sábado, 24 de outubro de 2015

3954) Lanterna Mágica (25.10.2014)






Em meados dos anos 1970 eu estudava no Campus II da UFPB (atual UFCG) e de vez em quando apareciam uns trabalhinhos pra ajudar os estudantes a descolar uma nota. Não era muita coisa, mas para quem vivia de ser crítico de cinema qualquer “pingado” de fora dobrava a renda do mês. 

Fomos para uma cidade do sertão, fazer uma pesquisa. A equipe, dirigida por Bobó, contava comigo e mais o saudoso Geraldo Bode Rouco, e Hermano Babalu, além do motorista da kombi, Erivaldo. Nosso trabalho diário, das 8 da manhã às 6 da tarde, consistia em preencher uma cota diária de entrevistas com moradores locais. A lista tinha dezenas de nomes. Uma entrevista normal tomava de 40 a 50 minutos, prancheta em punho. De noite a gente jantava na pensão e estava livre.

Na primeira noite que passamos me informaram onde era o cinema: perto da praça tal. Naquele tempo eu queria imitar Jean-Pierre Léaud (não só eu, aliás) e me obrigava a ver um filme em pelo menos um cinema de cada cidade que eu fosse. E de tarde eu tinha visto passando no centro da cidade uma camionete de altofalante chamando todos para o cinema às oito da noite.

Cheguei meia hora antes. O local era uma espécie de garagem retangular, vazia, a parede do fundo pintada de branco. Nem poltronas, nem cortinas, nem tela, nem música de orquestra, nem bombonière, nem cartazes e fotos nas paredes. 

Quinze minutos depois parou uma camionete, uns caras armaram um praticável, em cima dele uma bancada onde pousaram um projetor IEC 16mm e de lá puxaram um fio comprido. 

Como por acordo coreográfico, começaram a chegar pessoas. Chegavam e iam entrando. Um trazia um tamborete, outro uma cadeira de plástico de bar, outro uma cadeira de palhinha, um casal trazia a quatro mãos uma poltrona de dois lugares, e uma velhinha caminhava nobre à frente de três garotos magros que portavam nos ombros uma cadeira de balanço.

A luz foi apagada e vimos trinta minutos de Actualités Françaises, o jornal cinematográfico (com legendas em português), mostrando De Gaulle descerrando fitas inaugurais, etc. Finda a sessão, a platéia decampou para casa levando tudo. 

Conversei com o cara. Ele tinha sido porteiro do cinema local. O cinema fechou. O que tinha nos armários foi pro lixo. Ele salvou um caixote cheio de latas de película, e tempos depois quando viu aquela garagem sem uso resolveu alugar. Estava juntando dinheiro para comprar seu primeiro longa de faroeste. Quando juntasse, seriam sete horas de ônibus até Campina Grande, para comprar das mãos do velho Expedito um Trinity ou Sartana qualquer, sonhava ele, “e com isso eu vou ter em cinco anos grana suficiente pra montar um cinema de verdade”.





sexta-feira, 23 de outubro de 2015

3953) A Vingança do Mestiço (24.10.2015)




Me encomendaram uma sinopse de filme de aventuras. Pensei em Trigger Montanares. Trigger Montanares é pistoleiro de aluguel. É mestiço e tem rompantes de sádico, porque todo mestiço é vingativo. “O conflito de duas raças antagônicas correndo dia e noite no seu sangue não pôde deixar de produzir-lhe aquela nevrose íntima que em alguns casos se externa em mera arruaça mas em outros se refina em crueldade.” O mestiço é mentiroso e dissimulado, porque pertencendo a dois mundos ele mente a ambos e na verdade não pertence a nenhum. Ninguém precisa dele, nenhum grupo o reivindica para si.

O parágrafo acima é um arremedo das justificativas dramatúrgicas para composição de personagens. Todo personagem é movido a referências, movido a citações, a indicações psicológicas, sociais, afetivas, místicas, o escambau. Só que referências, quando muito usadas, viram fórmula-fácil do lado de quem usa e clichê-redundante do lado de quem assiste ou lê. Geralmente encontramos, em histórias de ficção de qualquer gênero, indicações que nos dão uma primeira idéia básica do personagem e colorem os seus atos subsequentes. A grande maioria só faz sentido nas fórmulas a que pertencem (folhetim, novelão, etc.). Mestiços são vingativos, bastardos são cruéis, herdeiros são abnegados, cortesãs são piedosas, jovens das melhores famílias revelam-se capazes de ações escabrosas, desordeiros de rua descobrem-se capazes de um ato corajoso e final que os redime. Todo perfil humano é plausível. O verdadeiro teste é o que o autor vai obrigar esse perfil a fazer, e é aí que o escritor às vezes desmorona.

Um sentido epidérmico de realismo diz que representação realista é a que reproduz o que os olhos veem. Eu diria que existe um realismo funcional ou relacional, mais profundo e mais ancestral do que o dos nossos olhos. Quanto lemos Pato Donald não ligamos que ele seja um pato marinheiro nu da cintura para baixo conversando com um rato que dirige um automóvel. As relações entre eles, as funções cumpridas por eles são humanas, são reais; seu realismo é todo humano.

Jonathan Lethem pode imaginar um mundo futuro de policial “noir” onde os garçons dos bares são cangurus falantes. Colin Wilson pode imaginar uma situação em que a força conjunta de vários cérebros humanos possa fazer a Lua dar um meio-giro sobre si mesma e nos expor sua face oculta. Jorge Luis Borges pode dizer que existe um objeto banal que uma vez visto por alguém não pode ser esquecido. Basta que a premissa seja nítida, e que as funções e relações sejam plausíveis, e expostas numa linguagem sem confusão. Se a base for bem assentada, é possível voar mais alto nas consequências.



quinta-feira, 22 de outubro de 2015

3952) O avanço da arte (23.10.2015)





O poeta Baudelaire, perguntado sobre “a vanguarda”, dizia que não gostava de metáforas militares. 


Vanguarda não é uma posição absoluta, apenas uma indicação relativa. O ex-presidente José Sarney já foi referido, em seu tempo, como “a vanguarda do atraso”, no sentido de ser o menos reacionário do grupo de políticos ligados à ditadura. 

O que me traz à memória os antigos desfiles estudantis de 7 de setembro, quando formávamos pelotões por ordem de altura. Era uma honra desfilar na primeira fileira de cada pelotão, chamada de “testa”. 

Acontece que desfilar nos pelotões mais à frente era também uma honra, de modo que quando a gente ficava na última fileira de um pelotão ficava soltando piada com o pessoal do pelotão que vinha logo atrás, chamando-os de “ralé”, ao que eles retrucavam: “Vocês são rabeira, nós somos testa”. 

E la nave va.

Todo artista de vanguarda imagina que é testa do primeiro pelotão, e que todos os artistas do mundo estão vindo atrás dele (ou se não estão, cabe a ele ironizá-los até que venham). 

Pintores abstratos proclamaram cem anos atrás a morte da pintura figurativa, tal como os poetas concretos proclamaram cinquenta anos atrás a morte da poesia discursiva. Talvez não tivessem razão em termos objetivos (as mortes anunciadas não aconteceram), mas compreende-se seu entusiasmo: sem uma crença cega na importância e na renovação estética do que está propondo ninguém consegue enfrentar o dilúvio de preconceitos que se derrama sobre essas tentativas de revolução.

Se precisamos mesmo de uma metáfora visual para entender esse processo, podemos dizer que cada vanguarda não é a ponta de uma seta: é como um subúrbio distante numa cidade, um arrabalde onde ninguém morava mas de repente pessoas interessantes estão se mudando para lá. 

Isso faz a cidade (= a Arte) começar a se expandir naquela direção. O que não a impede, claro, de estar ao mesmo tempo se expandindo em outras. 

Cada grupo de vanguardistas, por dever de ofício e fervor ideológico, só presta atenção ao movimento que se dá na direção do seu próprio subúrbio. Quem descobre uma maneira nova de fazer arte percebe o quanto aquilo é necessário, e diferente, e precioso, e oportuno. E tende a achar que o futuro inteiro da arte é aquilo que ele descobriu; que todos os artistas deveriam começar a produzir daquela forma, e que a cidade só deveria se expandir na direção do seu subúrbio. 

A evolução da arte, graficamente, não tem a forma de uma seta onde uns são necessariamente mais avançados do que todos os outros. Seria uma espécie de rosa-dos-ventos desigual, expandindo-se em todas as direções, só que numas mais depressa do que em outras.




quarta-feira, 21 de outubro de 2015

3951) O rosto do poema (22.10.2015)


("Poema", de Joaquim Cardozo)

O rosto do poema é o formato que ele adquire na página impressa. Aquilo que chamamos “a mancha gráfica”, o espaço ocupado pelas palavras impressas na página branca. (Quando se trata de trechos em prosa cerrada, essa mancha é um retângulo impresso cercado por margens em branco.)  A mancha do poema revela, no primeiro vislumbre, sua extensão total, o comprimento das suas linhas, a (ir)regularidade das estrofes. Nessas manchas de texto, que visualizamos de chofre antes de decompô-las em palavras, percebe-se a respiração do poema, as expansões e contrações da voz que o enuncia.

Alguém abre um livro e vê aquela massa compacta de texto que é o “Uivo” de Allen Ginsberg, aquelas linhas intermináveis que se quebram à margem direita e se derramam para a linha logo abaixo. Ao começar a ler, a pessoa sabe que todo o resto do texto vai seguir aquele formato, vai obedecer ao ritmo caudaloso daquela dicção (Ginsberg já afirmou que nos poemas dele o tamanho da linha era a capacidade do seu pulmão, era toda frase que ele fosse capaz de dizer antes de precisar encher os pulmões de novo). Se na página seguinte o leitor acha um poema de e. e. cummings, vai ter uma informação visual diferente, a começar pela abolição das maiúsculas, as palavras partidas em pedaços verticais, etc. O poema típico de Ginsberg parece uma parede; o de cummings parece uma folha caindo devagar.

Sempre que releio “O Caso do Vestido” de Drummond me pergunto por que motivo ele partiu em dísticos (grupo de 2 versos) esse longo rimance ibérico-cordelesco. Poderia ter mantido o fluxo vertical do texto, que é todo em setissílabos, marcando apenas as pausas internas à própria narração, como o fez em tantos outros (“O Elefante”, “Morte do Leiteiro”, “A Mesa”, etc.). Mas não, ele saiu quebrando o poema todo de 2 em 2 linhas, o que torna o “Caso do Vestido” facílimo de localizar, apenas folheando o livro. Tão reconhecível quanto a divisão de 3 em 3 usada em “A Máquina do Mundo”, sem que isso se deva a nenhuma imposição interna. Talvez alusão aos tercetos de Dante na Divina Comédia, mesmo sendo brancos (sem rima) os versos que ele agora usa. O efeito rítmico, ao meu ver, é o de conter um fluxo que poderia ser contínuo, como quem desce de carro uma ladeira dando pisadinhas leves e constantes no freio para brecar a aceleração da descida.

Um soneto, um haicai ou uma sextilha podem ser identificados de relance por um leitor de mediano conhecimento. É a primeira informação essencial: “o tamanho é este aqui”. É a primeira informação que se dá ao leitor (antes mesmo da leitura do título do poema) e a primeira expectativa estética que se produz nele.









terça-feira, 20 de outubro de 2015

3950) Nós fumo (21.10.2015)



“Não é somente no cinema que isto veio a se cristalizar como clichê, mas também na literatura,” disse Philip Marlowe, batendo a cinza do Camel num cinzeiro redondo de vidro. Levou o cigarro aos lábios, aspirou a fumaça, soltou-a em dois tubos paralelos, parodiando um touro enfurecido. “Nem todos os autores têm facilidade para preencher os tempos mortos de uma cena onde duas ou mais pessoas falam entre si. É preciso fazer com que essas pessoas interajam com o ambiente, façam algum gesto. Os outros personagens me servem bebidas, oferecem-me tabaco, e quando eu bebo eu acabo aceitando.”

“Pois eu não sabia o que fazer com as mãos,” disse James Bond, cigarrilha no dedo.  “Não era disso que aquelas coadjuvantes se queixavam,” observou Miss Marple, firmemente limitada ao seu chá de sempre. “Minha cara senhora,” disse Bond fazendo uma curvatura risonha, “na mesa de jogo ou no leito amoroso geralmente já se sabe o que se vai fazer. O problema, como nosso bom Marlowe assinalou, são os bate-papos dos personagens. A ‘conversation piece’ dos nossos pintores. Descrever o que alguém faz com o cigarro ajuda a intercalar as falas com algo que contenta os olhos. Alguns leitores precisam dessas informações visuais mais do que outros.”

“E alguns autores sabem fornecer isto melhor do que outros, Mr. Bond, mas permita lembrar-lhe que nem só de cigarros vive a nossa estirpe,” disse Sherlock Holmes, sugando repetidamente ao cachimbo de roseira-brava, constatando-o de fogo morto, riscando um fósforo de cera, aplicando-o ao fornilho inerte e vendo-o esbrasear-se e consumir-se quase que de dentro para fora. “A proverbial nitidez e o proverbial claro-escuro de tudo que é ficção vitoriana, sem dúvida”, disse Miss Marple, “sempre levando em conta, claro, que quem viveu a era vitoriana desconhecia essa palavra e descreveria seu próprio tempo, talvez, em termos muito diversos.”

“Nós somos no fundo uns neo-vitorianos,” disse Doc Sportello, enquanto estendia na mesinha a seda, deslindava berlotas, enfileirava o matagal picadinho, dava a enrolada final na múmia e acendia o prepúcio de papel. “A Califórnia é uma Londres, só que ensolarada pelo lado de fora.”  Marlowe puxou um charuto cubano do bolso interno do paletó, mordeu-lhe a ponta, cuspiu-a pela janela que dava para o Tâmisa e disse: “Todo romance na verdade conta duas histórias, a história do que aconteceu, e as falas que os personagens pronunciaram. Quem sabe um dia invadirão o descanso eterno das nossas sepulturas para cortar nosso texto. No futuro, censores condenarão esta pequena antologia. No futuro ninguém saberá que fumávamos”. “Fumarei a isto”, disse alguma voz.



segunda-feira, 19 de outubro de 2015

3949) Poeminha curto (20.10.2015)




(Leminski, por Marcos Guilherme)


Já vi esse tipo de poema descrito como “poeminha leminskiano”. O curitibano Paulo Leminski não o inventou, mas é um dos seus melhores executantes.  

Ninguém inventa essas coisas, essas formas simples. Esse formato difuso brotou junto com os poetas da minha geração, os que começaram a divulgar seus poemas nos anos 1970 e nos 80 já estavam em livro. 

Eu fiz um monte deles, todo mundo fez um monte, e com frequência vemos belas coisas sendo ditas.

Leminski é candidato à faixa de melhor fazedor, com preciosidades como: 

pariso 
novayorquizo 
moscoviteio 
sem sair do bar 

só não levanto e vou embora 
porque tem países 
que eu nem chego a madagascar.

Ou essa fotografia zen: 

o barro 
toma a forma 
que você quiser 

você nem sabe 
estar fazendo apenas 
o que o barro quer.  


Esses movimentos de ida e volta do poema se mantêm mesmo quando cada bloco fica menor em tamanho: 

um pouco de mao 
em cada poema que ensina 

quanto menor 
mais do tamanho da china.


Isto é o poema curto em dois blocos.  Tem um desenlace rítmico diferente da sextilha, diferente do haicai. Estruturalmente, corresponde mais ou menos a duas quadrinhas (ou tercetos, ou dísticos, misturadamente) superpostas, resultando num poema de 6 a 8 linhas no total, com uma cesura ao meio. 

O verso do meio e o último (o 4o. e o 8., digamos) rimam entre si. Este efeito é mais importante do que o numero total de versos, e se eles rimam internamente entre si ou não. É como se o poema mostrasse a cara, depois a coroa, e tudo rimasse. Um vapt e um vupt. Um zás e um trás.

O primeiro bloco pode ter de uma a quatro linhas, raramente mais, linhas que exibem rimas ou não, e ele se conclui com uma linha onde é proposta a rima que deve se repetir no final. 

A leitura desse primeiro bloco deixa uma expectativa rítmica e sonora a ser preenchida pelo segundo. Quando ele o faz, fecha o poema com um senso de resolução melódica e simetria estrutural. 

O perigo de tal verso é apenas, como o de toda forma simples, o de ser muito acessível ao versejador preguiçoso ou sem muito o que dizer.


Ainda Leminski, este com um alô de chapéu a Yeats: 

eu tão isósceles 
você ângulo 
hipóteses 
sobre o meu tesão 

teses sínteses 
antíteses 
vê bem onde pises 
pode ser meu coração.  

Este, sobre a bolandeira do fazer versos: 

moinho de versos 
movido a vento 
em noites de boemia 

vai vir o dia 
quando tudo que eu diga 
seja poesia. 

E esta declaração de guerra em forma de cambalhota: 

o pauloleminski 
é um cachorro louco 
que deve ser morto 
a pau a pedra 
a fogo a pique 

senão é bem capaz 
o filhodaputa 
de fazer chover 
em nosso piquenique.












sábado, 17 de outubro de 2015

3948) "A rotina e a quimera" (18.10.2015)




(Carlos Drummond)


Sob este melancólico título Carlos Drummond publicou uma crônica no Correio da Manhã, recolhida depois no livro Passeios na Ilha (1952), e nela meditava sobre o destino do escritor brasileiro que tem um emprego público. 

Como se sabe, dois terços do nosso cânone na poesia, no romance e no conto foram produzidos por indivíduos que ganhavam a vida como: 

1) funcionários públicos; 
2) professores; 
3) jornalistas. 

Em tempos mais recentes, 

4) publicitários; 
5) advogados. 

A fatia mais estreita corresponde a todas as outras profissões, inclusive a fugidia espécie do “escritor em tempo integral”.

Há medidas modernizadoras (diz o poeta) para evitar que funcionários desviem seu tempo de expediente para atividades menos confessáveis (ele lembra que Lima Barreto “escrevia romances nas costas do papel almaço, usado, da repartição”). O escritor-funcionário, porém, não deixará de escrever por isto: “escreverá na hora do sono ou da comida, escreverá debaixo do chuveiro, na fila, ao sol, escreverá até sem papel”.

Drummond falava de cátedra, e para ele o escritor-funcionário tem que estar equidistante do miserê e do pleiboísmo: 

“O emprego do Estado concede com que viver, de ordinário sem folga, e essa é condição ideal para bom número de espíritos: certa mediania que elimina os cuidados imediatos, porém não abre perspectiva de ócio absoluto. O indivíduo tem apenas a calma necessária para refletir na mediocridade de uma vida que não conhece a fome nem o fausto.”

O poeta reconhece a floração do talento em outros temperamentos, como o boêmio ou o escritor faminto de mansarda, mas adverte: 

“aqui se trata de certo tipo de criador literário, aquele que não ama velejar pelos mares lendários nem ancorar à sombra do botequim: o escritor-homem comum, despido de qualquer romantismo, sujeito a distúrbios abdominais, no geral preso à vida civil pelos laços do matrimônio, cauteloso, tímido, delicado. A organização burocrática situa-o, protege-o, melancoliza-o e inspira-o”.

O poeta parece estar opondo o andarilho Rimbaud ao sedentário Drummond, mas logo abaixo ele se dá o trabalho de nomear (contei agora mesmo) trinta e três colegas do nosso Olimpo literário, e seus respectivos cargos. O poeta ainda adverte: 

“Mas seriam páginas e páginas de nomes, atestando o que as letras devem à burocracia, e como esta se engrandece com as letras.”  

A primeira grande decisão na carreira de um escritor não é estética nem ideológica, é a sua resposta à pergunta: “Como vou ganhar a vida enquanto escrevo? Um emprego confortável e seguro, que dure a vida toda, ou viver de aventuras? Qual das duas vidas me transformará num escritor melhor?”.






sexta-feira, 16 de outubro de 2015

3947) Coisas que aconteceram (16.10.2015)



Eu estava no Rio de Janeiro a passeio, hospedado no apartamento de amigos em Ipanema. Cheguei um dia sozinho, de madrugada, rua deserta. Havia um cara querendo entrar no prédio; não tinha a chave, nem havia porteiro. Abri a porta para ele, que sorriu, me agradeceu, entramos, eu ia para o térreo, ele subiu no elevador. Era Glauber Rocha.

Eu vi em Salvador, no Corredor da Vitória (uma rua com intenso tráfego em mão dupla), dois motoristas diminuírem a marcha ao virem na direção um do outro, e depois pararem os carros lado a lado, trocarem sorriso, aperto de mão, algumas frases, enquanto as duas filas de carros esperavam, por trás de cada um, e depois eles deram tchau, todo mundo seguiu em frente e o mundo até hoje não se acabou.

Eu vi no Circo Voador da Lapa, após o Rock in Rio de 1985, numa noite em que muita gente subiu ao palco, a hora em que a platéia pediu James Taylor, que tinha botado o “RiR” todo pra cantar “You’ve Got a Friend” poucos dias antes. Ele sentou ao microfone e pegou o violão, e aí um engraçadinho da platéia jogou uma lata de cerveja que pegou na cabeça dele. Ele cantou mesmo assim.

Eu estava na multidão hirsuta que de violão em punho foi para a frente da cadeia de Ouro Preto pedir ao megafone a libertação dos atores do Living Theatre de Julian Beck e Judith Malina, ali encarcerados, e como não se libertou ninguém a gente cantou de novo “This is the dawning of the Age of Aquarius”, e voltou para a praça.

Eu vi da platéia algo que talvez já tenha acontecido a muita gente pelo mundo afora, mas eu tive uma sensação de estranheza e de novidade alguns anos atrás, quando vi ao vivo Chuck Berry cantando “Yesterday” num palco carioca.

Eu estava ali bem pertinho da grade do Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, quando o corpo do presidente-eleito-e-não-empossado Tancredo Neves foi posto à visitação pública, e a multidão forçou os cordões, e foi preciso a viúva vir à sacada e ao microfone, para pedir que se afastassem, porque podia acabar acontecendo uma tragédia.

Eu estava na platéia do Teatro Santa Roza, na Paraíba, durante um espetáculo de Brecht montado por Renato Borghi e Ester Góes, quando no meio da peça um fotógrafo da imprensa subiu no palco e tirou mais de uma dúzia de fotos, como se fosse invisível, até que os atores se interromperam e pediram a ele para descer, porque estavam se desconcentrando.

Eu vi pela TV o gol de Basílio que interrompeu o famoso jejum de títulos paulistas pelo Corinthians; eu estava em Cachoeira da Bahia, o bar com a TV estava cheio de baianos, além de alguns alemães que estavam de passagem, e todo mundo naquela noite foi Corinthians desde criancinha.


quinta-feira, 15 de outubro de 2015

3946) "O Desatino da Rapaziada" (16.10.2015)



Terminei a leitura, que passou voando, de O Desatino da Rapaziada – Jornalistas e Escritores em Minas Gerais 1920-1970” de Humberto Werneck (Companhia das Letras, 1992). Digo que passou voando porque é assim que parece passar esse período nas letras e na imprensa de Minas Gerais, com uma sucessão de jornais, revistas e suplementos ou tablóides literários que sobem aos céus de Minas em girândolas de boas intenções e versos febris, brilham durante alguns anos ou alguns números e depois se desfazem em fumaça e cinza enquanto um novo tablóide alça sua própria explosão.

Sempre pensamos no escritor brasileiro como um funcionário público com histórias para contar, papel em abundância e tempo de sobra. O livro de Humberto Werneck nos lembra que não só as repartições: as redações de jornais também foram um valhacouto onde se homiziaram muitos beletristas acusados de poetas. E lembra que a reportagem diária, com seus percalços, revelou muitos dos nossos talentos na ficção.

HW examina em seu livro gerações sucessivas de jornalistas-literatos, começando pela época do Modernismo, com Carlos Drummond de Andrade sendo a figura que mais se destaca, e depois vem abordando a geração “encontro marcado” em alusão ao romance homônimo de Fernando Sabino (cujo grupo se complementa com Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino), até a explosão dos “contistas mineiros” dos anos 1960 em diante, de Murilo Rubião a Luiz Vilela.

Aliás, é bom qualificar minha afirmação mais acima, porque ser jornalista era, também, uma forma de ser funcionário público. Os jornais geralmente faziam parte de projetos pessoais de governadores, prefeitos, políticos necessitados de um altofalante para seus interesses.  O jornalista geralmente não tinha estabilidade, nem salários polpudos nem proteção trabalhista, mas era possível aproveitar os entusiasmos eleitoreiros deste ou daquele partido para encher as ruas de papel impresso. Surgiam daí os jornaizinhos combativos que na metade da frente defendiam os interesses do patrão e na metade de trás traficavam as subversões estéticas do seu tempo.

São dezenas de episódios pitorescos de rivalidades poéticas, despeitos pessoais, travessuras, pequenos delitos, maledicência terapêutica. E de louvação bem humorada aos azares da profissão, que, segundo o poeta Carlos Drummond, “proporciona o treino diário, a aprendizagem continuamente verificada”, e ajuda a prevenir a chegada da “preguiça, que é o mal do literato entregue a si mesmo”. Nada como uma boa redação dos velhos tempos para curar o “writer’s block” dos existencialistas de hoje.



quarta-feira, 14 de outubro de 2015

3945) Eu me lembro - 6 (15.10.2015)



Eu me lembro do cheiro do ambiente do caldo de cana Macaíba, e das páginas de revistas com curiosidades, mistérios e bizarrices, emolduradas, na parede da sinuca O Gato Preto. 

Eu me lembro que em Campina Grande já se fabricou a cachaça “Galo da Borborema”; eu tinha uma garrafa em casa, da qual derramei o primeiro conteúdo e substituí por Rainha. 

Eu me lembro de uma foto (na Manchete ou no Cruzeiro) mostrando que o número 1961 continuava o mesmo se fosse virado de cabeça pra baixo.

Eu me lembro que o primeiro lugar em que se venderam livros de bolso em Campina foi no Abrigo Maringá. 

Eu me lembro quando a comitiva presidencial com Juscelino em carro aberto passou pela nossa casa subindo a rua Miguel Couto, rumo ao centro. 

Eu me lembro de uma mendiga de chapéu que pedia esmolas de pé na Rua Maciel Pinheiro; ela tinha o rosto deformado e eu, que teria uns dez anos, morria de medo de avistá-la.

Eu me lembro de quadrinhos de Gabby Hayes, C.B., Morcego Negro, Flecha Ligeira, Flecha Certeira, Rocky Lane e Falcão Negro, o qual depois eu soube ser criação do paraibano Péricles Leal. 

Eu me lembro de um cachorro doido nos poços das lavadeiras no Alto Branco, e quem o matou de espingarda foi nosso vizinho Zezinho Buraco, ex-zagueiro do Treze. 

Eu me lembro dos animais empalhados na vitrine da loja Palacinho da Criança. 

Eu me lembro da caixa de sapatos cheia de diferentes tabelas da Copa de 1966 que eu guardava embaixo da cama.

Eu me lembro de Mário Rogério e seus amigos cantando e tocando violão à noite, no alto do edifício Abdallah, a alguns metros do portão da nossa casa na rua Padre Ibiapina. 

Eu me lembro da cartola do Preguéto, do cachorro quente do Cisne Lanches, do sorvete da Capri e da cabeça-de-galo de Zuzu. 

Eu me lembro do fim das terças-feiras de Carnaval no Gresse, quando, ao amanhecer da 4a.feira de Cinzas, a orquestra descia a ladeira tocando rumo à Praça da Bandeira, onde Ivan Gomes atirava os bêbos dentro da fonte.

Eu me lembro do cheiro de compensado dos palcos e dos bastidores da TV no Recife, e de como o palco parecia pequeno quando a gente entrava nele. 

Eu me lembro do baterista que tinha sido mordido de cachorro doido e agora tinha que tomar injeções na barriga. 

Eu me lembro dos certificados de censura dentro de envelopes pregados à face interna da tampa das latas de filme em 35mm, e que o gerente deixava a gente ler e anotar. 

Eu me lembro das pessoas que trabalharam com meu pai: Edson da Federação, Seu Sebastião contínuo, depois Seu Lisboa motorista, Albanisa a eterna secretária. 

Eu me lembro do garçom Espanha, do taxista Luizinho e de Henrique da banca de revistas do Calçadão.