terça-feira, 20 de setembro de 2016

4162) Tropeções de escritor (20.9.2016)



("cadavre exquis" - www.letti.de)

O escritor Tim Powers contava que começou a ler um livro e a certa altura dois personagens entram no carro e pegam a estrada para outra cidade. Vão conversando e de repente o narrador diz: “Pedi licença a Fulano e fui na cozinha pegar duas cervejas.” E o leitor dá um pulo e diz: Peraí, os caras não estavam num carro?!

Erro de continuidade não existe só no cinema. Existe um certo surrealismo nesses cortes bruscos motivados por inexperiência, carraspanas, doença na família, ou mero esquecimento mesmo. Um autor de pulp fiction, por exemplo, tinha que fazer “x” páginas por dia e geralmente fazia sem ter tempo (ou saco) para reler o que tinha feito na véspera. Pegava de onde tinha deixado.

A falta de cerimônia deles para com a arte literária beirava a de Nelson Rodrigues, que, reza a lenda, aproveitava os remansos do tempo na redação do jornal onde garimpava o leite das crianças, e ficava na máquina batucando os folhetins com que garantia o café dos adultos, e que assinava como “Suzana Flag”(Meu Destino É Pecar, Escravas do Amor, etc).

Eram novelões intrincados, ora com alguma rudeza naturalista, ora melodrama puro, tango argentino puro. Cada romance era como três ou quatro peças rodriguianas interagindo umas com as outras.

Daí que em certos momentos Nelson enchia o saco, vestia o paletó e descia para almoçar ou para tomar uma. Os colegas corriam para a máquina, liam, sentavam ali e continuavam a história por mais duas ou três páginas até alguém anunciar o retorno dele, e aí todos voltavam a suas mesas. Nelson tirava o paletó, pendurava o paletó no encosto, puxava a cadeira, sentava, erguia o prendedor de metal de sobre a folha de papel e relia as últimas cinco linhas. Repunha o prendedor, e daí seguia em frente.

Isso é uma típica brincadeira de redação ou de escritório, ambientes propensos a esse tipo de gracejo. Imagino por minha conta que esse detalhe, mesmo que fosse revelado a Nelson, não mudaria nada. Ele daria de ombros, enfastiado. Que importava se havia um texto intruso incrustado no DNA de sua criatura? Autoria? Que importava a autoria?  Fossem perguntar a Suzana Flag.

Eu diria que em outro contexto isso seria uma brincadeira surrealista de meta-parceria em cabra-cega. Aquela brincadeira de escrever uma frase e dobrar o papel deixando um pedacinho para ser lido e continuado pelo próximo, que faz o mesmo e passa adiante. São os tais “cadáveres delicados” que André Breton, Luis Buñuel, Paul Éluard e os demais surrealistas praticavam, com textos e desenhos coletivos feitos às cegas.

Nelson Rodrigues, mesmo sob o próprio nome, e no que tem de melhor, sempre foi um imperfeccionista, produzindo sem parar, confiando mais no impacto da verdade central de tudo aquilo do que em qualquer filigrana estilística.

Era escritor de redação de jornal, com formação de almanaque, de palavras cruzadas, de coluna de variedades, curiosidades, faits-divers (como também o foram Georges Perec, Raymond Queneau, Mario Quintana). O redator navalha, que com uma só frase degola uma dúvida e encerra uma questão.

Essa era a escola de Nelson, um fazedor de frases impecável. Teatro + jornal = literatura. A tirada brilhante das grandes cenas do melodrama, e a concisão desconcertante do criador de manchetes.

Talvez alguma coisa de sua obra envelheça, mas não acho que serão os diálogos. Talvez os enredos. Não era um grande concatenador de manobras complicadas. Suas intrigas eram intrigas suburbanas; mesmo no romance eram teatrais; mesmo no teatro tinham algo de radiofônico. Pessoas falando, falando, jogando tudo pra fora. 

E as tramas dele eram entendíveis por quem é capaz de entender uma página policial, uma novela hispânica, um folhetim francês. Mas seu negócio não era a “trama”. Eram as situações bizarras, patéticas, brutais, constrangedoras em que ele jogava seus personagens como quem joga gente aos leões. Seus enredos não parecem um silogismo ou uma equação, e sim uma girândola de fogos de artifício.

Lembro às vezes a história, acho que contada por Frank Gruber, de um escritor de pulp fiction que deu uma festa para uma multidão de amigos em seu apartamento em Manhattan, anos 1940. Enquanto os convidados bebiam e dançavam, o dono da casa, num recanto, datilografava a toda velocidade as últimas vinte páginas de um conto que precisava pôr no Correio no dia seguinte. À meia-noite ele deu o conto por terminado e foi beber e dançar com os outros.

Nessas lendas urbanas literárias, a profissão de escritor parece mais romântica do que é, mas o crítico e o leitor: pensam: como ficaria uma história escrita assim? Para alguns, não faz diferença. Tem gente que escreve num café de calçada, num beliche de caserna, num trem lotado. Tem escritor que nem se altera, pode estar num clube, num grito de carnaval, escrevendo num caderno sob a chuva de confetes, e o texto sai com som de mosteiro.

Penso assim: pessoas como esses escritores pulp reliam o que tinham feito? Pegavam da última frase, como Nelson Rodrigues? Mantinham controle de continuidade em algum bloco-de-notas com nomes, datas, direções mencionadas no texto? Ou era tudo de oitiva?  Isaac Asimov orgulhava-se de só pegar num conto para revisar quando ele era recusado por todas as revistas disponíveis no momento. Eu acho isso uma heresia pior do que não ir ao médico.

O texto que Asimov mandava era seu primeiro rascunho, que já era praticamente o texto final. O Doutor não gostava de reescrever, tinha (ao que se diz) uma memória espantosamente retentiva, e defendia sua teoria estilística da “prosa da vidraça” (transparente, mostrando tudo, sem chamar a atenção para si)  contra a “prosa do vitral”, a prosa ornada, que não importa do que fale, está mostrando antes de tudo a si própria.

Se você não é Asimov, como é o meu caso, o jeito é revisar. Você “perdiganha” um tempo imenso relendo pela décima vez um trecho que já foi reescrito nove, mas por isso mesmo, prestenção. 

Será que Nelson percebeu e cortou as intervenções dos seus companheiros de jornal? E como seriam? Será que eles esculhambavam muito, ou procuravam repetir os nomes dos personagens, continuar, mesmo avacalhando, o que estava escrito ali? Cem anos depois, algum professor de literatura vai envelhecer tentando em vão entender que cortes bruscos de enredo e de tom eram aqueles que de vez em quando sobressaltavam o livro.

De qualquer modo, brincadeira surrealista ou não, é uma interferência na obra feita à revelia do autor da obra. Comparo com aquela tradução de Os Lusíadas para o inglês onde o tradutor britânico cortou várias estrofes consideradas impróprias, mas em compensação inseriu trezentos versos com a descrição de uma batalha marítima que não existe no original. (Aqui:









segunda-feira, 19 de setembro de 2016

4161) "Mickey One" (19.9.2016)



Mickey One de Arthur Penn (1965) é um desses filmes obscuros que só servem de referência para mim, porque ninguém nunca viu. Tirando minha turma do Cineclube de Campina Grande, conheço poucas pessoas que viram o filme. Lembro que Jean-Claude Bernardet foi um dos poucos que disseram lembrar e gostar dele. Citei esse filme num conto da Espinha dorsal da memória.  

A crítica da época comparou a Kafka esta história de um artista de stand-up comedy, que cai em desgraça junto à Máfia e começa a fugir de tudo e de todos, porque não sabe exatamente quem está tentando matá-lo. No auge do sucesso nas boates de Detroit, Mickey (Warren Beatty) foge dos palcos, viaja de carona, desaba noutra cidade, trabalha como servente, mora numa pensão sórdida.

Sua transformação parece a daquele personagem de Philip K. Dick que num dia é o apresentador de TV mais famoso do país e no outro acorda atordoado numa pensão barata, num mundo onde não tem documentos e onde sua existência é negada em todos os registros.

O começo dos anos 1960 jogou uma curiosa saraivada de influências no cinema norte-americano.

Vi num programa de TV a cabo que a parceria entre Warren Beatty e o diretor Arthur Penn surgiu (estou contando de memória, pode não ser precisamente isto) porque Beatty, sempre antenado, tinha visto os filmes policiais existencialistas de Louis Malle (Ascensor para o Cadafalso, 1958), Jean-Luc Godard (Acossado, 1959), François Truffaut (Atirem no pianista, 1960) e outros. Achara aquilo o máximo e queria fazer um equivalente.

Mickey One, a primeira tentativa, não produziu muito impacto mas resultou num filme plasticamente belo e com uma narrativa bem pessoal. Eles conseguiram contar, por exemplo, com o fotógrafo Ghislain Cloquet, que faz um belo trabalho em preto e branco. (Cloquet fotografou numerosos trabalhos de Alain Resnais e Robert Bresson).

A intenção parece ter sido a de capturar um pouco desses filmes, onde sobre uma ambientação de policial “B” norte-americano alguém projetava o absurdismo do ”estrangeiro” de Camus, dos destinos trágicos previsíveis de antemão.

Policial e jazz norte-americano. Angústia existencial e notas de rodapé francesas.

Mickey One, visualmente, tem sequências extremamente bem editadas em termos de movimento e descrição dramática. Várias cenas meio stanislawskianas que parecem bate-bocas meio escritos e meio improvisados entre os atores.

Era uma tendência teatralizante da época, e Beatty, já um galã em ascensão, queria visivelmente seguir na trilha de James Dean, Marlon Brando e Paul Newman: o herói sedutor mas torturado por uma ânsia inexplicável que as personagens femininas, obedecendo aos roteiristas, achavam charmoso.

Vi o filme em 1967 em Campina Grande, e votei nele como melhor filme do ano. Vi alguma repercussão nos jornais do Nordeste, mas nada que deixasse marcas mais fundas.

E como diria o poeta João Barafunda, tão recitado por meu pai: “Todos depressa, desde aquele instante / esqueceram-se dela. Menos eu.”  Quando dois anos depois Beatty e Penn jogaram sua segunda cartada, com Bonnie e Clyde - Uma rajada de balas (1967), todo mundo se esqueceu de Mickey One. Menos eu.

Revi o filme agora e parece Jim Jarmusch, roman noir em P&B, com boas doses de Louis Malle.  Na época falávamos (porque era isso que os críticos profissionais falavam) da influência de Kafka e de Orson Welles, com O Processo (1962), que é certamente outro referencial de Penn. E de Metropolis – em alguma sequência de facho de luz na escuridão ou de balé visual de estruturas mecânicas.

Na época acho que as referências da gente puxavam para esse lado gótico, expressionista, sei lá o quê. Vivíamos escarafunchando a história do cinemão antigo, e os parâmetros ficavam sendo aqueles. Mas hoje vejo o quanto esse policial existencialista norte-americano é um esforço consciente para ser meio francês.

O filme tem cenas noturnas meio incoerentes e delirantes, sem som ambiente, apenas com um solo de jazz; é um detalhe que Penn pega do Ascensor de Malle, e onde o francês usava Miles Davis ele usa Stan Getz.

Mickey tem várias cenas em que ele fala e fala para um interlocutor que não emite uma sílaba. É a maldição do standup.  A maldição de Riobaldo e do sobrinho do Iauaretê: alguém que não consegue parar de falar, alguém que não consegue parar de dizer em voz alta algo que ainda não sabe o que vai ser.

Alguém que aceita com um certo susto e uma certa humildade servir de conduto ao jorro de uma mensagem falada. E o jorro passa através deles, e não adianta perguntar se compreendem o que estão dizendo, mas é bem possível que um ou outro saiba.

Mickey fala, pergunta, responde-se, questiona-se. Troca de tom e de personagem quando vê que não está funcionando. É, como Beatty provavelmente é, um ator 24-horas-7-dias.

O melhor filme daquele ano? Olhe, filmes mais galardoados do que ele já envelheceram pior aos meus olhos.

Arthur Penn é admiradíssimo por pessoas que não têm a menor idéia de sua existência. Talvez fiquem surpresas em saber que são de um mesmo cineasta filmes tão dissímiles e tão assistíveis quanto Bonnie & Clyde (com Beatty e Faye Dunaway), O milagre de Anne Sullivan (com Anne Bancroft e Patty Duke), Pequeno Grande Homem (com Dustin Hoffmann), Alice`s Restaurant (com Arlo Guthrie), Night Moves (com Gene Hackman), Caçada Humana (com Marlon Brando). 






sexta-feira, 16 de setembro de 2016

4160) José Laurentino,1943-2016 (16.9.2016)



(foto de Leonardo Silva)

Algum tempo atrás, remexendo aqui numas gavetas, achei um papel dobrado. Era um daqueles papéis onde a gente anota alguma coisa e guarda no bolso de trás, e durante semanas ou meses o papel sai pulando de calça em calça até o sujeito estranhar e ter que olhar o que é aquilo.

Era um papel rabiscado com caneta Bic, uns riscos, uns cálculos, e estas linhas, com a minha letra:

Amigo Zé Laurentino
estive em nossa cidade,
quando ouvi tocar o sino
da igreja da saudade.

Era uma carta que eu comecei a escrever depois de uma das minhas passadas por Campina Grande. Isso aí era o tipo do verso que Zezinho ouvia e dava um riso meio de banda e dizia, vige, que coisa bonita. Poesia de cantadores tem muito dessas imagens meio singelas, que uns acham naïf. Versos que podiam ser de ciranda ou de coco, porque são versos para serem cantados. E é por isso que o poeta faz retinir o sino, porque a melodia pesa pelo menos tanto quanto a retórica.

O projeto de carta ficou por aí mesmo, mas reencontrei Zezinho meses atrás na cerimônia de entrega dos títulos de cidadãos paraibanos a Ivanildo Vila Nova, Santanna o Cantador e Os 3 do Nordeste.  Zezinho tinha perdido a vista por um tempo, mas depois descobriu-se que era algo que podia ser operado, e depois de algum tempo fora do ar ele recuperou a visão em grande parte, o que deve ter sido uma grande alegria.

Tenho lembrado muito da época dos festivais de cantadores em Campina, em função de textos que estou escrevendo ou revisando.

Zé Laurentino pertencia à Associação dos Poetas e Repentistas Nordestinos, atuante em Campina, nessa época tendo à frente José Gonçalves e Ivanildo. E mais Santino Luiz, João Marinho, e outros, mas todos violeiros, e somente Zezinho era o que se chama de poeta matuto.

Os seus grandes sucessos naquela época eram “Matuto no Futebol”, "Esmola Pra São José", "O Mal se Paga com o Bem", “Eu, a Cama e Nobelina”. O linguajar da poesia matuta engana quem pensa que o poeta fala daquele jeito. É uma fala estilizada, uma fala-máscara, que o poeta usa para dar colorido ao seu “número” no palco. Quem escreve versos daquele jeito dificilmente fala daquele jeito.

Não gosto da poesia matuta quando ela envereda por aquela estética de festa junina, onde é obrigatório mostrar um matuto de chapéu esfiapado, sem os dentes da frente, e que anda como um macaco. Não gosto quando ridicularizam o matuto. Gosto quando o matuto (como os humoristas judeus) manga de si mesmo, e, mangando de si mesmo, demonstra ter uma compreensão de si mesmo e do Outro mais profunda que a compreensão do Outro.

Patativa do Assaré tinha um português melhor do que o meu. A voz matuta era opção dramatúrgica para deixar claro o avatar que estava incorporando.

José Laurentino era um poeta de ironia discreta, olho bom para detalhes, riqueza de rimas que pareciam cair do céu para fechar uma estrofe com perfeição. Seus versos que provocavam maiores gargalhadas eram quando ele descreva o beradêro que se mete a jogar de "quipa" e vai defender um pênalti:

Me dero um calção listrado
e um pá de jueieira
também um pá de chuteira,
uma camisa de gola
e eu gritei arra diabo
eu já peguei touro brabo
e segurei pelo rabo
porque não pego uma bola?

E quando eu fui pegá a bola
me atrapaei meu patrão
passou pru entre meus braço
bateu numa região
que foi batendo eu caindo
espulinhando no chão. 


Esse tipo de humor, pra mim, tem alguma coisa de comédia do cinema mudo, alguma coisa de cordel, de comédia de picadeiro de circo.

E a grande graça, pra mim, está nesse verbo “espolinhar”, que é muito típico do interior do Nordeste. Uma palavra rara mas familiar, com uma sugestão visual (“espolinhar”, para mim, é cair no chão e ficar agitando as pernas, dando chutes no ar.)  

Augusto dos Anjos usa a palavra, em “A Meretriz”:

Nesse espolinhamento repugnante
o esqueleto irritado da bacante
estrala... Lembra o ruído harto azorrague
a vergastar ásperos dorsos grossos.

A palavra rara que todo mundo conhece. O mesmo que vemos tantas vezes no teatro de Lurdes Ramalho, de Ariano Suassuna, onde a todo instante brilha um diamante-bruto vocabular incrustado na pedra do idioma comum.

No poema de “Nobelina”, o narrador faz um elogio à sinfonia musical produzida por uma cama com o colchão em movimento, e depois fala de seu noivado com Nobelina. Um dia ele a flagra recebendo a arrastada-de-asa de um carioca, numa festa, e profere a sentença memorável:

Dei uma cordinha a ela
porque mulher é assim:
quando tá com a corda toda
mostra se é boa ou ruim.

Após a notícia do falecimento de José Laurentino, nesta quinta-feira, vi nas redes sociais a citação de um verso feito por ele quando do falecimento de Manoel Monteiro, o cordelista muito atuante em Campina, poucos anos atrás. Zezinho teria dito:

Manoel, por ti eu sinto 
uma saudade sem fim.
Se aí no céu encontrares 
um barzinho, um botequim, 
peça a Deus para que guarde 
um lugarzinho pra mim.









quinta-feira, 15 de setembro de 2016

4159) O detetive investigado (15.9.2016)



Não é muito comum um gênero artístico ser criado por uma só pessoa, num curto espaço de tempo.

Podemos dizer que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira criaram o baião nos anos 1940 no Rio de Janeiro, e que Edgar Allan Poe inventou o romance detetivesco moderno em 1841 quando publicou “The Murders of the Rue Morgue”.

Borges lembra, numa conferência famosa, que a literatura policial produziu não somente um novo tipo de história (voltada para a elucidação de um crime inexplicável) . Produziu um novo tipo de leitor. Um leitor que, sabendo que vai haver uma solução, quer chegar a ela antes do detetive. Um leitor mais desconfiado, mais atento, mais pronto para duvidar do autor.

Num grande llivro policial sendo lido por um grande leitor não passa uma corrente de ar que não deixe alguma dúvida e desconfiança quanto à razão de sua passagem justamente ali, naquele local, entre aquelas pessoas... Tudo é suspeito, tudo é duvidoso. Antes do romance policial, é possível que de fato ninguém lesse um romance com esse tipo de prevenção, com essa atenção extra ao jogo, à competição implícita.

Pierre Bayard é um psicanalista e escritor francês. Com algumas obras poucas, mas firmemente argumentadas, ele está criando um novo gênero: o romance crítico de detetive (“detective criticism”).

É um livro em formato de ensaio onde o autor, insatisfeito com o culpado apontado pelo detetive numa obra clássica, reinterpreta a história, recontando as peripécias, mostrando sua própria versão e apontando um novo culpado.

Bayard fez isso nas suas desconstruções metalinguísticas de duas obras célebres (e dois dos meus clássicos preferidos): O Assassinato de Roger Ackroyd (1926) de Agatha Christie e O Cão dos Baskervilles (1902) de Conan Doyle. Bayard também tem pelo menos um livro publicado no Brasil: Como falar dos livros que não lemos? (Objetiva, 2008), mas não posso falar sobre este porque não o li.

Na primeira das suas reescrituras (Qui a tué Roger Ackroyd?, 1998) Bayard faz um detalhado resumo do romance de Agatha Christie e reexamina ponto por ponto os fatos que conduziram ao crime, as suspeitas infundadas, os detalhes que não batiam. Ele mostra a solução apresentada por Hercule Poirot, mas mostra que a solução não se sustenta.

O passo seguinte para Bayard é pegar todos os elementos criados e arranjados por Agatha Christie e inventar baseado neles uma versão ainda melhor que a de Agatha Christie.

E ele o faz.  Sua teoria é tão verossímil quanto a de Lady Agatha, e o assassino que ele aponta é de repente uma hipótese ainda mais interessante. (Falei sobre o livro aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/04/1917-quem-matou-roger-ackroyd-152009.html).  

A segunda reescritura de Bayard intitulou-se L’Affaire du Chien des Baskervilles (2008) e neste caso li a tradução norte-americana de Charlotte Mandell, Sherlock Holmes was Wrong (New York, Bloomsbury, 2008).

Aqui, Bayard refaz a história do cão fantasma que cruzava a charneca e assombrava uma família de ricos proprietários.  E ele desmonta, tijolo por tijolo, todas as explicações que um Holmes meio lacônico fornece a Watson no final do livro. Nada do que imaginamos ter visto aconteceu de fato. Quer dizer--- sim, os fatos são aqueles. Mas eles podem ser interpretados de outro modo.

Não sei se é um novo gênero literário ou um novo gênero de crítica literária, mas eu gosto.

Diz Bayard, no segundo livro:

“A crítica detetivesca (“detective criticism”) extrai todas as consequências do fato de que muitos elementos que nos foram apresentados no texto como verdades estabelecidas são na verdade, quando observados com atenção, apenas relatos de testemunhas oculares.”

É possível manter os fatos básicos os mesmos, mas aproveitar os espaços em branco e criar outra narrativa que os justifique. Os mesmíssimos fatos podem ser satisfatoriamente cobertos pelas mais variadas explicações, como Chesterton exemplificou em “A honra de Israel Gow” (1911), um dos melhores contos da série do Padre Brown (que incluí no meu Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, 2005).

Essa luta pela hegemonia de uma explicação está na medula mesma da literatura de detetive. Há um crime. Às vezes o assassino quer impor uma leitura: aquilo foi acidente, morte natural, suicídio. O detetive impõe outra leitura que não só explica como o crime foi praticado, mas também quem o praticou. Às vezes, antes dessa solução definitiva. a polícia ou a imprensa fornecem outras hipóteses que o detetive precisa questionar, pois sabe que não batem com suas próprias observações.

Borges, que no auge da sua escrita meditava constantemente sobre o gênero policial, imagina em “Exame da Obra de Herbert Quain” (1941) o autor de um livro policial que dá pistas enigmáticas sobre um crime e no fim diz a solução, mas, antes de se encerrar o livro, ele faz um comentário ambíguo que leva o leitor a reconsiderar, reler, reintepretar episódios do livro que até então ele via pela ótica do detetive. E só então entender o que de fato acontecera. Diz Borges: “O leitor desse livro singular é mais perspicaz que o detetive”.

O leitor-detetive Pierre Bayard mostra ser mais esperto que Hercule Poirot e Sherlock Holmes.

Sei que os respectivos fãs tentarão lavar a honra dos seus ídolos, mas acreditem, sou fã também. Quanto a Bayard, o simples fato de ter tido e executado a idéia merece uma medalha.  Não cabe comparar seu projeto com o de Lady Agatha e Sir Arthur. Estavam tentando criar tipos de obra completamente diferentes. É outra a relação com o leitor.

Bayard tem precursores ilustres nessa tentativa. Embora não chegue a propor uma nova teoria, como faz o francês, Robert L. Styx também reduz um argumento de Conan Doyle a pó (e logo num dos seus contos mais famosos) em seu conto-ensaio “Os 7 erros na Liga dos Cabeça Vermelha”, que reproduzi e comentei aqui, no meu blog sobre Raymond Chandler: http://caminhandocomphilipmarlowe.blogspot.com.br/2014/10/0009-memoria-do-leitor-2.html









segunda-feira, 12 de setembro de 2016

4158) A dieta de Um Autor Por Mês (12.9.2016)



Dizem os dietantes que as dietas unicistas são muito eficazes. Uma semana comendo só arroz. Ou então só manga num dia, só goiaba no segundo, só mamão no terceiro.

Bolei uma dieta literária, uma espécie de oficina de auto-ajuda em self-service. Durante doze meses, o Penitente tem que passar cada período de 30 dias lendo unicamente obras de um mesmo autor. Na quantidade que quiser, mas sem misturar com nenhum outro.

O objetivo é fazer uma faxina linguística e mental para se reaproximar da literatura (prosa e poesia) de outra direção.

Por exemplo: faria bem a um leitor culto, interessado em expandir seus horizontes, dedicar seu mês de janeiro exclusivamente à leitura de Gertrude Stein. Digo isso porque não li quase nada dela. Stein foi quem disse famosamente que “uma rosa é uma rosa é uma rosa”, e ela costuma escavacar suas coisas perto do “grau zero da linguagem”. Por isso mesmo, fiquei com medo de levar uma varredura desse nível em meu sistema operacional. Mas acho que os textos enganosamente simples e enganosamente repetitivos dela são um bom detergente mental. Bancando uma aposta eu encarava!

Fevereiro seria dedicado a outro que escreve quase assim: Samuel Beckett, cujos textos em prosa são um monólogo monótono e monocórdio monopolizando monomanias monoteístas. Beckett foi amigo de James Joyce, mas seus escritos são mais próximos da prosa de Stein do que da do outro irlandês. Os seus Textos Para Nada e os vários romances são exemplos dessa linguagem. Para alguns leitores, ele “taxia mas não decola”, ou seja, cria situações fascinantes mas não conta uma história. Injustiça. Beckett dá até umas decoladas. Sua obra mais famosa encerraria fevereiro: Esperando Godot, talvez a obra mais legível, mais lúdica e mais esperançosa de Beckett.

Depois desse spa, o leitor pode se recuperar aos poucos lendo ao longo de março a obra de Paulo Leminski. Uma semana para seus “hai-quases” e poeminhas-piada. Depois os artigos literários, depois os poemas mais longos de Polonaises. (Lembrem-se: todo poema de verdade precisa ser lido três vezes – uma de manhã, outra de tarde e outra de noite. Menos que isto não vale.) Em seguida, pode ler as biografias, a de Cruz e Sousa e principalmente a de Bashô, primoroso raio-X poético. E encerrar tudo com o Catatau, uma festa-de-Babette para quem acabou de sair dum spa.

Abril pode prolongar esse estado de euforia verbal com a leitura de Guimarães Rosa. Ler Grande Sertão: Veredas em um mês seria como ver a floresta amazônica brotar diante dos próprios olhos em stop-motion. Esqueçam a pirâmide. Sugiro ler os obeliscos isolados que são os demais livros. Os contos de Tutaméia, por exemplo, têm todos uma angulosidade verbal muito semelhante, e se enfraquecem mutuamente quando lidos em série. Melhor alterná-los com as noveletas de Sagarana e Corpo de Baile e com os contos longos de Primeiras Estórias.

Maio seria dedicado a João Cabral de Melo Neto, que depois de Rosa é uma boa maneira de ir reduzindo a marcha, tirando o pé. Rosa é barroco, exuberante, mesmo quando compacta histórias inteiras em duas páginas. João Cabral tem uma linguagem de aspecto severo e monástico, mas ele mostra a riqueza que a dicção severa pode ter. O mês começaria com os poemas cênicos (Morte e Vida Severina, o Auto do Padre), depois os poemas mais longos e narrativos onde a linguagem é mais amiga do usuário, como O Cão Sem Plumas, percorreria outros títulos a gosto do freguês, mas acabaria na Educação pela Pedra.

Junho daria ao Penitente leitor a chance de ler George Perec, por mero efeito de continuidade. Falei que a poesia de Cabral é severa; as teorias da OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), grupo de que Perec fez parte, chegam a ser masoquistas, de tantas condições que impõem à prosa. Em obras como W, ou a memória de infância, Um homem que dorme, As coisas e A Vida modo de usar, um esqueleto rígido de estruturas verbais dignas de Cabral é recoberto com fabulação da pop-filosofia perequiana, uma prosa tão rigorosa quanto a poesia do pernambucano, mas saturada de faits-divers, memorabilia, cultura oral, alusões livrescas, peripécias pulp-fiction.

Julho seria o momento de ler Garcia Márquez, onde o arcabouço estrutural é menos explícito, mas existe a mesma escritura de ferro regendo os enredos. A linguagem, a estilística, predominou no primeiro semestre; no segundo, o leitor irá mergulhando nos autores onde predomina a maneira de tratar a matéria narrada. Julho pode começar com Cem anos de solidão ou O Outono do Patriarca, ou outro romance preferido do leitor. Depois, ele pode visitar os contos, e encerrar com o livro de memórias Viver para contar. Quando ele então perceberá que seus conceitos de ficção e memória são agora indistinguíveis um do outro.

Este último critério pode aliás ser posto à prova em agosto, quando Márquez for substituído por Philip K. Dick.  Justapor Dick a Márquez ajuda a diluir as fronteiras de gêneros como ficção científica e realismo mágico. A obra de PKD é vasta, mas um mês em que alguém lesse pela primeira vez na vida Ubik, Do Androids Dream..., O Homem do Castelo Alto, Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, Time Out of Joint, A Maze of Death e mais algum outro seria sem dúvida um mês inesquecível. E o leitor perceberia que seus conceitos do que é real e do que é fantástico já terão sofrido uma atualização para a versão 2.0.

Setembro poderia ser dedicado à leitura de Fernando Pessoa, mas, mantendo a fidelidade ao espírito da dieta, os heterônimos teriam que ser lidos em sequência, sem misturar, começando pelo próprio Fernando de Mensagem, passando em seguida para Ricardo Reis, Alberto Caeiro, o Bernardo Soares do crepuscular Livro do Desassossego e concluindo com a explosão futurista (em todos os sentidos) de Álvaro de Campos. O objetivo disto é fazer com que os conceitos do leitor sobre o que é o “Eu” sofram uma atualização para o século 21.

Em outubro, ainda eletrificado pelo verso voltaico e galvânico de Campos, o leitor pode por fim entender melhor a obra de Augusto dos Anjos, e desta vez, dada a complexidade inédita do material, pode-se omitir o conjunto de sua obra poética, concentrando-se o leitor apenas no Eu e Outras Poesias na seleção canônica de Órris Soares. Isto ajudará o leitor na árdua tarefa de atualizar seus conceitos sobre cosmopolitismo e provincianismo, num momento crucial (agora) em que o primeiro está ameaçado de desaparecer pela proliferação exponencial de exemplares do segundo em suas versões metropolitanas.

Pensei muito no mês de novembro, e acho que o leitor merece uma “limpa”, como a gente diz na Paraíba: uma faxina geral nas tralhas do consciente e da memória verbal. Sabe aquelas problemas de matemática em que a página parece uma partitura sinfônica, e a gente sai cortando, simplificando, até encontrar um equivalente límpido e minimalista para aquilo tudo? Ítalo Calvino é uma resposta, começando pelo seu indispensável Seis Propostas Para o Novo Milênio, percorrendo com gosto suas fabulações da trilogia do Visconde/Barão/Cavaleiro, a aventura tarológica do Castelo dos Destinos Cruzados, o límpido labirinto do Se Um Viajante Numa Noite de Inverno, e culminando com as Fábulas Italianas, onde o autor desce às fontes de si mesmo.

Dezembro é sempre um mês movimentado. Festas, trabalho, férias, viagens, família... Não há tempo para ler demais, e os ciclos de morte e ressurreição do planeta nos induzem à contemplação meditativa. Terminemos o ano, pois, relendo a obra de Emily Dickinson, uma poesia que nos seus volteios acaba tocando várias das literaturas discutidas nos meses anteriores. Depois desses autores tão biografados, televisados, premiados, fotografados, autores que escreviam sob as luzes da ribalta, por assim dizer, vamos ler uma poetisa do lusco-fusco, do intimismo. Uma poética um tanto clássica e espartilhada, de um lado, e muito anticonvencional e idiossincrática por outro. E uma poetisa que, se estendesse a mão, tocaria a de Gertrude Stein fechando o ciclo.

Nota Final: Sim, sei que os autores preferidos de vocês ficaram de fora, mas vejam que muitíssimos deles substituiriam o titular de um dos meses acima sem que a sequência educacional fosse rompida. Façam suas próprias listas. A única obrigação é explicar “por quê”.








sábado, 10 de setembro de 2016

4157) O mistério do 11 de setembro (10.9.2016)




(foto: Richard Drew / Associated Press)

Quando aconteceu o atentado às Torres Gêmeas, eu fiquei pregado à TV durante um dia inteiro, porque justamente na véspera um pequeno problema de hardware me deixara sem acesso à Internet. (Fiquei irritado porque 11 de setembro era a data marcada para o lançamento do álbum Love and Theft de Bob Dylan, e eu queria ver os clips de lançamento.)

Na época eu fazia freelancer para a Editora Guanabara, que estava para lançar um Atlas Histórico ligado à Enciclopédia Delta; e minha editora Liana Pérola Schipper me encomendou uma matéria longa, especial, sobre o assunto. Nos dias seguintes, resolvido o problema de conexão, eu praticamente não fiz outra coisa senão ler e capturar textos e imagens a respeito da catástrofe do WTC.

(Digressão: acho que isto é uma resposta neurótica comum, em mim pelo menos, diante de um fato esmagador e terrível. O processo de juntar e organizar informações sobre o fato de certa forma nos protege do perigo de pensar sobre ele. É uma fase intensa mas passageira.)

Quando o indivíduo é leitor de romance policial e de ficção científica, não há como não ser um cultor, em certa medida, das Teorias da Conspiração.

A literatura policial nos ensina que não há um limite visível para a cobiça humana por dinheiro, nem para as maldades que seres humanos são capazes de fazer para ter mais Poder. A ficção científica expande esse conceito para o Universo como um todo.

Li na época uma entrevista com um dirigente da CIA em que, depois de explicar mais ou menos (ainda se estava em plena investigação) como os terroristas tinham sido treinados para usar os aviões e tudo o mais, ele disse:

“O que me deixa mais acabrunhado é pensar que nós (a CIA) não teríamos ousado pensar num plano como este, e, se pensássemos, não teríamos acreditado que era possível.”

Modéstia do rapaz. Eu atribuo à CIA (e se não foi a CIA foi alguma outra agência da “sopa de letrinhas” de que falava John Michael Hayes, o roteirista de Intriga Internacional) um plano ainda mais mirabolante do que o de meia dúzia de jihadistas sequestrando o cockpit de três ou quatro aviões.  (Digo 3 ou 4 porque até hoje não vi o famigerado “avião” que teria sido jogado no Pentágono.)

Este link (http://www.europhysicsnews.org/articles/epn/pdf/2016/04/epn2016474p21.pdf) conduz a uma matéria do saite Europhysics News sobre o atentado, intitulada: “15 Years Later: On The Physics Of High-Rise Buildings Collapses”, de Steven Jones, Robert Korol, Anthony Szamboti e Ted Walter.

O cerne da questão é: como se explica que as duas Torres, que tinham estrutura de metal, tenham desmoronado daquela forma, se todos os testes provam que a temperatura daquele fogo seria insuficiente para fazer ceder o metal? E mais ainda: como se explica que o WC7, o terceiro prédio a desmoronar naquele dia, tenha aluído praticamente todo ao mesmo tempo, horas depois do choque dos aviões?

Já escrevi a respeito, aqui:



Em matéria de história mal contada, o World Trade Center nunca vai deixar de assombrar nossas noites mal dormidas. Mal contada – não por escassez de explicações, mas pelo excesso. A melhor maneira de esconder uma informação não é proibindo que seja divulgada, é disfarçando-a no meio de uma selva de informações irrelevantes e parecidas. (Aprendi isto com Agatha Christie.)

Poucos acontecimentos do novo século podem se comparar ao impacto da queda das Torres. Mesmo a Guerra do Iraque e a do Afeganistão, que se seguiram, foram guerras convencionais, iguais a qualquer outra guerra.  O atentado do 11 de setembro teve acima de tudo o impacto do ineditismo, do nunca-acontecido, do fato que estourou-a-costura da nossa imaginação.

Talvez um dia seja confirmado que a queda das Torres não se deveu à ação de terroristas islâmicos, e foi na verdade uma gigantesca queima-de-arquivo de empresas privadas e do Governo que estavam metidas em enrascadas mil, além de uma excelente oportunidade de sofrer um ataque estrangeiro que obriga a um revide imediato, como em Pearl Harbor.

Há muitas teorias de que na II Guerra os EUA precisavam de um pretexto para entrar numa guerra que a população via com distanciamento, e adotaram uma atitude passiva-agressiva, pedindo ao Japão: “Me dê motivo”.  Os japoneses, em sua euforia expansionista, caíram na armadilha e bombardearam o porto.

Se confirmarem um dia que os próprios EUA derrubaram as Torres, este fato será tão relevante e tão impactante quanto a queda das Torres, quinze anos atrás.

E será uma revelação crucial sobre a natureza de nossa civilização: uma civilização em que qualquer história gigantescamente absurda pode ser impingida como verdade à população, durante uma quantidade de tempo finita (mas suficiente para os objetivos estratégicos imediatos).






quarta-feira, 7 de setembro de 2016

4156) "Liturgia do Fim"(7.9.2016)




Não existe “literatura nordestina” se por este rótulo entendermos um corpo literário homogêneo, ou pelo menos composto apenas de obras parecidas umas com as outras. Como se todos nós tivéssemos que pedir uma bênção obrigatória à seca, ao cangaço, ao sertão, à cantoria de viola, em cada livro publicado. Tivéssemos que usar um algum crachá verbal de nordestino, para que os postos de acesso nos identifiquem sem fazer muito esforço. (“Como assim, ficção científica? Tem ficção científica no Nordeste? O foguete é feito de rapadura?”)

Vai daí que eu vejo com orgulho e alívio histórias feitas por nordestinos e que fogem a esse samba-de-uma-nota-só, que já comparei com os antigos e célebres desfiles de “misses em trajes típicos”. Se deixar, a literatura (a pintura, o rock, qualquer coisa) vira justamente isso. Um desfile de gente esteticamente idealizada trajando clichês de fácil leitura.

O romance Liturgia do Fim (São Paulo, Tordesilhas, 2016) de Marília Arnaud se passa como numa elipse com dois focos. Um deles, o mais pesado e mais atrator, é a fazenda de Perdição, num sertão remoto do Brasil. O outro é a capital, descrita porém jamais nomeada. É nordestino? É, apenas porque não precisa ser.

Marília escolhe uma chave narrativa já escolhida, também com sucesso, por José Nêumanne em O Silêncio do Delator e Débora Ferraz em Enquanto Deus Não Está Olhando, ambos já comentados aqui no blog. A chave narrativa é limar os nomes próprios: de cidades, de logradouros, de pontos de referência, de bares, de bairros, de ruas.

O romance acontece num meio geográfico e físico onde nada parece ter nome, mas que o autor(a) visualiza com precisão. Omitindo, sempre que pode, os nomes próprios, nem por isso ele faz a história mergulhar num limbo de indiferença cenográfica. O leitor sente a cidade sem precisar usar a citação fácil do simples nome. Nestes dois livros que citei, eu só notei a ausência dos nomes próprios lá pela página 50 ou 100, porque julgava estar vendo tudo. Claro. Tudo acontecia em ambientes que me eram familiares.

Era aquela proposta de Flaubert para Maupassant: “Você precisa ser capaz de descrever o físico e a psicologia de Fulano de Tal, garçon do bar que a gente frequenta, de tal modo que, apenas descrevendo-o, sem nomeá-lo, qualquer um da nossa turma possa exclamar de repente: Oxente, isso aí é Fulano!”

Perdição; é o nome da localização imaginária da tragédia meio grega de Marília Arnaud, um nome mais do que verossímil num Estado que tem cidades chamadas Solidão, Desterro, Misericórdia. A capital, onde o narrador vai estudar e construir família depois que vem do sertão, não recebe nome, mas é vista assim:

“De uma balaustrada na parte alta da cidade avistavam-se um rio e um porto desguarnecido de barcos, igrejas com seus cruzeiros quinhentistas ornados de gárgulas, o pátio interno de um mosteiro com seu jardim de fontes e bancos de pedra, uma lagoa cingida por palmeiras-imperiais que varriam um céu de nenhuma nuvem. Em algum lugar o mar me aguardava.”

Ninguém que conheça a velha Parahyba pode confundir isto com qualquer outra coisa. E quem não a conhece, não importa: é capaz de compor um cenário coerente com essas instruções verbais.

E é desse jeito que o que há de nordestino brota, com descrições da natureza feitas com a riquezas de nomes e espécies e tipos “da fauna e da flora”.  A profusão de imagens neste livro lembra alguns livros de Osman Lins, um prosador de registro elevado e com uma atenção barroca à Natureza; ou aquelas páginas catalográficas de Guimarães Rosa em Corpo de Baile.

Os nomes das coisas têm uma poesia em si. Uma página aberta rigorosamente ao acaso:

“Por todos os lados se viam mangueiras, bananeiras, canafístulas, jaqueiras, goiabeiras, angicos, oliveiras, paus-d’alhos, umbuzeiros, umburanas, limoeiros, laranjeiras, abacateiros, um amontoado de folhagem ensopada de luz, um emaranhado de ramos, brotos e galhos, um esbanjamento de copas floridas, de inflorescências em cachos, espigas, umbelas, botões em ânsia de desabrocho, e nas encostas ondulavam ao vento as esponjinhas das caliandras, os talos das damas-da noite e dos cipós-de-leite, as pétalas das vassourinhas, chananas e velames, um delicado pasto de néctar e pólen à espera dos afagos das abelhas”.

São os trechos férteis do sertão, ou de qualquer lonjura remota da Paraíba.

Inácio, o narrador, afirma ter levado dez horas de viagem de Perdição até a capital, num ônibus pinga-pinga. E quando uma Natureza de nomes tão familiares é literariamente compactada e posta em movimento, com o passar da história a gente percebe o quanto tudo isso existe de fato, num lugar onde alguns só imaginam haver o ermo e a desolação.

Essa natureza áspera mas exuberante é trespassada pela tragédia humana das pessoas. Neste aspecto, temos por um lado a crônica terrível da tragédia do patriarcado rústico, situação que evoca Raduan Nassar, numa reiteração de fatalidades.

O peso moral do cristianismo, somado a um certo puritanismo que não consegue conviver com a exceção à regra. Um puritanismo tiranizado pelo homem e administrado pela mulher.

Religião é uma coisa que exerce um peso terrível sobre quem acredita nela. E acreditar nela sem ser capaz de ter sentimentos bons, como ocorre com tantos, deve ser pior ainda. Ou então quem acredita duvidando, porque nenhuma resposta encerra a questão, nenhuma promessa é totalmente cumprida.

Não exagero vendo certos traços da tragédia pessoal de Augusto dos Anjos na de Inácio, já que ele cita o poeta mais de uma vez. Sua história é uma reiteração do drama inicial de “A Árvore da Serra”: “Não mate a árvore, pai, para que eu viva.”  Vejo rastros do Eu também na letra inicial dos nomes de um grupo crucial de personagens, mas deve ser viagem minha.

Se o romance de Marília Arnaud pertence a algum gênero, não é um gênero definido por superficialidades paisagísticas, mas por um conflito muito mais primal e mais remoto. São, por exemplo, as histórias sobre O Confronto Final Com o Pai Terrível.  Certo tipo de pai parece tornar isso inevitável: o velho Karamázov, o velho Lear, o velho Kafka.

O romance tem algo de façanha ao conseguir sustentar um discurso tenso, poético, elevado, do começo ao fim, sem abrir mão do regional, mas um regional amplo, com muitas camadas de vocabulário e de elocução. Seu arcabouço é uma verbalização entrelaçada com esmero. A fazenda como Éden violentado, a cidade como cárcere e rotina, tudo isso se entretece numa narrativa ao estilo do reino do vai-e-volta, saltando para o presente, o passado remoto, o passado esquecido.

A tragédia que impulsionou a história (e para a qual a história se reencaminha o tempo inteiro, acompanhando o percurso de volta do narrador) é mais velha do que a Bíblia, não é nordestina nem outra coisa. É um atrator convulso, uma agonia que não dorme, e que faz um personagem como Inácio desperdiçar toda a vida que a cidade lhe oferece, porque restou aquele nó doloroso no passado que não permite que ele se concentre em coisa nenhuma.








segunda-feira, 5 de setembro de 2016

4155) O som ao redor do edifício (5.9.2016)




É inevitável comparar este filme, Aquarius (em cartaz pelo Brasil) com o anterior de Kleber Mendonça, O Som ao Redor. Existe continuidade temática, dramática, de linguagem, de muita coisa, entre os dois filmes.

São dois flashes da luta pelo território urbano de uma grande cidade, onde os senhores feudais de outros tempos não mandam mais em ninguém. Como sempre, só manda quem consegue se impor. O conflito imobiliário em nossas cidades não é menor que o conflito fundiário no campo.

O bairro é outro, mas a vizinhança é do mesmo tipo. O rapaz de moto que vende pó atrás do quiosque perto do edifício Aquarius lembra o neto de W. J. Solha, no outro filme, um playboy mimado que praticava pequenos furtos. Irandhir Santos fez um segurança e agora faz um salvavidas.

Há um paralelismo nessa presença discreta, mas contínua, de uma rede de pessoas secundárias, de vizinhanças, de compadrio, troca de favores, pequenos serviços, lealdades e amizades momentâneas. Aquele casulo de compromissos e de expectativas que mantém um morador em conexão com um lugar.

No Som..., um cara mal tratado por uma madame risca-lhe o carro com um prego quando ela se prepara para ir embora; em Aquarius, dois caras que ela reconhecia e tratava pelo nome surgem do nada e por lealdade colocam em sua mão uma pista.

A promiscuidade entre as classes sociais em Boa Viagem deve ser algo inimaginável para a família de Lord Grantham em Downton Abbey, mas certas leis da existência estão sempre valendo. “Dize-me quem te serve ou a quem serves, e eu te direi quem és.”

Todo mundo tem um papel social muito rígido para desempenhar. “You gotta serve somebody.” Clara e sua empregada Ladjane levam essa relação com leveza. Em certos momentos são apenas duas mulheres que se aproximam uma da outra, que precisam da presença da outra para encarar situações.

Você e um empregado (ou um amigo) podem ter quatrocentos anos de casa grande e de senzala, respectivamente, e saber que isso é diluível em tempo. O tempo até agora foi pouco. Patrões e criados nesses filmes de Kleber se confrontam, se relacionam, em tons diferentes, mas de modo sempre plausível. E todos se assemelham na busca constante de segurança territorial: o meu canto, o meu lugarzinho, o meu cafofo, o meu QG, o meu ponto-castañeda, o meu sanctum, o zero cartesiano do meu GPS.

Em O Som..., há uma cena arrepiante que ocorre à noite. Vemos do alto, por uma janela, um pátio interno, plantas, um muro. De repente um vulto humano, escuro, surge na sombra em cima do muro. Pula para dentro e corre a se esconder fora do ângulo de visão. Logo surge um segundo, diferente, mas fazendo a mesma coisa. E um terceiro, e um quarto, e assim surge do nada uma invasão silenciosa de vultos ariscos como ninjas.

Lembra o famoso episódio de Conan Doyle sobre o castelo de Villefranche, que hospeda alguns cavaleiros afamados e é sorrateiramente invadido à noite por camponeses amotinados e famintos (A Companhia Branca, 1891).

É o medo atávico de ver vultos obscuros invadindo nosso santuário na calada da noite. Os zumbis. Os vampiros. Os sem-teto. Os sem-escolha. Os sem-alma. Pode ser um arrastão noturno rebatando tudo, na mão-grande. Pode ser uma carta de intimação de uma construtora, com palavras como “nossa oferta final” ou algo que faça o mesmo efeito.

Visto por esse ângulo da expulsão do paraíso, o filme de Kleber é o contrário da passividade de "Casa Tomada” (1946), o conto famoso de Julio Cortázar, onde os remanescentes da família aceitam que a casa lhes está sendo tomada aos poucos, aposento por aposento, andar por andar, até que eles próprios vão embora e trancam por fora a porta da frente. Sabem, e não comentam, que o mundo não lhes pertence mais. Como o próprio Cortázar na época, admitindo que a Argentina não era mais sua e indo viver na França.

Mas o movimento de tomada do espaço urbano acontece sempre em mão dupla.

O filme de Kleber Mendonça capta o espírito do ano do movimento “Ocupa Estelita” no Recife e das ocupações de escolas secundaristas em São Paulo. É um choque historicamente inevitável diante da brutalidade das ocupações “gentrificadoras” do espaço urbano.

O coronel-patriarca-bíblico interpretado por W. J. Solha em O Som ao Redor pertence a uma linhagem de nobres que podem ser canavieiros, do gado, do algodão. (Hoje devem ser do mercado financeiro, fazendeiros do ar, que plantam zeros para colher percentagens.)

Foi talvez pensando na segurança financeira do futuro Coronel Francisco que em tempos remotos algum antepassado seu irrompeu, impudente e conquistador, na topografia urbana do Recife, comprando o que seriam depois quarteirões inteiros, com o destemor de quem nada à noite num mar assombrado por tubarões.

Coronéis como ele conquistaram suas terras sabe-se lá por que meios, mas certamente com muita ambição, e com bastante coragem. O coronelzão nunca teve medo de enfrentar o futuro. Os feitos dos coronéis e os malfeitos das construtoras estão guardados na poeira de um arquivo. E um belo dia um deles é pêgo como o flanco descoberto e tem prestar contas ao passado. Esse passado (dizia William Faulkner) que ainda não parou de passar.





domingo, 4 de setembro de 2016

4154) "Aquarius", o filme (4.9.2016)




(ilustração: Toinho Castro)


Um dos temas que correm ao longo do filme de Kleber Mendonça Filho é um confronto entre modo-de-ver analógico e modo-de-ver digital, a partir da entrevista inicial de Clara a duas jornalistas. Clara se dá bem com todos. Passa músicas em pendraive, coleciona vinis, publicou entre outras obras um livro sobre Villa-Lobos. Ela mostra a raridade de um vinil, que vem com um recorte de jornal dentro, uma matéria sobre John Lennon.

Tudo pode ser analógico ou digital, e por enquanto é perda de tempo inventar pretextos para abrir mão de um dos dois. Não precisa.

Você precisa de uma informação exata mas obscura. É 2016, e você vasculha um arquivo kafkeano de pastas de plástico e caixas de papelão. Ali deve ter uma nuvem de poeira e ácaros que se for espalhada dá pra cobrir o bairro. Mas o analógico tem a sobrevida do material em que é registrado, e está tudo lá. A informação é encontrada.

E noutra situação você precisa da leveza e instantaneidade do equipamento digital para filmar de improviso, em condições antagonísticas, para registrar o espanto, o choque, a fúria balbuciante de quem pisou numa armadilha pontiaguda da própria esperteza. Celular apontado ao vivo, quem sabe transmitindo direto não só para uma audiência, mas deixando uma cópia de tudo. Isso, só a imagem digital pode.

Somos (eu sou da geração de Clara) pessoas analógicas num mundo cada vez mais digital, mas não é isso que rejeitamos nesse mundo. Rejeitamos, quando é o caso, uma certa falta-de-passado que esse mundo tem, porque às vezes temos a impressão de que a foto digital, o selfie, o instagram, existe apenas para ser visto por alguns segundos, “curtido”, e esquecido para sempre.

O instante, o momento, a faísca do presente, tudo isto é sagrado, e aí estão o haikai, o repente e o I-Ching. Mas veja-se que todas essas girândolas em honra do presente foram feitos com a pólvora de muitas gerações, de tradições inteiras. Porque o instante só vale se houver, no instante em que o vemos, um passado todo, inteiro como uma pedra.

A família de Clara gosta de curtir imagens, de comentar fotos antigas, de puxar fios de gente enganchados na memória. A imagem puxando a história. Uma imagem parada põe uma história em movimento. Histórias da sua vida e outras. Momentos de reencontro e armistício entre as gerações. Pessoas que se gostam, mas que divergem, assoprando as brasas do afeto. Clara nem é um modelo de mãe nem uma desorientada. Ganhou um certo desdém pela vagarosidade mental alheia, mas deve ter sido mais pelas barras que passou do que por qualquer esnobismo de origem.

Clara vive bem, ali, e vive de rendas. Afirma ter outros imóveis, mas aquele é o lugar onde ela gosta de viver. A família, claro, é sempre a última que leva isso a sério. Qualquer grande agente imobiliário pode contar a meia-voz histórias de divisões de espólio que deixariam Agatha Christe ocupada por uns cem anos.

Clara não quer ser ameaçada, nem incomodada por surubas ao som de um pancadão. Ela se surpreende a saltar da cama no meio da noite e correr para trancar por dentro a porta da frente. Clara já sabe que cada fase da vida é uma guerra diferente, e o choque que a atinge em pleno peito é uma bomba de efeito moral. Ninguém quer destruí-la, apenas removê-la.  

O mundo onde eu mandava está sumindo pouco a pouco, pensa cada um deles ou delas. Mas dali ninguém os tira. E mesmo que a gente não veja a intelectual de Boa Viagem e os nobres de Downton Abbey com a hipotética simpatia com que vemos o sem-teto Adoniran Barbosa e seus comparsas, Mato Grosso e o Joca, não podemos negar que todos têm motivos mais do que concretos para fincar o pé naquele canto. Não faríamos o mesmo?!

Uma série formalmente conservadora e tradicional como Downton Abbey nem por isso deixa de mostrar com certo distanciamento e humor os comportamentos absurdos de nobres e de criados no tempo em que se vivia em conjunto a fantasia que podemos chamar de “a Persuasão Aristocrática”, a noção de que os nobres eram seres superiores e deviam ser tratados como pessoas infinitamente preciosas pois cada minuto de suas vidas era indescritivelmente importante.

O nobre verdadeiro perde o castelo mas não perde a nobreza. É um patrimônio histórico de grande beleza, mas por alguma razão está se esboroando.

O que une mesmo os personagens do filme de Kleber e da série de Julian Fellowes nem é a posse de uma edificação de pedras e argamassa, é a continuidade afetiva de um passado. O apartamento de Clara é uma reprodução em 3-D de cada momento vivido ali, com os parentes mais velhos que já se foram, a história dos amores, das trepadas, dos dramas, dos perigos, das canções, dos filhos criados, das mortes e das sobrevivências. Deixar aquela casa será como deixar aquele corpo. Ela sabe que um dia vai acontecer.

(continua)








sábado, 3 de setembro de 2016

4153) Daqui não saio, daqui ninguém me tira (3.9.2016)




Gosto de inventar gêneros cinematográficos novos. Você pega uma dúzia de filmes e cria uma frase que define o que eles têm em comum.

Quando chamamos um filme ou romance policial de whodunit, esse nome é uma frase: “Quem foi que fez [isto]?”. Não importa quem sejam os personagens, onde se passa a história, em que época. Se houver um crime e alguém empenhado em descobrir quem foi seu autor, é um whodunit.

A gente poderia, por exemplo, inventar um gênero chamado Escapei do Fim do Mundo, um gênero abrangente e bom de drama, que poderia incluir tanto E o Vento Levou quanto Moby Dick, dando-se ao termo “fim do mundo” uma certa amplitude metafórica. Uma fazenda, um navio, valem por mundo para alguém.

Ou um apartamento de frente para o mar, quase térreo, num prédio pequeno, sem elevador, anacronicamente encravado entre espigões futuristas com nome de artistas ou nome de santos. Daqui Não Saio, Daqui Ninguém Me Tira poderia ser um dos gêneros a que pertence o filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius, rodado no Recife, que ganhou prêmios importantes e acendeu polêmicas.

A ex-professora Clara (Sonia Braga) é pressionada por todos os lados, até pela família, a vender o último apartamento do prédio, que está sendo adquirido aos poucos por uma grande construtora. Ela não quer vender, não quer sair.

Por um flashback inicial vemos que passou por ali a história dela e de mais de uma geração de pessoas. Passado é passado, todo ele tem o mesmo peso. O Passado pode ser um móvel véi encostado numa parede igual a qualquer outra. Só a gente sabe o tesouro que existe ali.

Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Não lembro se a frase é pronunciada em Aquarius. Eu vejo nessa expressão menos um trecho de marcha de carnaval do-tempo-de-Adão-cadete do que uma frase-feita, de autor conhecido, mas incorporada ao linguajar coloquial do brasileiro. Tal como “eu era feliz e não sabia”.

Engraçado.  Aquarius e Downton Abbey (série britânica, na Netflix) são os dois primeiros exemplos que consigo pensar para o gênero do Daqui Não Saio...  Na série, a família Crawley, liderada pelo cavalheiríssimo Lord Grantham, passa por catástrofes mundiais sucessivas, e vê-se o tempo todo ameaçada de ter que desmembrar suas propriedades e perder sua Casa Grande. Trata-se de um espantoso castelo, que pertencia, na época retratada, ao Lord Carnavon que financiou a descoberta da tumba de Tutankâmon. Qualquer um de nós terçaria armas contra quem quisesse nos arrancar de uma vivenda assim. Que é nossa por direito adquirido.

O terceiro exemplo que me ocorre eu não vi no cinema, vi no show Semba de Antonio Nóbrega, no Sesc-Pinheiros em São Paulo, onde ele repassa um belo dum repertório sambístico. E ele canta o hino do Daqui Não Saio Daqui Ninguém Me Tira: “Se o senhor não tá lembrado, dá licença de eu contar: aqui onde agora está esse edifício alto era umas casa véia, um palacete assobradado...” E o enunciado do gênero, por mais heroico que seja, não cancela o fato de que as pessoas acabam saindo mesmo, acabam sendo tiradas mesmo, como foram em Pinheirinho (SP), na zona portuária carioca, no mundo afora. 

Os posseiros urbanos de Adoniran Barbosa vivem na mesma expectativa de Clara, no seu idílico Pina, porque quando menos se espera chegam os homens com as ferramentas “e o dono mandou derrubar’. Há um repertório de variadas pressões para tirar Clara de casa, umas desagradáveis, outras bizarras, outras repugnantes. E Clara finca pé e diz: agora é que eu não saio mesmo.

O espaço urbano é um campo de batalha a ser conquistado, defendido. Hoje a batalha é financeira, pós-geográfica, como dizia o cyberpunk Gibson. O filme aponta um conflito concentrado, minúsculo: uma pessoa irredutível diante de uma meta-transação onde muita gente tem algo significativo pra ganhar. E só não ganhou ainda porque a transação empacou, não avança. Por causa dela.  E as pessoas se irritam. Quem é ela para desdenhar uma coisa que a maioria deles não hesitaria diante de nada para obter?

(continua)