segunda-feira, 14 de setembro de 2015

3919) Os irmãos Grimm (15.9.2015)




(Jacob e Wilhelm Grimm, por seu irmão Ludwig)


Até que ponto pode um pesquisador – um tradutor, um antologista, um editor acadêmico – até que ponto qualquer desses servidores do texto pode mexer nos textos de autoria alheia que passam por suas mãos? Uma pessoa conta uma lenda normanda ou bretã que ouviu décadas atrás; dois homens atentos escutam e rabiscam, alternadamente. Depois irão comparar notas e decidirão em comum sobre o uso de regionalismos, de arcaísmos ou formas deterioradas. Assim eram os irmãos Grimm. Um pouco como Leonardo Mota, Sílvio Romero, Mário de Andrade, Câmara Cascudo e qualquer outro que anotou coisas pela vida afora.

Jack Zipes (“Once There Were Two Brothers Named Grimm”) diz que, ao contrário da crença popular, os Grimms não recolheram aquelas histórias visitando camponeses em lugares remotos e escrevendo as histórias que ouviam. Seu método predominante era convidar contadores de histórias à casa onde moravam, e pedir-lhes para contar sua história de viva voz. “Os irmãos já faziam notas durante a primeira audição, ou depois de um par delas.”  Talvez anotassem o mais banal, o que lhes fosse mais familiar, mais previsível, e não percebessem alguma raridade filológica. Talvez percebessem alguns desses efeitos sutis de estilo e de enredo, e caprichassem neles ao fazer o registro com pena e tinta.

Câmara Cascudo, em seu prefácio aos Cantos Populares do Brasil de Sílvio Romero (edição de 1954), diz: “O exemplo de Almeida Garrett e de José de Alencar, que fundira cinco variantes legítimas do ‘Rabicho da Geralda’ agenciando uma versão artificial, não o tentou. Quando só lhe era possível conseguir um trecho apenas, limitava-se a publicá-lo como o recebera. Nos Contos manteve a cor local, os modismos ficaram, a construção sintática curiosa, as modificações mínimas que denunciam o espírito popular, são elementos probantes da honestidade do antologista. Ainda hoje essa renúncia à sugestiva colaboração, ao arranjo irresistível, é ato difícil.”

Calvino mexia nas fábulas que recolhia. Borges fazia traduções pouco ortodoxas. A gente às vezes recolhe alguma coisa de outra cultura, alguma coisa que aos olhos da gente é preciosa, e que a gente admira mesmo sendo da cultura deles, e quando depois de passado o tornado a gente vai e entrega para eles o que salvou, eles dizem: “Não, isso aqui é cinza-de-cigarro-da-semana-passada, o que era realmente importante para nós era aquele outro negócio” – e aí fala alguma coisa a que você nunca deu a menor atenção. Preservar tesouros alheios é como traduzir, sem conhecer, um tipo de ginga corporal, uma cor, um tom de voz, um espetáculo de linguagens que são invisíveis para quem não as sabe ler.

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