quinta-feira, 24 de setembro de 2015

3927) O olhar que lê (24.9.2015)




Toda linguagem é metalinguagem, porque qualquer frase, inclusive esta, ou o “bom dia” que damos ao porteiro do prédio, traz embutida uma reflexão prévia ou simultânea sobre significantes e significados. Não existe enunciação da linguagem que não contenha uma crítica ou uma estética da linguagem. Dependendo de quem estiver na portaria eu posso dizer “Bom dia” ou “Fala, Rodrigo, tudo bom?”. A crítica da linguagem e a escolha da linguagem vêm embutidas em cada opção. Toda linguagem impõe hierarquias, prioridades e critérios de escolha. Magritte compreendeu que a melhor maneira de indicar o que é um cachimbo é desenhar um cachimbo e dizer: “Isto não é um cachimbo”.  Vale para praticamente tudo.

O século 20 foi o apogeu dessa vertigem, e tudo adquiriu foros de linguagem própria: a propaganda, a moda, a culinária, a produção industrial, o trânsito, as posições sexuais, a espessura da espuma do chope. Uma doença é uma linguagem com que nosso corpo, esse ser alienígena, tenta nos comunicar algo. Há uma linguagem inconsciente no modo como na praia entramos no mar: tibungando, andando, aos pulinhos... O planejamento urbano é um texto cifrado, e também o jeito de aparar a barba, o modo de forrar a cama, a postura corporal. Tudo é leitura, como nos advertem os comentaristas de futebol: “Neymar leu a jogada corretamente e se posicionou no lugar certo na hora certa”.

A mídia ambiente é toda ela de linguagem, mas não é uma linguagem única nem concebida por uma mente única. É tão diversificada quanto uma floresta tropical, e as linguagens lutam por espaço, lutam por sol, lutam por água – em termos práticos, lutam por um olhar que as leia e as recolha na memória a ponto de deixar seu comportamento ser moldado por elas. Uma empresa espalha dez mil cartazes “Beba Punk-Cola!” pela cidade e começa a medir o consumo nas semanas seguintes. Se aquela enunciação não está produzindo resultado, ela definha como um arbusto sem água. É a única maneira de saber se uma mensagem assim está sendo lida. Lemos sem perceber. Um cardápio, um jardim, um ritual, tudo é uma frase de uma espécie de língua.

Tudo é linguagem. Um detetive chega ao local do crime e lê os objetos, os sinais de presença humana, as coisas que estão fora do lugar. Médico lê sinais nos olhos, na pele e na respiração de um cliente. O mecânico de oficina lê os ruídos e a fluidez de movimentos de um carro que acabou de chegar. Não são linguagens produzidas por uma inteligência humana, são mil linguagens secundárias criadas inadvertidamente por mil ações humanas. Talvez não tenham sido propriamente “escritas”, mas podem ser propriamente lidas.



terça-feira, 22 de setembro de 2015

3926) Machado e a ciência (23.9.2015)





(Selton Mello, no filme A Erva do Rato, baseado em "A Causa Secreta")) 


O Alienista (1882) é uma sátira de Machado de Assis à ciência. O dr. Simão Bacamarte decide trancafiar no seu manicômio, a Casa Verde, qualquer indivíduo que exiba comportamento insano de qualquer natureza. Ele constata então que ninguém é normal, e que pelo andar da carruagem a população inteira de Itaguaí terá que ser internada, e poucos são os verdadeiramente sãos encarregados de cuidar do mundo exterior.

De certa forma é uma sátira patafísica avant la lettre, porque naquele momento o futuro inventor da Ciência das Exceções tinha apenas nove anos. Alfred Jarry é o famoso criador do vilão da vanguarda O Rei Ubu, de peças memoráveis. O Colégio de Patafísica, a que ele deu origem, é um divertido grupo de franceses que tem pontos em comum com a OuLiPo, a oficina de literatura potencial, e com o teatro do absurdo, um movimento cosmopolita com peso em Paris. A Patafísica é a ciência que, em vez das regras, cuida das exceções.

Com a amargura compassiva e o veneno bem-humorado do autor, a loucura de Simão Bacamarte é até lírica, comparada a cientistas machadianos como Stroibus e Pítias, os dois filósofos-picarescos do seu “Conto Alexandrino” (1884). Stroibus disseca animais vivos para provar que seu sangue transmite essências: “Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia”. Passam a frio, na lâmina, centenas de ratos, e estabelecem por acúmulo de evidências a cor exata que tinham os olhos dos animais ao morrer.

Bebem o sangue do rato, os dois, num experimento pouco controlado, o que revela seu lado de trapaceiros trapalhões meio marktwainianos. O sangue do rato faz efeito, e danam-se os dois a furtar a torto e a direito, para no fim acabarem eles próprios na mesa de vivissecção. É a mesma impiedade do Fortunato de “A causa secreta” (1885), o homem que pendurava ratos em cima de uma chama e usava uma tesoura neles. Os cientistas alexandrinos são um meio termo entre o cientista maluco dr. Bacamarte, que é até meio julioverniano, e o cruel Fortunato. A ciência acolhe o tresvario conceitual e acolhe também o sadismo. O alienista é o menos ameaçador dos seus filósofos.

O cientista, temia Machado, era o indivíduo que tinha “a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo.” Na verdade nem é bem do cientista em si que Machado fala: esta é a descrição que faz de Fortunato, o cara que queimava o rato vivo. Fiquemos com o doutor Bacamarte, melhor ser palhaço pra rir do que herói pra sofrer.



segunda-feira, 21 de setembro de 2015

3925) Seis acidentes (22.9.2015)




(Ilustração: Maira Kalman)


Mauro Paranhos, 53 anos, radialista, de Viçosa (MG), deu descarga após usar a privada, e ao puxar as calças para cima o celular caiu do bolso dentro da água da privada; ele mergulhou a mão para pegá-lo de volta mas nesse instante o celular tocou, transmitindo-lhe um choque elétrico, ou pelo menos a ilusão vibratória de um choque, e provocando em Mauro o primeiro dos seus enfartes.

Walkyria Weiss, 33 anos, psicóloga, de Dusseldorf (Alemanha), estava conversando num bar com amigos quando bateu com o cotovelo derrubando uma garrafa, e ao pular para segurá-la esbarrou num garçom que passava com a bandeja cheia, fazendo-o cair sobre a mesa vizinha e emporcalhar alguns senhores já impacientes com a demora e que agrediram o rapaz, imediatamente defendido com ardor pelos colegas na verdadeira-batalha-campal a que a imprensa se referiu.

Antonio Calcedo de Souza, 24 anos, estudante, de Bananeiras (PB), parou o carro às pressas diante da casa dos pais para ir pegar um trabalho que tinha esquecido, não puxou direito o freio de mão, e o carro desceu aos trambolhões a ladeira onde eles moravam, indo emborcar um caminhão de frutas que espalhou três mil laranjas na pracinha lá embaixo.

Antero José Cargoletto, 61 anos, contabilista, de Punta del Este (Uruguai), saiu de casa e deixou aberta a janela do escritório, por onde entrou com-tudo o rápido temporal que se abateu sobre a cidade nessa tarde, alagando o aposento até entrar em contato com o no-break ligado, o que causou circuito, incêndio, e pulverização total da casa de Antero, que até hoje não contabilizou os prejuízos.

Núbia Botelho dos Santos, 32 anos, empresária, de Feira de Santana (BA), pôs em cima do teto do carro o bebê-conforto com seu primogênito Lucas, de 1 ano, enquanto empilhava no banco da frente as numerosas sacolas de produtos que ia levar para uma exposição, tão atrasada que bateu a porta, rodeou o carro, ligou a ignição e disparou de rua afora, episódio que o próprio Lucas conta até hoje, às gargalhadas.

Dionísio Leitão, 40 anos, pecuarista, de Austin, Texas (EUA), estava passando o trator num roçado quando a roda enganchou num fio que a ventania tinha derrubado e terminou de desequilibrar uma torre, que caiu sobre um transformador, dando um pipoco que espalhou uma estrela de listras de fogo fio afora por toda aquela comarca, detonando um gaseoduto próximo e desintegrando instalações elétricas num cataclismo energético que apagou quase uma banda do país, mas uma hora depois, quando ele guardou o trator, estava faltando luz em casa, e ele só ficou sabendo do que tinha acontecido na manhã seguinte, quando a TV chegou antes de todo mundo.



sábado, 19 de setembro de 2015

3924) Traduzir em verso (20.9.2015)



Traduzir um romance é pesado, mas às vezes é mais fácil do que traduzir um poema de duas páginas. O que mais influi na tradução não é a mera quantidade de palavras, é a quantidade de regras ou de convenções que o original explora e que a tradução precisa seguir também. Suponhamos uma forma poética bem simples e conhecida: o soneto. Número fixo de linhas, número tradicional de sílabas por linha (dez, doze), questões de prosódia, de acentuação, de ritmo, de desenho melódico da frase. Tudo isso sem falar no lado significante do verso: aquilo que ele diz, seu chamado conteúdo manifesto.

Não é conteúdo, é forma também. O fato de ser um soneto sobre um vagalume ou um haicai sobre uma rã estão embutidos na forma, fazem parte imagística daquilo, tanto quanto os sons de que o poema é feito. É interessante que a maioria dos leitores percebe em primeiríssimo lugar o chamado “conteúdo” e só em alguns casos atenta para os efeitos sonoros, que o tradutor tanto se esforçou para emular.

Rima, métrica, cadência, variação sonora, conteúdo, algo vai ter que escapar por entre os dedos do tradutor na hora de compor um equivalente. Eu acho quixotescas, por exemplo, as tentativas de traduzir um poema em inglês usando em português a mesma contagem de sílabas do original. Algumas línguas são de tendência monossilábica, outras não. Inglês e português são línguas de cadência e percussão opostas. O inglês é stacatto, cada nota é uma palavra, o português é distributivo. Uma palavra inglesa é um anel, uma portuguesa é um colar de sílabas. 

Veja-se essa beleza de verso de Shakespeare (King John): “So foul a sky clears not without a storm”. “Um céu tão carregado não fica limpo sem uma tempestade”. A imagem é bonita sem ser original. O que lhe dá força é a cadência em inglês, implacável, dez sílabas, nove palavras, apenas uma palavra de duas sílabas (“without”). Como reproduzir essa cadência em português? Não há monossílabos adequados para dizer essa idéia e manter essa percussão rítmica. Como dizem certos jogadores de futebol: “Fica complicado”.

Um verso de 8 ou 6 sílabas (tão comuns no inglês quanto o setissílabo entre nós) pode ser traduzido em português com 10 ou 12 sílabas. Ficar preso à dimensão do original é heróico, é admirável, mas muitas vezes (depende: cada poeta, cada poema impõe regras próprias) é desnecessário. Pode-se também produzir uma sensação de staccato ou de reiteração verbal numa linha mais longa. Seria melhor aceitar esse verso mais amplo, e tentar criar um equilíbrio entre o “conteúdo” manifesto do verso e outros efeitos sonoros que ele certamente envolve, além da mera contagem silábica.



sexta-feira, 18 de setembro de 2015

3923) Clodomiro Ferreira (19.9.2015)



"Clodomiro Ferreira era não apenas meu melhor amigo, mas uma espécie de segundo pai depois que meu pai morreu. Passou meses folheando meus cadernos, me ajudando nas tarefas de casa, até que uma noite ergueu o rosto e disse pra minha mãe: “Ele é bom em matemática. Vamos fazer dele o melhor contabilista do mundo.”  Eu não sabia então o que era contabilista, mas a possibilidade de ser o melhor alguma-coisa do mundo já era bem clara para mim aos dez anos. Se me tornei o melhor contabilista do mundo? Não sei, perguntem a Clodomiro, porque virei contabilista dele.

“Quando se mudou pra casa da gente Clodomiro me protegeu, e me exigiu muito. Tem que agradecer muito a um homem como aquele. Ele não era bruto como os professores da escola, ensinava até melhor, eu aprendia. Cresci, me formei, em poucos anos pulei de divisão em divisão até estar comandando as finanças. Era tanto jeton e tanto pro-labore que me casei com uma ex-namorada que reencontrei na fila do Banco.  Entramos para o Clube da Naja Ninja. Épocas de muitos estudos; fazíamos sessões de transcendência ultrabiótica, peregrinação-mental, tele-espeleologia, reconstituição de vidas futuras. Mesmerizações, e instalação de psico-aplicativos.

“Rosinha só não era mais feliz porque todo dia tinha que sair para comprar alguma coisa. Eu pensava em viagens e na minha secretária, Katiushka. Sabe quando um trabalho anda sozinho?  Clodomiro me chamou na sala dele, e parecia que tinha recebido notícia de morte na estrada. Desabou na cadeira e me perguntou por que eu tinha feito uma loucura daquela. Perguntei qual, evidentemente. Ele fechou as cortinas e passou no telão umas imagens de câmara de vigilância. Era eu, chegando ao prédio de madrugada, esvaziando o cofre, saindo à sorrelfa.

“Naquele instante eu soube que quando alguém se apossa da mente da gente a gente apaga e não vê o que está fazendo e também não lembra depois o que fez. Eu não podia negar aquela imagem, era eu, sim, eu mesmo, naquela noite em que (fui consultar meu celular depois) eu saí para caminhar no parque e só dei por mim horas depois, em casa, exausto e suado. Com a mesma camisa xadrez das imagens.

“Um castelo de cartas caiu todinho nesse dia, mas isso para mim são águas passadas. Clodomiro foi companheiro. Me ofereceu a chance: assumir a culpa e sumir de vez. Escolhi fugir sozinho, e acertei: depois soube de Rosinha com o Mesmerizador. Peguei um saco de dinheiro, papelada falsa, e fui me instalar numa confortável pousada, cuja remota localização não posso sequer sugerir. Clodomiro, que homem inteligente, que homem do coração bom, tem que se agradecer muito a um homem como aquele.”

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

3922) "O Dragão" (18.9.2015)




José Alcides Pinto (1923-2008) é chamado por alguns de “escritor maldito cearense”. Esse termo maldito às vezes tem a conotação de “autor blasfemo, sacrílego, violento” e às vezes apenas de “escritor que não faz muita questão de ser estar sob os holofotes”.  Seus títulos indicam temas recorrentes: Entre o sexo, a loucura e a morte, Cantos de Lúcifer, O Criador de Demônios etc.  Loucura, satanismo, fatalidade e violência.

O Dragão é o primeiro romance da chamada Trilogia da Maldição (Topbooks, 1999), que ainda inclui Os Verdes Abutres da Colina e João Pinto de Maria: Biografia de um Louco.  Esta primeira história não é um romance fantástico, embora esteja cheia do “visionarismo alucinatório” que Ivan Junqueira comenta no prefácio.

Alto dos Angicos é um povoado perdido no sertão cearense, na ribeira do Acaraú, castigado por desgraças de todo tipo: seca, enchente, tempestade de areia, epidemias. A história é conduzida pelas andanças do Padre Tibúrcio, um personagem vigoroso, reclamão, sem papas na língua, que passa o tempo todo arregaçando as mangas para resolver problemas alheios e condenando os matutos embrutecidos por sua ignorância, sua passividade, seu desânimo.

É uma literatura regional diferente da de Rachel de Queiroz ou Graciliano. A observação social está presente, mas contaminada por um senso do absurdo e da fatalidade, algo que aqueles autores usam de passagem, sem forçar a mão. Alcides força a mão, e O Dragão é menos um romance naturalista sobre o sertão do que um delírio expressionista ambientado entre açudes, currais, casas de taipa, ruínas, lagartixas.

José Alcides foi também um poeta notável (ver aqui sua página no Jornal de Poesia, de Soares Feitosa: http://tinyurl.com/pmcd4pc).  Isso tem peso nas suas qualidades como romancista: a prosa é vigorosa, densa, sonora. Em O Dragão, o elemento fantástico paira junto com a sensação permanente de fim-do-mundo, e com episódios isolados como este:

“Na festa do ano passado, o surpreendi na bodega do Maroca fazendo uma demonstração do Capeta. Atirou o baralho na parede e as cartas aderiram a ela como a um ímã. E o Demônio começou a chamá-las por uns nomezinhos esquisitos: e os reis, os valetes, as damas voavam para ele e entravam-lhe pelos bolsos do paletó, como um bando de diabinhos amestrados.”

A história contada está dentro dos limites do real, embora um real delirante e energizado por visões expressionistas. O fantástico não é central à narrativa, brota em pequenos episódios que assustam e não se explicam, todos bem encaixados nessa descrição de um lugar onde Judas perdeu as meias e onde qualquer desgraça pode acontecer.


quarta-feira, 16 de setembro de 2015

3921) Contação de histórias (17.9.2015)




Algumas histórias orais talvez sejam bobas como histórias, mas serviram para ancorar algumas das melodias mais nostálgicas da nossa tradição popular. O fato de termos hoje informantes e contadores de histórias gravados em áudio e vídeo torna possível preservar não apenas os versos, mas as melodias que surgem em muitos contos populares.

Penso por exemplo na famosa história do estudante que matou sem querer o pavão do professor e foi por este condenado à morte. Uma melodia penosa e carregada de uma tragédia grega ancestral: “Papai de minh’alma, mamãe do meu coração... O mestre faz comigo o que eu fiz com o pavão! O mestre faz comigo o que eu fiz com o pavão.” As modulações de tom, a toada plangente, as repetições tristonhas, tudo carrega a tristeza de quem já se sabe condenado sem remissão.

“Capineiros de meu pai / não me cortem os cabelos...” É a história das meninas mortas (e enterradas pela madrasta), cujos cabelos crescem com o mato e as fazem cantar assim. De quem será essa melodia? De quem será a melodia de outra história de que guardo fragmentos, onde uma criatura ameaçadora diz cantando: “Amarra teu cachorrim, que Bobôca lá vai”.  Bobôca era uma espécie de A Cuca. E a heroína da história era uma menina chamada Bebé, que cantarolava: “Bebé já comeu, Bebé já bebeu, Bebé já deitou, Bebé tá dormindo...”  Parece que o cachorrinho era a proteção mágica dela contra a chegada de Bobôca, que devia ser uma espécie de urso ou de Incrível Hulk. 

Lá pelos trinta anos descobri que algumas músicas, que eu considerava pura tradição oral, eram composições de Braguinha, para os discos coloridos infantis tipo Chapeuzinho Vermelho. “Pela estrada afora eu vou tão sozinha...” Parece folclore. Não por querer parecer, mas porque é feito num espírito semelhante, de criar uma beleza rápida sem muita complicação. A simplicidade longamente polida das soluções musicais e letristas de Braguinha se assemelha à de Capiba em Pernambuco e Caymmi na Bahia.

Os modernos contadores de histórias estão preocupados em produzir leituras novas, mas eu tento olhar no sentido oposto e pergunto: onde e quando surgiu aquela melodia daquele trecho da história? Quem cantarolou pela primeira vez aquelas frases? Uma melodia sem dono, nunca capturada em partitura, pena e tinta. Ninguém a registrou. Talvez exista há mais de cem anos. Às vezes é a música de um personagem, e sobrevive por ele.  Às vezes é um dilema de enredo, em mil variantes. Jack Zipes assinala não somente a “erudição notável” dos irmãos Grimm como também a sua “grande integridade moral”, mas seria interessante checar se além das histórias eles preservaram melodias também.



terça-feira, 15 de setembro de 2015

3920) O mundo é real? (16.9.2015)




(o "girador" de Penny Lane, em Liverpool)


O mundo existe ou é uma ilusão dos nossos olhos? Para mim isso era tema dos romances de FC de Richard-Bessière ou de Philip K. Dick, não era assunto para letra de música. O mundo da música era tão concreto quanto um elétron; e tão consensual quanto o Meridiano de Greenwich. As canções orientais dos Beatles foram as primeiras que tocaram no assunto: “Venha cá, velho, você acha que esse mundo que nós estamos existe mesmo, ou tudo é somente uma ilusão?” 

Pergunta mais profícua não foi feita desde que Arquimedes ou Bertrand Russell questionou o teorema tal ou qual. A vanguarda européia do começo do século 20 já tinha amassado o biscoito da metalinguagem. O questionamento do Real, que por um lado vinha do misticismo do Oriente, e por outro vinha de viagens alucinógenas dos músicos, se misturava a hipóteses de físicos sobre universos múltiplos ou à teoria também chamada de “somos o video-game de Alguém”.

Ian MacDonald, cuja bola vivo a encher merecidamente nesta coluna, tem uma observação interessante sobre “Penny Lane” dos Beatles. (De passagem: ele observa que o piano em staccato dessa faixa agradou tanto nessa gravação, feita entre dezembro de 1966 e janeiro de 67, que os Beatles voltaram a usá-lo com variantes nas gravações subsequentes de “Fixing a Hole”, “Getting Better”, “With a Little Help from my Friends” e “You Mother Should Know”.) Ele cita Lennon garantindo que tudo ali é tirado de memórias visuais dele, tudo é factual. Toda memória é a foto de um reflexo numa nuvem, mas a intenção do poeta foi mesmo a de falar do que havia. O bombeiro, o barbeiro, o cara do banco, as crianças... 

E MacDonald diz, sobre o teor psicodélico da música: “Essa canção é tão subversivamente alucinatória quanto ‘Strawberry Fields’. Apesar da aparente inocência, há em toda a produção dos Beatles poucas frases tão impregnadas de LSD do que o verso (numa rajada fremente de vozes ornamentais) em que a Enfermeira ‘feels as if she’s in a play’... and ‘is, anyway’”. 

A Enfermeira tem aquele insaite instantâneo de que tudo que vê em torno (e que a música descreve) não é “real”: ela está mesmo é numa peça, numa encenação, numa montagem. “E afinal é mesmo”, diz o narrador onisciente da canção.  Ela está numa canção dos Beatles... e de repente percebe que não existe. Como aquele personagem eletrônico em Simulacron-3 de Galouye, que vem a saber que é apenas um carinha-de-game, mas para ser nosso interlocutor naquele mundo ele precisa saber que em certa medida ele não é real. Tremenda crise existencial pro personagem a quem isso acontece. Mais tranquilo ficar com Mario Quintana: “Pra que pensar? Também sou da paisagem”.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

3919) Os irmãos Grimm (15.9.2015)




(Jacob e Wilhelm Grimm, por seu irmão Ludwig)


Até que ponto pode um pesquisador – um tradutor, um antologista, um editor acadêmico – até que ponto qualquer desses servidores do texto pode mexer nos textos de autoria alheia que passam por suas mãos? Uma pessoa conta uma lenda normanda ou bretã que ouviu décadas atrás; dois homens atentos escutam e rabiscam, alternadamente. Depois irão comparar notas e decidirão em comum sobre o uso de regionalismos, de arcaísmos ou formas deterioradas. Assim eram os irmãos Grimm. Um pouco como Leonardo Mota, Sílvio Romero, Mário de Andrade, Câmara Cascudo e qualquer outro que anotou coisas pela vida afora.

Jack Zipes (“Once There Were Two Brothers Named Grimm”) diz que, ao contrário da crença popular, os Grimms não recolheram aquelas histórias visitando camponeses em lugares remotos e escrevendo as histórias que ouviam. Seu método predominante era convidar contadores de histórias à casa onde moravam, e pedir-lhes para contar sua história de viva voz. “Os irmãos já faziam notas durante a primeira audição, ou depois de um par delas.”  Talvez anotassem o mais banal, o que lhes fosse mais familiar, mais previsível, e não percebessem alguma raridade filológica. Talvez percebessem alguns desses efeitos sutis de estilo e de enredo, e caprichassem neles ao fazer o registro com pena e tinta.

Câmara Cascudo, em seu prefácio aos Cantos Populares do Brasil de Sílvio Romero (edição de 1954), diz: “O exemplo de Almeida Garrett e de José de Alencar, que fundira cinco variantes legítimas do ‘Rabicho da Geralda’ agenciando uma versão artificial, não o tentou. Quando só lhe era possível conseguir um trecho apenas, limitava-se a publicá-lo como o recebera. Nos Contos manteve a cor local, os modismos ficaram, a construção sintática curiosa, as modificações mínimas que denunciam o espírito popular, são elementos probantes da honestidade do antologista. Ainda hoje essa renúncia à sugestiva colaboração, ao arranjo irresistível, é ato difícil.”

Calvino mexia nas fábulas que recolhia. Borges fazia traduções pouco ortodoxas. A gente às vezes recolhe alguma coisa de outra cultura, alguma coisa que aos olhos da gente é preciosa, e que a gente admira mesmo sendo da cultura deles, e quando depois de passado o tornado a gente vai e entrega para eles o que salvou, eles dizem: “Não, isso aqui é cinza-de-cigarro-da-semana-passada, o que era realmente importante para nós era aquele outro negócio” – e aí fala alguma coisa a que você nunca deu a menor atenção. Preservar tesouros alheios é como traduzir, sem conhecer, um tipo de ginga corporal, uma cor, um tom de voz, um espetáculo de linguagens que são invisíveis para quem não as sabe ler.

3918) Kafka hoje (13.9.2015)




(foto: Anna Anjos. Estátua de Kafka em Praga.)


Usa-se muito o termo “kafkeano” (em inglês se diz “kafkaesque”) para qualificar certos elementos literários. Matt Staggs, num artigo recente (aqui: http://tinyurl.com/natdnql) vê influência do autor tcheco em autores como Jeff VanderMeer e Haruki Murakami, e até em cineastas como Terry Gilliam e os irmãos Coen. Kafka deixou sua marca através de um qualificativo, se bem que nem todo mundo o leia da mesma forma.

O que seriam esses elementos kafkeanos? Borges assinalou o mais visível deles no seu ensaio célebre “Kafka e seus precursores”: a descrição de tarefas infinitas, que quanto mais alguém tenta executá-las mais vê multiplicarem-se os empecilhos e os desvios. Essa característica governa os romances “O Processo”, onde Joseph K. é preso e vai de instância em instância descobrindo que nem mesmo seus prendedores sabem o por quê daquilo tudo; e “O Castelo” onde o agrimensor K. procura por todos os meios encontrar-se com as autoridades do castelo e descobre que quanto mais se debate mais afunda.

Os críticos falam muito no caráter “ilógico” das histórias dele, mas igualmente importante é o fato de que essa falta de lógica é racionalizada o tempo inteiro. Seja um narrador onisciente, seja um protagonista na 3ª. pessoa, há sempre alguém tecendo um bordado interminável de indagações e de razões para que tudo seja do jeito que é. As novelas de Kafka descrevem e explicam, descrevem e  explicam o tempo inteiro; e quanto mais o fazem menos sentido faz o que vemos e entendemos. Seus personagens se envolvem em longas discussões que não movem uma palha. É um mundo ilógico cujas superfícies visíveis são revestidas de retórica.

Há outro aspecto que depende muito da tradução, mas acho que mesmo assim dá para avaliar. O vocabulário de Kafka é um vocabulário plano, sem palavras raras, sem imagens extraordinárias. Uma prosa quase burocrática, onde o único rasgo “literários” parece ser uma tendência ao aforismo, ao provérbio. Num sismógrafo verbal, sua prosa fluiria horizontalmente com mínimas oscilações para cima e para baixo. Um autor onde reencontrei isso foi Paul Auster, na Trilogia de Nova York. É uma prosa onde a imaginação conta menos do que a capacidade de verbalizar as camadas periféricas de um assunto sem jamais chegar perto do centro.

Ainda assim, Kafka tem uma imaginação que às vezes nos puxa o tapete sob os pés. Na Colônia Penal, com sua máquina de tatuagem punitiva, é uma das grandes alegorias do nosso tempo, mais ainda do que a Metamorfose de Gregor Samsa. Num certo sentido, é sua melhor história, aquela em que a prosa monocórdia é equilibrada por imagens vívidas como a marca de um ferro em brasa.