sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

4211) Do sonho para a ficção (24.2.2017)




(escada em espiral da Quinta da Regaleira, Portugal)


O sonho é uma atividade mental parecida com a criação literária, daí não ser surpreendente que tantos poemas e contos e romances tenham se originado de sonhos.

Os três grandes clássicos da literatura de terror tiveram como ponto de partida sonhos dos seus autores: Frankenstein de Mary Shelley (após um debate sobre histórias terroríficas, numa reunião entre amigos), o Drácula  de Bram Stoker (um pesadelo devido a algo indigesto que ele comeu, de acordo com depoimento do seu filho) e O Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson (pesadelo de efeito tão forte que a primeira versão, “pesada” demais, teve que ser queimada; a versão que conhecemos é a segunda).

O sonho é uma atividade tridimensional, eu acho, em que nos sentimos envolvidos (se bem que de modo virtual) por todos os lados. Vemos, ouvimos, apalpamos, caminhamos, travamos diálogos, atravessamos espaços físicos.

É muito diferente de quando estamos simplesmente escrevendo ficção:

“Caminhei pela calçada cheia de lixo, fui observado com desconfiança por um cachorro que ergueu seu focinho de dentro de uma caixa de papelão desconjuntada, e ao dobrar a esquina vi o matagal tomando conta de tudo e um carro ardendo em fogo lento junto da calçada”.

Uma cena boazinha, mas para compô-la recorri apenas a palavras e a 20 ou 30% de flashes visuais sugeridos por elas. Não sei a textura da calçada, não sei se fazia frio ou calor, não senti o cheiro do lixo nem o da fumaça. No sonho a gente sente tudo.

Uma das traduções mais envolventes que fiz nos últimos tempos (eu sou um desses profissionais afortunados que só traduzem os autores de que gostam) foi a trilogia Comando Sul de Jeff VanderMeer, que saiu pela Ed. Intrínseca sob os títulos de Aniquilação, Autoridade e Aceitação.

A obra conta os mistérios de uma “Área X” que há mais de 30 anos surgiu no sul dos EUA, cercada por um campo de força invisível onde só se penetra com a maior dificuldade. Acontecem ali fatos biológicos estranhos, inexplicáveis. E os livros contam o que acontece com as expedições que se aventuram lá dentro.

Toda a trilogia tem um clima onírico, que ressalta ainda mais porque praticamente todos os personagens são pessoas pragmáticas: militares, cientistas, agentes da CIA ou outros envolvidos com esse fenômeno que ameaça a segurança nacional e o próprio planeta Terra.

Num artigo recente, VanderMeer comenta alguns aspectos da criação da trilogia, escrita (por contrato) ao longo de dezoito meses fatigantes.

A certa altura ele diz que sua mente estava obcecada por duas coisas: o famoso vazamento do poço submarino da British Petroleum no Golfo do México (que ele visualizava como uma espiral de óleo negro elevando-se da profundezas e poluindo o mar da Flórida, onde ele morava) e uma cirurgia de dente do siso que lhe causou muito incômodo e o fez tomar muitos remédios. E relata:

Até que, uma noite, em algum lugar profundo do meu subconsciente aquela espiral de petróleo se transformou ou se inverteu e eu fui possuído por um sonho tenebroso. No sonho, eu descia os degraus de uma torre escavada no solo. Havia palavras vivas na parede. Uma matéria estranha. Uma energia peculiar. As palavras na parede eram feitas de limo, ou de fungos, algo tão comum ali no norte da Flórida que essa parte do sonho nem me pareceu estranha.

O que me pareceu, sim, estranho foi o fato de que as palavras iam ficando mais brilhantes, mais vivas, até que eu não pude mais ignorar um fato essencial e horrorizante: lá embaixo da escadaria, alguma coisa estava ainda escrevendo... e ao descer eu me aproximava dela.

Vocês podem achar que isso já bastaria para me acordar, mas era aquele tipo de sonho em que você não sabe que está sonhando. Eu tinha a noção bastante lúcida de que estava numa expedição, e era capaz até de lembrar o que tinha comido de manhã cedo, e de que tinha saído para dar uma volta... e encontrara aquilo.

Não vou mentir. Era algo que me desorientava e aterrorizava. Eu estava morrendo de medo naquele sonho. Mas mesmo assim continuei a descer os degraus, até perceber que depois da próxima curva estava o quem-quer-que-fosse que estava produzindo aquelas palavras. E não sei se foi por causa do medo ou se foi porque minha mente de escritor soube que se eu avistasse o que estava ali jamais seria capaz de escrever uma história sobre ela. Mas acordei com o enredo e os personagens principais prontos, na minha cabeça. Além de cerca de 500 palavras estranhas escritas na parede, que continuaram as mesmas até a versão final do livro.

Depois disso, escrever Aniquilação foi um processo simples. Eu levantava, escrevia durante umas três horas, dormia de novo, editava um pouco durante a tarde, e repetia o processo. Em cinco semanas, estava com o livro pronto. (...) Foi uma das melhores experiências de escrita que já tive.

Nem vou entrar nas associações freudianas ou sei lá o que desse sonho. O que me interessa é o método. O sonho proporciona:

a) Uma forte impressão de realidade em 3-D, onde paisagem, personagens, ação, diálogo, local etc nos chegam já prontos, num “pacote”, sem a necessidade que temos, na vigília, de imaginar cada detalhe, num esforço longo e cansativo.

b) Uma poderosa carga emocional – no caso, de medo, estranheza, etc.  Essa emoção “grava” de maneira mais profunda as imagens sonhadas, deixa-as indeléveis.

c) Uma forte sensação de mistério, de algo que precisa ser investigado, lembrado, examinado – no caso, por se tratar de um escritor, através de uma história que vá mais fundo nessa imagem inicial.

Note-se a afirmação do autor de que acordava, escrevia e dormia de novo. Como se precisasse diariamente revisitar o “locus” mental da inspiração que deflagrou a história.

Quem leu Aniquilação sabe que a descida da bióloga (a narradora do romance) nessa torre invertida, com escada em espiral, que mergulha no interior da terra, é uma das primeiras cenas do livro. VanderMeer partiu dela para criar uma narrativa sobre catástrofes ambientais, machismo e feminismo, o complexo de espionagem militar dos EUA, numa história intrincada que envolve inclusive a possibilidade de um contato extraterrestre.

O link abaixo traz o texto completo de seu relato, com a revelação de muitos outros detalhes do seu cotidiano que ele considerou inexplicáveis e acabou introduzindo no livro, bem como a impressão crescente que ele teve, durante esses 18 meses de escrita, de que o universo do livro estava fazendo certas coisas aparecerem no mundo real.












2 comentários:

Pedro Lira disse...

Já tive vários sonhos lúcidos e durante a adolescência lia muito sobre o tema. O pessoal nos fóruns receitam várias técnicas para se perceber em um sonho. Anotar os sonhos assim que acordar, pensar muito em algum tema antes de dormir, ter um sono regular, gravar sons para escutar e determinados momentos do sono, etc essas práticas ajudam a sonhar corretamente, com qualidade e com lembranças do que foi sonhado.

Os sonhos ao contrário do que o texto diz não é tão cheio de detalhes assim(ao menos pra mim é para as outras pessoas que pesquisei que falavam sobre o tema). Tanto que para criar a lucidez durante o sonho tem duas técnicas que funcionaram pra mim: a primeira é olhar para o seu relógio. É engraçado isso porque eu nunca usei relógio na vida, mas no sonho se você olhar pro seu relógio ele vai estar lá. Por conta dessa falta de detalhes as horas vão ficar incompreensíveis, não vão existir ponteiros ou a hora digital vai estar toda embaralhada. A segunda técnica pra despertar é olhar para a palma da mão. O sonho não consegue processar todas as linhas que existem, ela fica lisa ou tem as linhas se movimentando.

Eu duvidava dessas técnicas até que experimentei e é incrível como funciona. Mas a maior dificuldade é se lembrar dos sonhos para tentar se perceber neles. Nós sonhamos todos os dias mas não sempre nos lembramos.

Nunca fui tão aplicado sobre anotar os sonhos e outras coisas e talvez por isso eles estão ficando mais raros. Mas é muito bom quando acontece. Você comanda tudo o que acontece, pode falar com quem quiser se encontrar com quem quiser, voar, falar para uma multidão, sair do planeta, rever uma mulher que você se relacionou, uma pessoa que morreu, enfim a imaginação é o limite.

Esse sonho aí de escritor me parece bem difícil de acontecer com tantos detalhes. Ele fala que se lembrou de 500 palavras, muito diferente essa realidade do que eu costumo sonhar.

Paulo Rafael disse...

Na trilogia, o Volume 1, Aniquilação, é bom e completo em si mesmo. Não seriam necessários os outros dois volumes que quase nada acrescentam à história. O Volume 2 não anda, é tediosíssimo. O Volume 3 é menos tedioso e acrescenta apenas uma ou duas informações relevantes ao contexto da história. Perda de tempo ler os volumes 2 e 3.