metade desse esforço terá sido desnecessário.

“Ronfre”: cidadão que depois de exercer uma função pública por vários anos e ser desligado dela continua agindo e falando como se continuasse com todos os direitos e deveres do cargo.

“Bordis-boul”: arranjos florais que as famílias preparam simultaneamente com a primeira refeição da manhã, e que exprimem a expectativa de todos para com o dia que começa.

“Arransa-Dou”: lembranças remotas da juventude, evocadas e compartilhadas em público, que nos fazem rir, depois nos emocionam às lágrimas e por fim nos permitem rir de novo.

“Trigtung”: a prática de atribuir duplo sentido a palavras e frases anódinas, para serem usadas como senhas pré-combinadas quando se está diante de outras pessoas.

“Isternay”: sentença penal para casos especiais, que consiste em fazer o culpado por um determinado dano ser submetido ao mesmo dano de que foi causador.

“Vidgamm”: pequeno frasco contendo fortes essências vegetais capazes de estontear uma pessoa por bastante tempo, usada como defesa por mulheres que viajam sozinhas, e pelos homens que as atacam.

“Fistveik”: termo prejorativo para designar pessoas tão inteligentes que se deixam ofuscar pela própria inteligência e não percebem a infinidade de bobagens que praticam.







quarta-feira, 8 de março de 2017

4215) O Barcelona e o impossível (8.3.2017)




O futebol é bom quando nos leva para as fronteiras do impossível. Aquelas jogadas que ninguém tinha imaginado até que um moleque ousado as inventa. Aquelas campanhas que de semana em semana vão construindo a ascensão impensável de um time sem nada especial a não ser o fato de que está fazendo o que ninguém fez.

Ou então as grandes viradas – como a do Barcelona hoje à tarde, eliminando o Paris Saint Germain num duelo da Champions League. Tendo perdido o primeiro jogo em Paris por 4x0, o Barcelona precisava de 5x0 pra se classificar. Chegou a fazer 3x0, mas quando o PSG diminuiu pra 3x1 aí a contagem de gols (o PSG havia acabado de marcar o famoso “gol no campo do adversário”, que tem peso diferenciado) dizia que ele precisava fazer 6x1.

E faltavam apenas, o que? Trinta minutos? É difícil fazer três gols em 30 minutos num dos melhores times da Europa. Pois os três gols decisivos do Barcelona foram feitos nos últimos 7 minutos.

Neymar, repetindo uma cobrança de falta que ele traz pronta no bolso (lembram o gol na Alemanha, no Maracanã, na decisão do ouro olímpico de 2016?).

Depois, Neymar de pênalti – um pênalti muito mal marcado, aliás.

E por fim Neymar cruzando um bola sobre a área e achando Sergi Roberto do lado oposto pra fazer o que a imprensa está chamando “o gol do milagre”.

Bem, a imprensa toda vai dissecar o jogo pelas próximas semanas, Vou falar das entrelinhas do jogo.

Os dois pênaltis a favor do Barça foram no mínimo duvidosos, mas os saites que olhei até agora (L’Équipe, França; ESPN Soccer, Inglaterra; Mundo Deportivo, Espanha) mal tocaram no assunto. Qualquer pessoa que entenda de futebol sabe que o resultado, por milagroso que pareça, não foi mais do que justo.

O presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, disse depois do jogo: “Mesmo tendo havido dois pênaltis não marcados a nosso favor, isso não serve de desculpa. A gente não jogou nada no primeiro tempo. E estava perdendo de 3x1 até os 43 minutos. Levar três gols em sete minutos é demais.”

Fosse no Brasil, já teriam sido emitidas dezenove liminares. O futebol no Brasil é diferente. Aqui é a terra dos bacharéis, dos catadores de lêndeas jurídicas, dos campeões das tecnicalidades da letra miúda. O jogo é detalhe: tudo converge para a possibilidade de poder questionar a vitória do adversário.

Aqui, o futebol jogado em campo é um mero pretexto. O jogo mesmo é O Tapetão, esse sim o verdadeiro esporte nacional, a nobre arte de transformar Jesus em Barrabás ou Madalena em Maria citando alíneas e jurisprudências. Há quinhentos anos é assim. A vida real é mero pretexto.

O time parisiense pediu pra perder, como diz o pessoal do Calçadão. Montado no confortável 4x0, fez o que qualquer time medíocre faz: entrou todo recuado, chamando o adversário sobre si, pedindo para ser envolvido, para ser encurralado, para ser bombardeado. Deu no que deu.

Técnicos que fazem isso geralmente se defendem com um argumento do tempo em que a bola tinha cadarço. Dizem que chamam o adversário sobre si “para matar o jogo no contra-ataque”. Pode até ser. O PSG teve um vislumbre de justificação de seu recuo quando aos 17 minutos do segundo tempo Cavani acertou um chute dos mais difíceis, com uma precisão (passou a centímetros do cabelo do goleiro) e uma violência incríveis.


Pareceu ter matado o jogo. Podia tê-lo feito quando Cavani e depois Di Maria perderam gols incríveis. Os “deuses do futebol”, esses orixás nelsonrodriguianos, resolveram castigar sua incompetência, e chamaram Neymar.


terça-feira, 7 de março de 2017

4214) Canções de feira (7.3.2017)




(ilustração: Feira de Campina, de Irene Medeiros) 

São aberturas-de-canção tão parecidas que mesmo vindo de lugares tão distantes e vozes tão diferentes não tinha como não perceber a reiteração de um motif, de uma daquelas maneiras-de-dizer ou “gestos verbais” cristalizados por milênios de uso.

Bob Dylan cantava, em “Girl From the North Country”:

If you’re traveling to the North country fair
Where the wind hits heavy on the border line;
Remember me to one who lives there.
She once was a true love of mine.

Dylan com Johnny Cash (1969):

Eu ouvia essa canção do álbum Nashville Skyline (1969), onde a voz de Dylan fazia dueto com o barítono imponente de John Cash, mas Dylan já a havia gravado num álbum anterior, The Freewheelin’ Bob Dylan (1963).

Dylan solo (1963?):

Eu sempre traduzia essa primeira linha assim: “Se você está viajando para a feira do país do Norte...”. Depois me ocorreu que também pode ser: “Se você está viajando para o belo país do Norte...”, com “fair” sendo usado como em My Fair Lady, e posposto ao substantivo, ao estilo clássico.

Minha leitura estava contaminada, certamente, pela canção Scarborough Fair, balada tradicional adaptada por Simon e Garfunkel em 1966, e grande sucesso da época:

Are you going to Scarborough Fair
(parsley, sage, rosemary and thyme)?
Remember me to one who lives there;
She once was a true love of mine.


(Digressão: Essa repetição literal nos versos 3 e 4 não é plágio É o resíduo íntegro de linhas que passam intactas de geração em geração de poetas, tal como ocorre em nosso Romanceiro Ibérico, onde às vezes é possível rastrear um único verso (uma descrição, comparação, declaração de amor) que pula de romance em romance, de poema em poema, ao longo dos séculos e dos países.)

O ponto intressante aí é que na canção de Simon & Garfunkel existe, sim, a menção clara de que o poeta se dirige a alguém que está indo para uma feira, e lhe faz um pedido:

Você está Indo para a Feira de Scarborough
(salsa, salva, alecrim e tomilho)?
Dê lembranças minhas a alguém que mora ali;
ela já foi um grande amor meu .

Essa segunda linha indica justamente as ervas e temperos que se espera comprar nessa feira; é como se por aqui a gente dissesse: “coentro, cebolinha, pimenta-do-reino e cominho”.

Pode me chamar de abestado, mas eu marejei os olhos quando em 1976 me bateu nas mãos o álbum Nas barrancas do Rio Gavião, primeiro disco de Elomar, e eu me deparei pela primeira vez com este clássico, “O Pedido”:

Já que tu vai lá pra feira,
traga de lá para mim
água da fulô que cheira
um novelo e um carrim...


São milênios de vida rural em que a feira é o grande atrator dos produtos, dos projetos, das esperanças, das curiosidades de milhões de pessoas que vivem no semi-isolamento dos pequenos sítios e pequenos povoados. A gente tem a mania de dizer: “Nordestino não pode ouvir alguém falar que vai pra uma cidade grande, faz logo uma encomenda.” Não somos somente nós; aposto que no Cambodja, na Armênia, em Honduras  e na Calábria não é muito diferente.

E pouco me importa se a Elomar não é muito simpática a música popular dos Estados Unidos. As coisas que Bob Dylan e Elomar cantam já estavam sendo cantadas antes mesmo de Colombo descobrir a América.

A “ida para a feira” é uma mini-migração recorrente na memória das sociedades rurais; a feira ocorre sempre num lugarejo maior do que o lugar de origem dos feirantes. É lá que acontecem as coisas:

Se não chover, amanhã vou passear;
comprar farinha lá na feira do Pilar...

Na canção de Armando Nunes e J. Portella, “Moça de Feira” (1957), Luiz Gonzaga conta a história de uma velha sabida lá do Pilar, que bota a filha, bem bonitinha, pra vender farinha aos feirantes A moça é tão bonita que a mãe engana com facilidade os matutos, hipnotizados por ela:

Os olhos dela tem veneno da serpente
e é mais quente do que o sol de Quixadá...
Farinha crua, tá azeda, tá mofada,
mas os caba não vê nada; nem o troco quer contar.



O orgulho pela feira imbatível, onde “não falta nada”, bateu no teto com o clássico de Onildo Almeida, outra gravação de Luiz Gonzaga, “Feira de Caruaru” (1957):

Na feira de Caruaru tem tudo pra gente ver;
de tudo que há no mundo nela tem pra vender...



Inspiração fundamental para outros clássicos, outras “batidas no teto” como a “Feira de Mangaio” (1977) de Sivuca e Glorinha Gadelha:

Fumo de rolo, arreio de cangalha
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Bolo de milho, broa e cocada
eu tenho pra vender, quem quer comprar?



A ida para a feira é o grande momento na vida dessas populações. A poesia de cordel e a cantoria de viola não existiriam sem essas idas e vindas, esses fluxos constantes que convergem para a feira carregados de produtos e regressam, horas ou dias depois, carregados de aquisições.

Johan Huizinga, em Homo Ludens (1938), lembra o papel das feiras como espaço de mistura de comunidades, tribos, clãs, que se enfrentam poeticamente, cada um louvando sua região, seus produtos, a beleza de suas mulheres, a coragem dos seus guerreiros, a esperteza dos seus mentirosos. Torneios poéticos que já eram antigos na Ásia e na África antes de começarem a ressurgir na América.

E para quem quiser ter uma idéia do ambiente humano desses mercados, nada melhor do que Dedé Monteiro recitando seu clássico “Depois que a Feira Termina”:










sábado, 4 de março de 2017

4213) Albert Camus, Dashiell Hammett e o absurdo (4.3.2017)




Existe uma linha que me parece bem nítida ligando o romance policial “noir” ou “hardboiled” norte-americano e a literatura existencialista ou “do absurdo” francesa.

Esta última é mais difícil de delimitar, visto que não se trata (como o outro) de um gênero popular, submisso a fórmulas (ou pelo menos consciente da existência delas).  Ela também não se confunde, a não ser por uma certa contiguidade histórica e geográfica, com o Teatro do Absurdo, rótulo que abriga nomes como Samuel Beckett, Eugene Ionesco, Jean Genêt e outros, e foi objeto de um excelente livro de Martin Esslin.

A literatura do absurdo inclui principalmente Albert Camus e Jean-Paul Sartre, dois autores unidos por uma visão existencial semelhante e separados por fortes divergências políticas.  

Uma das características desse absurdo existencialista é a presença constante do Acaso como fator determinante da tragédia humana. O homem sempre acreditou no Destino, no “estava escrito”, no “maktub”, no fato (consequente da visão religiosa do mundo) de que nossa existência é governada por forças poderosas responsáveis pelo menor dos nossos atos, e que nos deixam, de acordo com cada crença, maior ou menor amplitude de ação através do livre arbítrio.

“Os desígnios de Deus são insondáveis” é a frase-padrão com que esses crentes reagem diante de qualquer evento inexplicável, bizarro, disparatado, aparentemente injusto e gratuito. A gente não sabe como é que um coisa tão aberrante aconteceu. Deus quis. Só ele sabe o motivo, mas motivo há, sentido existe. Nós é que não percebemos.

As filosofias do Absurdo substituíram essa perplexidade por uma pior. Não existe nem Deus nem destino. A vida é gratuita, não aconteceu em função de nenhum plano pré-desenhado por ninguém. O que se chamava Destino não é mais que o Acaso, um entrechoque cego de ações coletivas e individuais.

Quando Sartre dizia que “a existência precede a essência” dizia que a filmagem precede o roteiro. Pela crença milenar, havia um roteiro traçado por Deus (a essência) e nós o estávamos cumprindo com nossa existência (a filmagem). Sartre tomou um café, acendeu um cigarro e deu uma gargalhada.  “Roteiro coisa nenhuma”, disse ele. “A gente começa a existir, e passa a roteirizar a própria essência com cada gesto, cada atitude, cada escolha, cada confronto, cada concessão. A vida é um filme onde todo mundo está improvisando ao mesmo tempo.”

O romance policial hardboiled é a história de crimes gratuitos, tragédias que teria sido tão fácil evitar, paixões que não levam a nada, ambições que levam a seis cápsulas de chumbo num beco escuro.

Em vez das grandes engrenagens históricas, sociais e econômicas que impelem as tragédias dos personagens de Balzac, Tolstoi, Stendhal e Dickens, o policial noir mostra indivíduos pequenos, desamparados e arrogantes, violentos e sem propósito, agitando-se como insetos, copulando como insetos, morrendo como insetos atraídos por uma luz que os chama e os consome.

Essa insensatez da existência está nos livros de James M. Cain (The Postman always rings twice, Double Indemnity), de Horace McCoy (They shoot horses, don’t they?, No Pockets in a shroud), livros secos e brutais que foram vivamente elogiados na França por Sartre, Camus, e outros existencialistas.

Dashiell Hammett conta, em O Falcão Maltês (1929), um desses “casos” que encapsulam algum tipo de lição, simbolismo, mensagem, ilustração, o que quiser. 

O detetive Sam Spade conta a sua cliente o episódio que ficou conhecido como “a Parábola de Flitcraft”. Flitcraft é um agente imobiliário bem sucedido, pacato, estável, residente em Tacoma (Washington), que um belo dia desaparece sem deixar rastros. Tinha dinheiro no banco, não tinha inimigos, vivia em paz com a esposa e os dois filhos. Todas as investigações para localizar Flitcraft dão com a cara no muro. Ele desapareceu (diz Sam Spade) “como um punho desaparece quando alguém abre a mão”.

Cinco anos depois, a esposa de Flitcraft contrata o detetive por ter ouvido falar que em Spokane, a poucas horas de distância, fora visto um homem parecido com o marido dela. Spade vai até lá, e era Flicraft mesmo. O desaparecido confirma tudo e diz que fugiu porque quis, e deixou bens suficientes para que a família não passasse por problemas.

Spade pergunta por quê. E ele conta o que lhe aconteceu. No dia de sua fuga, vinha andando pela rua e uma viga de metal caiu de uma construção poucos metros à frente dele, arrebentando a calçada. Por segundos de diferença ele teria sido esmagado. E nesse instante ele percebeu que sua vida séria, profissional, ordeira e prática não fazia sentido. Podia morrer devido a um acidente besta. E ele se sentiu (diz Sam Spade) “como se alguém tivesse levantado a tampa da vida e lhe mostrado o mecanismo”.

Flitcraft fugiu, vagou pelo mundo, mudou de nome, voltou pra uma cidade próxima, casou e recomeçou a vida, mas a parábola se concentra nessa sensação terrível, de que por um instante fugaz a possibilidade da morte besta (o “ato gratuito” que tanto os Surrealistas quanto os Existencialistas tanto exaltaram, com conotações distintas) arrancou todo o sentido de sua vida.

Flitcraft é um herói absurdo, tanto quanto os heróis de Camus: o Meursault de O Estrangeiro, que mata um árabe a tiros na praia “por causa do calor” e é executado, o juiz-penitente de A Queda que deixa uma mulher se jogar na água do rio e a partir daí percebe que não era “a pessoa do Bem” que fingia ser.

Ou o guerrilheiro espanhol em “O Muro” de Sartre, que, pressionado a confessar onde estava escondido o líder do seu grupo (e ele nem sabia onde era), diz um lugar qualquer, ao acaso. Os inimigos dão busca, e o líder é encontrado e morto exatamente ali. Como não achar que o mundo é absurdo, diante de um fato assim?

A morte banal é o gatilho que dispara o absurdo na maioria dessas histórias, mesmo a morte evitada, como na Parábola de Flitcraft. Assim como na Antiguidade uma pessoa qualquer era subitamente convencida da existência de Deus devido a um fato fortuito, uma iluminação literalmente “caída do céu”, o homem moderno tem uma iluminação às avessas, uma anti-epifania. Uma experiência aleatória que faz desmoronar seu mundinho estável e revela por trás dele um Caos sem dono.





terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

4212) Frases com jeito de gente (28.2.2017)




Engana-se quem pensa que o cuidado com a textura sonora das palavras e das frases é exclusivo da poesia, e que para escrever prosa basta prestar atenção às idéias. 

Uma frase descuidada, mal escrita, parece às vezes com uma imagem tremida, fora de foco. Uma coisa que não ficou muito clara. O leitor pode até ver que se trata de uma rua, um homem montado numa bicicleta, um carro estacionado junto ao meio-fio, mas tem que fazer um esforço para chegar a essa conclusão. Ele sente que quem fez aquilo ficou devendo.

(Tudo que se comente nessa área tende a dois extremos opostos: efeito, quando é proposital e o autor sabe o que está fazendo; e defeito, quando é involuntário, porque o autor tentou algo e não conseguiu. "Foto fora de foco" e "frase fora de foco" também estão submetidas a esta lei.)

Ler um longo texto mal escrito é como dançar com uma pessoa que dança mal. Na leitura, o autor guia e o leitor é guiado. O leitor pede para ser bem guiado, e o autor o guia de forma desajeitada, sacolejante, descontínua, cheia de solavancos, de movimentos desnecessários, de esforços redundantes.

Quem escreve precisa dar atenção ao seu ritmo das frases. À combinação de sons das vogais e das consoantes. À terminação das palavras, para não gerar rimas bobas. Ao uso dos sinais de pontuação, que servem como uma espécie de partitura musical da prosa, dirigindo suas pausas e suas inflexões.

Um especial cuidado, por parte do escritor, deve ser tomado – pressupondo-se naturalmente que o dito escritor seja alguém preocupado com a qualidade literária de que seu texto será impregnado – para com a organização interna das frases e dos parágrafos, fazendo com que o dito texto torne-se, como não poderia deixar de ser, literariamente bem qualificado.

O parágrafo acima é um exemplo de como não escrever. Uma pequena antologia de erros e de inconveniências.  Ordem inversa das frases (voz passiva) quando a ordem direta facilitaria a compreensão sem empobrecer a forma.  Repetição irritante de sons no final das palavras (“...ado”).  Repetição supérflua de um termo banal que por si já é desnecessário (“o dito”).  Enchimento de linguiça com o uso de uma expressão (“como não poderia deixar de ser”) que nada significa e nada contribui, tipo da frasezinha besta que SEMPRE pode ser extirpada de um texto sem deixar outro sinal a não ser um respiro de alívio.  E outras coisas.

Não estou nem falando em Arte Literária. Falo de textos como a correspondência comercial, por exemplo – onde é necessário escrever bem, com clareza, para a pessoa do outro lado saber que não está lidando com um incompetente.

Não causa boa impressão a ninguém receber uma carta cujo redator se exprime assim: “Comunicamos a Vossa Senhoria que enviamos a sua mercadoria, que deverá chegar em alguns dias.  Solicitamos que a fatura seja paga em dia, conforme acertado com a nossa Companhia”.

A rima involuntária é um dos piores cacoetes que um redator de ofícios (nem falo de um literato) pode exibir.  A gente vê, com frequência, textos com essa alta incidência de repetições que nos fazem perder a paciência.  E o mais grave é que, em publicações menos formais (uma coluna de jornal, por exemplo) o redator que comete essa calamidade geralmente coroa a obra registrando bem satisfeito, entre parênteses: “Ih, rimou!”. 

Rima involuntária é um dos erros de redação mais grotescos que há. Se você vir que o cometeu, não diga: “ih, que bonitinho, cometi um erro!”. APAGUE, e escreva de um jeito certo. O leitor agradece.  

Para mim, que além de escrever também trabalho como crítico e como editor, “ih, rimou” é sinal definitivo de desleixo ou amadorismo. Não importa quem o assine. Pode ser Machado de Assis.

Diz-se que a gente só relê uma frase quando ela é muito boa ou muito ruim.  Uma boa frase pode precisar ser lida duas vezes para ser compreendida; mas um princípio básico da experiência estética diz que todo esforço extra do leitor deve sempre ser recompensado.  

Quando mais fundo está enterrado o tesouro, mais valioso tem que ser seu conteúdo.  Nenhum leitor gosta de reler uma frase duas ou três vezes apenas para, ao entendê-la, constatar que ela diz um clichê, uma bobagem. Que todo aquele esforço de dedução não acrescentou nada à leitura.

Uma frase mal feita geralmente precisa ser relida porque o autor falou, falou e não conseguiu fazer-se entender.  Às vezes o leitor, com um pouco de boa vontade, considera que o autor quis dizer X ou Y, e passa adiante.  Mas o leitor registra subconscientemente toda vez que faz um empréstimo de boa vontade.  Se isso passa a se repetir muito, ele deixa de sentir firmeza no autor.

Um dos grandes defeitos de alguns ensaios acadêmicos ou teses universitárias é o excesso de jargão técnico e de termos abstratos.  O texto não flui, porque cada nova palavra que é lida obriga o leitor a fazer uma pausa para estabelecer o significado dela e conectá-la com as que foram lidas antes. É como o trânsito numa cancela, numa barreira. Avança, e para. Avança, e para de novo. Não flui.

Claro que um texto especializado precisa muitas vezes recorrer a conceitos técnicos e raciocínios complexos, mas quando se publica um livro dirigido para o público em geral é preciso simplificar, sem empobrecer. Como? Não sei. Todo texto é um cobertor-curto.  Algo sempre vai ficar de fora. 

Se o propósito do texto é apresentar e discutir idéias, o autor deve estar preparado para expor essas idéias de diferentes maneiras.  Se uma idéia já é complexa por si só, maior ainda a necessidade de um estilo simples para exprimi-la.  Sem extravagância vocabular, sem labirintos de sintaxe, sem excesso de adjetivos, sem exibicionismo de estilo. Enfeites que só fazem desnortear ainda mais o leitor.

Pensar com clareza ajuda a escrever com clareza.  Muitos redatores (ensaístas, ficcionistas, jornalistas, etc.) começam a escrever sem terem parado antes para organizar as idéias e planejar o que vão dizer.  Começam a digitar palavras a esmo, geralmente algo que nada diz (“Dentro do complexo quadro cultural por que passa o mundo de hoje, algumas tendências mais nítidas podem ser observadas, de tal forma que...”) na esperança de fazer o texto “pegar no tranco”.  Às vezes dá certo, mas em geral não. 



(Uma outra versão deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, # 66, abril de 2011).





sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

4211) Do sonho para a ficção (24.2.2017)




(escada em espiral da Quinta da Regaleira, Portugal)


O sonho é uma atividade mental parecida com a criação literária, daí não ser surpreendente que tantos poemas e contos e romances tenham se originado de sonhos.

Os três grandes clássicos da literatura de terror tiveram como ponto de partida sonhos dos seus autores: Frankenstein de Mary Shelley (após um debate sobre histórias terroríficas, numa reunião entre amigos), o Drácula  de Bram Stoker (um pesadelo devido a algo indigesto que ele comeu, de acordo com depoimento do seu filho) e O Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson (pesadelo de efeito tão forte que a primeira versão, “pesada” demais, teve que ser queimada; a versão que conhecemos é a segunda).

O sonho é uma atividade tridimensional, eu acho, em que nos sentimos envolvidos (se bem que de modo virtual) por todos os lados. Vemos, ouvimos, apalpamos, caminhamos, travamos diálogos, atravessamos espaços físicos.

É muito diferente de quando estamos simplesmente escrevendo ficção:

“Caminhei pela calçada cheia de lixo, fui observado com desconfiança por um cachorro que ergueu seu focinho de dentro de uma caixa de papelão desconjuntada, e ao dobrar a esquina vi o matagal tomando conta de tudo e um carro ardendo em fogo lento junto da calçada”.

Uma cena boazinha, mas para compô-la recorri apenas a palavras e a 20 ou 30% de flashes visuais sugeridos por elas. Não sei a textura da calçada, não sei se fazia frio ou calor, não senti o cheiro do lixo nem o da fumaça. No sonho a gente sente tudo.

Uma das traduções mais envolventes que fiz nos últimos tempos (eu sou um desses profissionais afortunados que só traduzem os autores de que gostam) foi a trilogia Comando Sul de Jeff VanderMeer, que saiu pela Ed. Intrínseca sob os títulos de Aniquilação, Autoridade e Aceitação.

A obra conta os mistérios de uma “Área X” que há mais de 30 anos surgiu no sul dos EUA, cercada por um campo de força invisível onde só se penetra com a maior dificuldade. Acontecem ali fatos biológicos estranhos, inexplicáveis. E os livros contam o que acontece com as expedições que se aventuram lá dentro.

Toda a trilogia tem um clima onírico, que ressalta ainda mais porque praticamente todos os personagens são pessoas pragmáticas: militares, cientistas, agentes da CIA ou outros envolvidos com esse fenômeno que ameaça a segurança nacional e o próprio planeta Terra.

Num artigo recente, VanderMeer comenta alguns aspectos da criação da trilogia, escrita (por contrato) ao longo de dezoito meses fatigantes.

A certa altura ele diz que sua mente estava obcecada por duas coisas: o famoso vazamento do poço submarino da British Petroleum no Golfo do México (que ele visualizava como uma espiral de óleo negro elevando-se da profundezas e poluindo o mar da Flórida, onde ele morava) e uma cirurgia de dente do siso que lhe causou muito incômodo e o fez tomar muitos remédios. E relata:

Até que, uma noite, em algum lugar profundo do meu subconsciente aquela espiral de petróleo se transformou ou se inverteu e eu fui possuído por um sonho tenebroso. No sonho, eu descia os degraus de uma torre escavada no solo. Havia palavras vivas na parede. Uma matéria estranha. Uma energia peculiar. As palavras na parede eram feitas de limo, ou de fungos, algo tão comum ali no norte da Flórida que essa parte do sonho nem me pareceu estranha.

O que me pareceu, sim, estranho foi o fato de que as palavras iam ficando mais brilhantes, mais vivas, até que eu não pude mais ignorar um fato essencial e horrorizante: lá embaixo da escadaria, alguma coisa estava ainda escrevendo... e ao descer eu me aproximava dela.

Vocês podem achar que isso já bastaria para me acordar, mas era aquele tipo de sonho em que você não sabe que está sonhando. Eu tinha a noção bastante lúcida de que estava numa expedição, e era capaz até de lembrar o que tinha comido de manhã cedo, e de que tinha saído para dar uma volta... e encontrara aquilo.

Não vou mentir. Era algo que me desorientava e aterrorizava. Eu estava morrendo de medo naquele sonho. Mas mesmo assim continuei a descer os degraus, até perceber que depois da próxima curva estava o quem-quer-que-fosse que estava produzindo aquelas palavras. E não sei se foi por causa do medo ou se foi porque minha mente de escritor soube que se eu avistasse o que estava ali jamais seria capaz de escrever uma história sobre ela. Mas acordei com o enredo e os personagens principais prontos, na minha cabeça. Além de cerca de 500 palavras estranhas escritas na parede, que continuaram as mesmas até a versão final do livro.

Depois disso, escrever Aniquilação foi um processo simples. Eu levantava, escrevia durante umas três horas, dormia de novo, editava um pouco durante a tarde, e repetia o processo. Em cinco semanas, estava com o livro pronto. (...) Foi uma das melhores experiências de escrita que já tive.

Nem vou entrar nas associações freudianas ou sei lá o que desse sonho. O que me interessa é o método. O sonho proporciona:

a) Uma forte impressão de realidade em 3-D, onde paisagem, personagens, ação, diálogo, local etc nos chegam já prontos, num “pacote”, sem a necessidade que temos, na vigília, de imaginar cada detalhe, num esforço longo e cansativo.

b) Uma poderosa carga emocional – no caso, de medo, estranheza, etc.  Essa emoção “grava” de maneira mais profunda as imagens sonhadas, deixa-as indeléveis.

c) Uma forte sensação de mistério, de algo que precisa ser investigado, lembrado, examinado – no caso, por se tratar de um escritor, através de uma história que vá mais fundo nessa imagem inicial.

Note-se a afirmação do autor de que acordava, escrevia e dormia de novo. Como se precisasse diariamente revisitar o “locus” mental da inspiração que deflagrou a história.

Quem leu Aniquilação sabe que a descida da bióloga (a narradora do romance) nessa torre invertida, com escada em espiral, que mergulha no interior da terra, é uma das primeiras cenas do livro. VanderMeer partiu dela para criar uma narrativa sobre catástrofes ambientais, machismo e feminismo, o complexo de espionagem militar dos EUA, numa história intrincada que envolve inclusive a possibilidade de um contato extraterrestre.

O link abaixo traz o texto completo de seu relato, com a revelação de muitos outros detalhes do seu cotidiano que ele considerou inexplicáveis e acabou introduzindo no livro, bem como a impressão crescente que ele teve, durante esses 18 meses de escrita, de que o universo do livro estava fazendo certas coisas aparecerem no mundo real.












segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

4210) Sobre a série "Black Mirror" (20.2.2017)




Vi alguns episódios da série Black Mirror, que passa no Netflix. Vi, principalmente, a terceira temporada inteira, seis episódios. É uma série de ficção científica, e sendo a FC o que é, é preciso discriminar um pouquinho quais são os ingredientes.

É como dizer: “salada de frutas”. Todo mundo sabe o que é salada de frutas. Mas pode ser uma salada tipo “banana, mamão, maçã, abacaxi” e pode ser uma salada tipo “banana, laranja, uva roxa, pera”. Meio diferente, né?  (E ainda tem a famosa “Salada de onze frutas: dez bananas e uma laranja”).

Quais são os ingredientes que tornam Black Mirror uma série de FC?

1) Especulação tecnológica: uma leve extrapolação dos mecanismos tecnológicos e industriais do presente para imaginar em que eles poderiam resultar num futuro próximo;

2) Especulação sociológica: um foco não na tecnologia, mas na sociologia. A série não desce a muitos detalhes sobre como aqueles recursos high-tech foram obtidos, mas se focaliza o tempo todo nas consequência humanas e sociais. (Sim, tem histórias de FC que explicam tintim por tintim como funcionam as máquinas do ano 2500 mas pressupõem que as pessoas e as relações entre elas permanecem as mesmas.)

3) Um clima distópico, de “pesadelo inevitável aproximando-se”, que não pertence necessariamente apenas à FC, mas sempre esteve ligado a ela desde Huxley e Orwell até Burgess e Ballard.

Os episódios são competentes, alguns com efeitos especiais de ótimo nível, e sendo uma série londrina nos leva por ambientes urbanos menos familiares (pelo menos pra mim) do que as avenidas novaiorquinas ou californianas de sempre.

Vendo essas séries britânicas (tem a Sherlock também) de vez em quando penso: “Uau. Isso é uma rua de verdade. Esse troço aí deve existir mesmo, ninguém ia inventar isso só para colocar ao fundo de um plano de duas pessoas atravessando um sinal”.

Acho a interpretação dos atores meio forçada, um pouco enfática demais, fazendo muita força para deixar as coisas claras para o espectador, “olha, estou nervoso”, “olha, estou apaixonado”, “olha, estou concentradíssimo no que estou fazendo”. Problema das séries britânicas? Não sei, vai ver o problema é meu, porque tenho sentido a mesma coisa na boa série policial cubana-espanhola Quatro Estações em Havana.

Nos episódios que eu vi o tema predominante é a manipulação dos indivíduos através desses gadgets que teoricamente entram na vida dele prometendo-lhe mais liberdade, mais individualidade. Rola essa ilusão, no começo. Depois, ele começa a ver que está sendo arrastado por uma ventania que não controla.

Na temporada 3, “Nosedive” é uma alfinetada em todo mundo que já ficou rolando tela numa rede social e contando quantas curtidas, comentários e compartilhamentos recebeu, além de bajular socialmente os bem-cotados no ranking e evitar com discreção os de popularidade reduzida. Ainda não são muitos os filmes sobre os ranqueamentos simbólicos das redes sociais. Este aqui vale mais pela premissa do que pela finalização.

“Playtest” é um desses filmes sobre realidades virtuais onde, depois que o personagem entra, tudo pode ser real e tudo pode ser continuação do videogame. Depois de quebrada a primeira barreira, ninguém sabe mais onde é o “chão”: por mais que vejamos o personagem
voltar à vida normal que tinha antes, quem nos garante que ele ainda não está “lá dentro”?

Fica parecendo aqueles desenhos tipo Coiote & Papaléguas em que os personagens arrancam da própria cabeça dezenas de máscaras, sucessivamente, dizendo: “Era mentira! Eu sou na verdade este aqui!”  Ou seja: o tipo da narrativa que facilmente descamba para a diluição de si mesma. Equivale moderno dos contos de 1870 que terminavam dizendo: “...e ele descobriu que tinha sido tudo um sonho!”.

A série é concebida e escrita por Charlie Brooker, que tem no seu currículo alguns episódios de polêmicas e de acusações de material politicamente incorreto. Esse viés atravessa vários episódios da série, que estão a um passo do mau gosto ou da crueldade gratuita.

Brooker parece um roteirista adequado para explorar esses limites do que é permitido à mídia ou às redes sociais. Tem (me pareceu) um lado meio Vince Gilligan e outro lado blogueiro-de-escândalos.

Episódios como “Shut Up and Dance” mostram a possibilidade de uma manipulação eletrônica de pessoas levando-as a cometer desde atos gratuitos até crimes, através de chantagens anônimas e monitoração on-line permanente. É o sonho de vilões do passado como Fantomas ou Fu Manchu, realizado pelas tecnologias digitais.

Um conto de Bruce Sterling, “Maneki Neko” (1999) já explorava de maneira mais leve esse comportamento aparentemente demencial onde a pessoa A é comandada a praticar um gesto que reflete em B, este faz algo mais que reflete em C e assim por diante. Há um “mastermind” que controla tudo, mas as pessoas que executam os gestos individuais não sabem por que foram ordenadas a fazer aquilo.

A série é polêmica e pode ser vista em paralela com documentários como Eis os Delírios do Mundo Conectado (“Lo and Behold, Reveries of the Connected World”, 2016) de Werner Herzog, que explora aspectos tecnológicos e sociais do mundo online.

Um capítulo do filme de Herzog explora o lado tenebroso da web ao descrever a crise da família Catsouras, quando uma de suas filhas morreu num acidente e fotos do seu corpo mutilado foram viralizadas na Internet. Não só isso: as pessoas não se limitavam a ver as fotos, preparavam mensagens de ódios contra os pais (sem nem conhecê-los) usando a foto de filha. “Por que? Para que?”, perguntam-se eles, e também Herzog.

Black Mirror é uma dessas séries pessimistas em que não apenas acontecem coisas ruins às pessoas, mas sempre saímos de um episódio com a sensação de que a humanidade não deu certo, e que isso foi justo, porque ela não presta. É uma forma atual de decadentismo, diferente do decadentismo moral-sexual dos anos 1880. É um decadentismo sádico-sociopático, não o da depravação sexual, mas o da aviltação humana como um valor por si mesma.

Não deixa de ser um novo gênero, porque se a crítica culpa Hollywood pela criação dos “filmes feel-good”, aqueles feitos de propósito para todo mundo sair da sala com o coração cheio de ternura e um sorriso nos lábios, a TV de hoje andou criando também o “filme feel-bad”. Como que para dizer: a vida não tem sentido, e a gente não vale nada.