sábado, 19 de setembro de 2015

3924) Traduzir em verso (20.9.2015)



Traduzir um romance é pesado, mas às vezes é mais fácil do que traduzir um poema de duas páginas. O que mais influi na tradução não é a mera quantidade de palavras, é a quantidade de regras ou de convenções que o original explora e que a tradução precisa seguir também. Suponhamos uma forma poética bem simples e conhecida: o soneto. Número fixo de linhas, número tradicional de sílabas por linha (dez, doze), questões de prosódia, de acentuação, de ritmo, de desenho melódico da frase. Tudo isso sem falar no lado significante do verso: aquilo que ele diz, seu chamado conteúdo manifesto.

Não é conteúdo, é forma também. O fato de ser um soneto sobre um vagalume ou um haicai sobre uma rã estão embutidos na forma, fazem parte imagística daquilo, tanto quanto os sons de que o poema é feito. É interessante que a maioria dos leitores percebe em primeiríssimo lugar o chamado “conteúdo” e só em alguns casos atenta para os efeitos sonoros, que o tradutor tanto se esforçou para emular.

Rima, métrica, cadência, variação sonora, conteúdo, algo vai ter que escapar por entre os dedos do tradutor na hora de compor um equivalente. Eu acho quixotescas, por exemplo, as tentativas de traduzir um poema em inglês usando em português a mesma contagem de sílabas do original. Algumas línguas são de tendência monossilábica, outras não. Inglês e português são línguas de cadência e percussão opostas. O inglês é stacatto, cada nota é uma palavra, o português é distributivo. Uma palavra inglesa é um anel, uma portuguesa é um colar de sílabas. 

Veja-se essa beleza de verso de Shakespeare (King John): “So foul a sky clears not without a storm”. “Um céu tão carregado não fica limpo sem uma tempestade”. A imagem é bonita sem ser original. O que lhe dá força é a cadência em inglês, implacável, dez sílabas, nove palavras, apenas uma palavra de duas sílabas (“without”). Como reproduzir essa cadência em português? Não há monossílabos adequados para dizer essa idéia e manter essa percussão rítmica. Como dizem certos jogadores de futebol: “Fica complicado”.

Um verso de 8 ou 6 sílabas (tão comuns no inglês quanto o setissílabo entre nós) pode ser traduzido em português com 10 ou 12 sílabas. Ficar preso à dimensão do original é heróico, é admirável, mas muitas vezes (depende: cada poeta, cada poema impõe regras próprias) é desnecessário. Pode-se também produzir uma sensação de staccato ou de reiteração verbal numa linha mais longa. Seria melhor aceitar esse verso mais amplo, e tentar criar um equilíbrio entre o “conteúdo” manifesto do verso e outros efeitos sonoros que ele certamente envolve, além da mera contagem silábica.



Um comentário:

Caio Girão disse...

Ivan Junqueira é um dos maiores tradutores de poesia de nosso tempo. Enquanto esteve vivo traduziu belamente os poemas mais belos. Suas traduções de Baudelaire são magníficas. Ivan Junqueira foi um poeta de mão cheia, suas traduções continham mais suor e mais talento do que muitos poemas originais, tanto que eu acho que ele poderia até considerá-los como co-criações suas.