segunda-feira, 14 de setembro de 2015

3918) Kafka hoje (13.9.2015)




(foto: Anna Anjos. Estátua de Kafka em Praga.)


Usa-se muito o termo “kafkeano” (em inglês se diz “kafkaesque”) para qualificar certos elementos literários. Matt Staggs, num artigo recente (aqui: http://tinyurl.com/natdnql) vê influência do autor tcheco em autores como Jeff VanderMeer e Haruki Murakami, e até em cineastas como Terry Gilliam e os irmãos Coen. Kafka deixou sua marca através de um qualificativo, se bem que nem todo mundo o leia da mesma forma.

O que seriam esses elementos kafkeanos? Borges assinalou o mais visível deles no seu ensaio célebre “Kafka e seus precursores”: a descrição de tarefas infinitas, que quanto mais alguém tenta executá-las mais vê multiplicarem-se os empecilhos e os desvios. Essa característica governa os romances “O Processo”, onde Joseph K. é preso e vai de instância em instância descobrindo que nem mesmo seus prendedores sabem o por quê daquilo tudo; e “O Castelo” onde o agrimensor K. procura por todos os meios encontrar-se com as autoridades do castelo e descobre que quanto mais se debate mais afunda.

Os críticos falam muito no caráter “ilógico” das histórias dele, mas igualmente importante é o fato de que essa falta de lógica é racionalizada o tempo inteiro. Seja um narrador onisciente, seja um protagonista na 3ª. pessoa, há sempre alguém tecendo um bordado interminável de indagações e de razões para que tudo seja do jeito que é. As novelas de Kafka descrevem e explicam, descrevem e  explicam o tempo inteiro; e quanto mais o fazem menos sentido faz o que vemos e entendemos. Seus personagens se envolvem em longas discussões que não movem uma palha. É um mundo ilógico cujas superfícies visíveis são revestidas de retórica.

Há outro aspecto que depende muito da tradução, mas acho que mesmo assim dá para avaliar. O vocabulário de Kafka é um vocabulário plano, sem palavras raras, sem imagens extraordinárias. Uma prosa quase burocrática, onde o único rasgo “literários” parece ser uma tendência ao aforismo, ao provérbio. Num sismógrafo verbal, sua prosa fluiria horizontalmente com mínimas oscilações para cima e para baixo. Um autor onde reencontrei isso foi Paul Auster, na Trilogia de Nova York. É uma prosa onde a imaginação conta menos do que a capacidade de verbalizar as camadas periféricas de um assunto sem jamais chegar perto do centro.

Ainda assim, Kafka tem uma imaginação que às vezes nos puxa o tapete sob os pés. Na Colônia Penal, com sua máquina de tatuagem punitiva, é uma das grandes alegorias do nosso tempo, mais ainda do que a Metamorfose de Gregor Samsa. Num certo sentido, é sua melhor história, aquela em que a prosa monocórdia é equilibrada por imagens vívidas como a marca de um ferro em brasa.




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