quarta-feira, 16 de setembro de 2015

3921) Contação de histórias (17.9.2015)




Algumas histórias orais talvez sejam bobas como histórias, mas serviram para ancorar algumas das melodias mais nostálgicas da nossa tradição popular. O fato de termos hoje informantes e contadores de histórias gravados em áudio e vídeo torna possível preservar não apenas os versos, mas as melodias que surgem em muitos contos populares.

Penso por exemplo na famosa história do estudante que matou sem querer o pavão do professor e foi por este condenado à morte. Uma melodia penosa e carregada de uma tragédia grega ancestral: “Papai de minh’alma, mamãe do meu coração... O mestre faz comigo o que eu fiz com o pavão! O mestre faz comigo o que eu fiz com o pavão.” As modulações de tom, a toada plangente, as repetições tristonhas, tudo carrega a tristeza de quem já se sabe condenado sem remissão.

“Capineiros de meu pai / não me cortem os cabelos...” É a história das meninas mortas (e enterradas pela madrasta), cujos cabelos crescem com o mato e as fazem cantar assim. De quem será essa melodia? De quem será a melodia de outra história de que guardo fragmentos, onde uma criatura ameaçadora diz cantando: “Amarra teu cachorrim, que Bobôca lá vai”.  Bobôca era uma espécie de A Cuca. E a heroína da história era uma menina chamada Bebé, que cantarolava: “Bebé já comeu, Bebé já bebeu, Bebé já deitou, Bebé tá dormindo...”  Parece que o cachorrinho era a proteção mágica dela contra a chegada de Bobôca, que devia ser uma espécie de urso ou de Incrível Hulk. 

Lá pelos trinta anos descobri que algumas músicas, que eu considerava pura tradição oral, eram composições de Braguinha, para os discos coloridos infantis tipo Chapeuzinho Vermelho. “Pela estrada afora eu vou tão sozinha...” Parece folclore. Não por querer parecer, mas porque é feito num espírito semelhante, de criar uma beleza rápida sem muita complicação. A simplicidade longamente polida das soluções musicais e letristas de Braguinha se assemelha à de Capiba em Pernambuco e Caymmi na Bahia.

Os modernos contadores de histórias estão preocupados em produzir leituras novas, mas eu tento olhar no sentido oposto e pergunto: onde e quando surgiu aquela melodia daquele trecho da história? Quem cantarolou pela primeira vez aquelas frases? Uma melodia sem dono, nunca capturada em partitura, pena e tinta. Ninguém a registrou. Talvez exista há mais de cem anos. Às vezes é a música de um personagem, e sobrevive por ele.  Às vezes é um dilema de enredo, em mil variantes. Jack Zipes assinala não somente a “erudição notável” dos irmãos Grimm como também a sua “grande integridade moral”, mas seria interessante checar se além das histórias eles preservaram melodias também.



terça-feira, 15 de setembro de 2015

3920) O mundo é real? (16.9.2015)




(o "girador" de Penny Lane, em Liverpool)


O mundo existe ou é uma ilusão dos nossos olhos? Para mim isso era tema dos romances de FC de Richard-Bessière ou de Philip K. Dick, não era assunto para letra de música. O mundo da música era tão concreto quanto um elétron; e tão consensual quanto o Meridiano de Greenwich. As canções orientais dos Beatles foram as primeiras que tocaram no assunto: “Venha cá, velho, você acha que esse mundo que nós estamos existe mesmo, ou tudo é somente uma ilusão?” 

Pergunta mais profícua não foi feita desde que Arquimedes ou Bertrand Russell questionou o teorema tal ou qual. A vanguarda européia do começo do século 20 já tinha amassado o biscoito da metalinguagem. O questionamento do Real, que por um lado vinha do misticismo do Oriente, e por outro vinha de viagens alucinógenas dos músicos, se misturava a hipóteses de físicos sobre universos múltiplos ou à teoria também chamada de “somos o video-game de Alguém”.

Ian MacDonald, cuja bola vivo a encher merecidamente nesta coluna, tem uma observação interessante sobre “Penny Lane” dos Beatles. (De passagem: ele observa que o piano em staccato dessa faixa agradou tanto nessa gravação, feita entre dezembro de 1966 e janeiro de 67, que os Beatles voltaram a usá-lo com variantes nas gravações subsequentes de “Fixing a Hole”, “Getting Better”, “With a Little Help from my Friends” e “You Mother Should Know”.) Ele cita Lennon garantindo que tudo ali é tirado de memórias visuais dele, tudo é factual. Toda memória é a foto de um reflexo numa nuvem, mas a intenção do poeta foi mesmo a de falar do que havia. O bombeiro, o barbeiro, o cara do banco, as crianças... 

E MacDonald diz, sobre o teor psicodélico da música: “Essa canção é tão subversivamente alucinatória quanto ‘Strawberry Fields’. Apesar da aparente inocência, há em toda a produção dos Beatles poucas frases tão impregnadas de LSD do que o verso (numa rajada fremente de vozes ornamentais) em que a Enfermeira ‘feels as if she’s in a play’... and ‘is, anyway’”. 

A Enfermeira tem aquele insaite instantâneo de que tudo que vê em torno (e que a música descreve) não é “real”: ela está mesmo é numa peça, numa encenação, numa montagem. “E afinal é mesmo”, diz o narrador onisciente da canção.  Ela está numa canção dos Beatles... e de repente percebe que não existe. Como aquele personagem eletrônico em Simulacron-3 de Galouye, que vem a saber que é apenas um carinha-de-game, mas para ser nosso interlocutor naquele mundo ele precisa saber que em certa medida ele não é real. Tremenda crise existencial pro personagem a quem isso acontece. Mais tranquilo ficar com Mario Quintana: “Pra que pensar? Também sou da paisagem”.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

3919) Os irmãos Grimm (15.9.2015)




(Jacob e Wilhelm Grimm, por seu irmão Ludwig)


Até que ponto pode um pesquisador – um tradutor, um antologista, um editor acadêmico – até que ponto qualquer desses servidores do texto pode mexer nos textos de autoria alheia que passam por suas mãos? Uma pessoa conta uma lenda normanda ou bretã que ouviu décadas atrás; dois homens atentos escutam e rabiscam, alternadamente. Depois irão comparar notas e decidirão em comum sobre o uso de regionalismos, de arcaísmos ou formas deterioradas. Assim eram os irmãos Grimm. Um pouco como Leonardo Mota, Sílvio Romero, Mário de Andrade, Câmara Cascudo e qualquer outro que anotou coisas pela vida afora.

Jack Zipes (“Once There Were Two Brothers Named Grimm”) diz que, ao contrário da crença popular, os Grimms não recolheram aquelas histórias visitando camponeses em lugares remotos e escrevendo as histórias que ouviam. Seu método predominante era convidar contadores de histórias à casa onde moravam, e pedir-lhes para contar sua história de viva voz. “Os irmãos já faziam notas durante a primeira audição, ou depois de um par delas.”  Talvez anotassem o mais banal, o que lhes fosse mais familiar, mais previsível, e não percebessem alguma raridade filológica. Talvez percebessem alguns desses efeitos sutis de estilo e de enredo, e caprichassem neles ao fazer o registro com pena e tinta.

Câmara Cascudo, em seu prefácio aos Cantos Populares do Brasil de Sílvio Romero (edição de 1954), diz: “O exemplo de Almeida Garrett e de José de Alencar, que fundira cinco variantes legítimas do ‘Rabicho da Geralda’ agenciando uma versão artificial, não o tentou. Quando só lhe era possível conseguir um trecho apenas, limitava-se a publicá-lo como o recebera. Nos Contos manteve a cor local, os modismos ficaram, a construção sintática curiosa, as modificações mínimas que denunciam o espírito popular, são elementos probantes da honestidade do antologista. Ainda hoje essa renúncia à sugestiva colaboração, ao arranjo irresistível, é ato difícil.”

Calvino mexia nas fábulas que recolhia. Borges fazia traduções pouco ortodoxas. A gente às vezes recolhe alguma coisa de outra cultura, alguma coisa que aos olhos da gente é preciosa, e que a gente admira mesmo sendo da cultura deles, e quando depois de passado o tornado a gente vai e entrega para eles o que salvou, eles dizem: “Não, isso aqui é cinza-de-cigarro-da-semana-passada, o que era realmente importante para nós era aquele outro negócio” – e aí fala alguma coisa a que você nunca deu a menor atenção. Preservar tesouros alheios é como traduzir, sem conhecer, um tipo de ginga corporal, uma cor, um tom de voz, um espetáculo de linguagens que são invisíveis para quem não as sabe ler.

3918) Kafka hoje (13.9.2015)




(foto: Anna Anjos. Estátua de Kafka em Praga.)


Usa-se muito o termo “kafkeano” (em inglês se diz “kafkaesque”) para qualificar certos elementos literários. Matt Staggs, num artigo recente (aqui: http://tinyurl.com/natdnql) vê influência do autor tcheco em autores como Jeff VanderMeer e Haruki Murakami, e até em cineastas como Terry Gilliam e os irmãos Coen. Kafka deixou sua marca através de um qualificativo, se bem que nem todo mundo o leia da mesma forma.

O que seriam esses elementos kafkeanos? Borges assinalou o mais visível deles no seu ensaio célebre “Kafka e seus precursores”: a descrição de tarefas infinitas, que quanto mais alguém tenta executá-las mais vê multiplicarem-se os empecilhos e os desvios. Essa característica governa os romances “O Processo”, onde Joseph K. é preso e vai de instância em instância descobrindo que nem mesmo seus prendedores sabem o por quê daquilo tudo; e “O Castelo” onde o agrimensor K. procura por todos os meios encontrar-se com as autoridades do castelo e descobre que quanto mais se debate mais afunda.

Os críticos falam muito no caráter “ilógico” das histórias dele, mas igualmente importante é o fato de que essa falta de lógica é racionalizada o tempo inteiro. Seja um narrador onisciente, seja um protagonista na 3ª. pessoa, há sempre alguém tecendo um bordado interminável de indagações e de razões para que tudo seja do jeito que é. As novelas de Kafka descrevem e explicam, descrevem e  explicam o tempo inteiro; e quanto mais o fazem menos sentido faz o que vemos e entendemos. Seus personagens se envolvem em longas discussões que não movem uma palha. É um mundo ilógico cujas superfícies visíveis são revestidas de retórica.

Há outro aspecto que depende muito da tradução, mas acho que mesmo assim dá para avaliar. O vocabulário de Kafka é um vocabulário plano, sem palavras raras, sem imagens extraordinárias. Uma prosa quase burocrática, onde o único rasgo “literários” parece ser uma tendência ao aforismo, ao provérbio. Num sismógrafo verbal, sua prosa fluiria horizontalmente com mínimas oscilações para cima e para baixo. Um autor onde reencontrei isso foi Paul Auster, na Trilogia de Nova York. É uma prosa onde a imaginação conta menos do que a capacidade de verbalizar as camadas periféricas de um assunto sem jamais chegar perto do centro.

Ainda assim, Kafka tem uma imaginação que às vezes nos puxa o tapete sob os pés. Na Colônia Penal, com sua máquina de tatuagem punitiva, é uma das grandes alegorias do nosso tempo, mais ainda do que a Metamorfose de Gregor Samsa. Num certo sentido, é sua melhor história, aquela em que a prosa monocórdia é equilibrada por imagens vívidas como a marca de um ferro em brasa.




domingo, 13 de setembro de 2015

3917) Um nome na música (12.9.2015)




Zuza Homem de Melo e Jairo Severiano comentam (A Canção no Tempo, Ed. 34, 1998) que certa vez o compositor Pedro Caetano foi abordado numa festa por uma moça que pediu: “Faça uma música pra mim!”. Ele descobriu que ela se chamava Maria Madalena de Assunção Pereira, e achou que o nome tinha uma cadência favorável. O resultado foi uma canção que dizia: “Maria Madalena de Assunção Pereira / teu beijo tem aroma de botões de laranjeira...”

Tudo muito bom, tudo muito bem, mas estava-se nos anos 1940, em pleno Estado Novo. O mundo estava em guerra, a ditadura de Vargas começava a balançar, mas quando Ciro Monteiro começou a cantar a música nos programas de rádio surgiu o problema: “A censura proibia nomes próprios por extenso em letras de música, alegando que isso afetava a privacidade das pessoas”. E olha que o pedido da música partiu da própria moça! A solução, antes que a canção fosse gravada, foi trocar o nome da moça pelo que foi gravado e ficou famoso: “Maria Madalena dos Anzóis Pereira”.

Políticos são muito citados na MPB, e o recorde deve pertencer a Getúlio e JK. Nomes de gente de verdade aparecem aqui e acolá, mas sempre na forma incompleta: “Domingo lá na casa do Vavá / teve um tremendo pagode que você não pode imaginar... / Provei do famoso feijão da Vicentina...” (Paulinho da Viola); “Ô Antonico, vim lhe pedir um favor que só depende da sua boa vontade / é necessário uma viração pro Nestor...” (Ismael Silva); “Marcolino dava tudo por um cheiro de Xandu” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira).

Uma exceção é a “Festa da Arromba” gravada por Erasmo Carlos, onde se nomeia praticamente toda a Jovem Guarda da época. (Acho que o problema de privacidade a essa altura já tinha ido pro espaço.) E o exemplo mais notório da MPB é o da “Língua”, de Caetano Veloso, onde ele homenageia pessoas com nomes fora do comum: “Scarlet Moon de Chevalier / Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé!”. Dos três, apenas o de Glauco é pseudônimo, mas como se trata do nome público usado pelo poeta maldito do Jornal Dobrabil, vale a mesma questão: isso interfere na privacidade da pessoa?

Governos controladores querem legislar sobre os mínimos detalhes da vida pessoal de quem quer que seja, e se pudessem promulgariam um Código Penal personalizado para cada cidadão. Dizem que o maior perigo numa ditadura não é o ditador, é o guarda da esquina, ou o legislador de aluguel. São todos os funcionariozinhos intermediários que, representando o ditador, acham-se meio ditadores também, e a verdade é que é muito difícil desfazer os malfeitos dessa turma. Só o ditador teria autoridade, e o homem é muito ocupado. O problema nunca chega nele.



quinta-feira, 10 de setembro de 2015

3916) Trilogia "Comando Sul" (11.9.2015)




A trilogia Southern Reach (“Comando Sul”) de Jeff VanderMeer, série de FC que já ganhou alguns prêmios nos EUA, é formada pelos romances Aniquilação, Autoridade e AceitaçãoDo autor eu já tinha lido vários contos de suas coletâneas Secret Lives (2006) e City of Angels and Madmen (2001).  Gosto de sua prosa exuberante, às vezes difícil de traduzir porque ele se projeta na descrição de cenas fantásticas para as quais não temos referenciais. O leitor precisa ler como se tivesse duzentos olhos (alguns dos seus personagens têm).

A visão futurista de VanderMeer é radicalmente biológica, zoológica, botânica, ecossistêmica. Na trilogia não passa nem sombra de espaçonaves, astronautas, robôs; e mesmo quando nos vemos diante de transições bruscas para pontos remotos do universo, isso se dá mediante uma tecnologia alienígena que (para lembrar a frase de Arthur C. Clarke) é tão avançada que não se pode distinguir da mágica.

Num ponto da Costa Leste dos EUA uma região costeira, a “Área X”, vê-se isolada do resto do mundo por uma barreira invisível. O Comando Sul é a agência encarregada de preparar expedições para penetrar nessa área, onde há dois pontos de referência principais: um farol e uma torre simétrica a ele, que penetra de chão adentro. Nas paredes dessa torre, uma criatura, o Rastejador, está escrevendo versículos em tom bíblico, usando uma substância orgânica como um lodo.

VanderMeer faz vagas menções ao país e ao mundo em volta, tudo acontece entre as cidadezinhas em torno, o prédio do Comando Sul e a Área X. Sabemos apenas que aquela investigação se arrasta há trinta anos, e que o mundo lá fora está convulsionado por uma crise ambiental e pelo terrorismo. Há raríssimas e vagas menções a jornais, TV, comunicações com o resto do país. É como se só existisse aquele trecho da Costa Leste, protegido por uma redoma.

Isso contribui para o aspecto kafkeano da trilogia, ou tarkovskyano, porque alguns traços essenciais da narrativa evocam os filmes de FC do diretor russo (Solaris, Stalker). É uma história de invasão biológica em que o invasor é uma força desconhecida formatando o mundo à sua maneira, uma maneira que preserva a natureza mas só permite a presença humana de modo muito limitado. É uma obra que preserva grande parte do seu mistério ao fim da leitura; VanderMeer não é do tipo que sai amarrando cada detalhezinho, cada ponta solta. Mas ele consegue projetar aquela sensação de “alienness”, da estrangeiridade de tudo que vem de outro ponto do universo. Como em certas criações memoráveis de Arthur C. Clarke ou Stanislaw Lem, nunca entenderemos quem vem Lá De Fora.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

3915) Na descida do morro (10.9.2015)




(foto: Robson Fernandjes)


“Eu estava numa favela do Rio, era como se fosse o Morro do Alemão. Tinham me levado para lá por algum motivo e o carro tinha ido embora. Era um terreno baldio cheio de mato e havia um cadáver ali pertinho. Havia um grupo de bandidos, mas o clima não era hostil, eles sabiam quem eu era e que tinha ido lá fazer algo com autorização; na verdade nem estavam me dando muita atenção. Eu dizia que queria voltar para a cidade. Eles me levavam para uma casa onde havia um casal idoso e outras pessoas, e me diziam para esperar ali. O tempo passava. Mesmo sem me sentir diretamente ameaçado eu queria cair fora dali o quanto antes. Pedia que fossem comigo até a entrada da favela, mas eles diziam não ter tempo: “Não tem problema. Vai lá, aqui é tranquilo”, mas eu dizia: “Eu preferiria caminhar aqui dentro com algum de vocês, e não sozinho”. Havia uma tensão permanente. Eu temia um tiroteio, porque as paredes de tijolo eram muito finas.

“Depois eu vinha andando noutro ponto da favela, uma espécie de feira nordestina cheia de barracas. Eu vinha por entre as barracas, que vendiam pratos-feitos, tapioca feita na hora, etc. A certa altura eu avistava uma saída para fora da favela, mas as barracas eram tão juntas que eu não conseguia passar entre elas. As barracas eram mantidas por pessoas aleijadas, cada uma com um defeito físico diferente. Por fim eu conseguia me esgueirar entre duas barracas, quase derrubando as panelas e utensílios das pessoas, e me aproximava de uma grande porta; só então eu percebia que aquilo, a tal da feira, não era ao ar livre, era uma espécie de grande salão dentro de um prédio, com centenas de metros quadrados, e as barracas estavam todas dentro dele.

“A porta da rua estava fechada, era uma porta imensa de madeira escura tipo mogno, cheia de entalhes, porta de casa antiga. Eu ficava aliviado em ver que depois de muitas horas eu ia conseguir sair dali. Eu via que ela estava destrancada, e me bastava girar a maçaneta e sair. Eu o fazia, cruzava a porta e a fechava atrás de mim, mas percebia então que aquela porta dava para uma rua enladeirada que ia subindo à minha frente. A rua era uma ladeira estreita que desembocava exatamente naquela porta, e nela havia uma fila enorme de carros, camburões e caminhões da polícia e do exército, estacionados, cheios de soldados armados, à espera. Em alguns carros os soldados dormiam de boca aberta, roncando, como quem está ali há um tempão, somente aguardando um sinal; e no rádio de todos os carros tocava bem alto a mesma música, uma música instrumental meio metaleira, pesada, ameaçadora. Eu começava a subir a ladeira, passando ao longo dos carros.”



3914) Roland Barthes (9.9.2015)




Talvez os centenários de Lourival Batista e de Rosil Cavalcanti tenham me distraído, porque só agora fiquei sabendo que estamos comemorando também os cem anos de nascimento de Roland Barthes (1915-1980), um dos nomes mais importantes nos estudos da teoria literária e da linguagem. Barthes foi aquele típico intelectual parisiense no que essa estirpe tem de melhor, exibindo erudição, refinamento, cosmopolitismo, atenção à vida prática, elegância na exposição das idéias e uma capacidade assustadora de ver as coisas pelo lado de fora. Ler os textos dele era como estar num desenho animado de Escher ou de Steinberg, onde pensamos: “Ah, sim isto é o mundo, e aquilo lá adiante é um quadro” e de repente percebemos que em volta do “mundo” existe uma moldura mostrando que ele é um quadro também. E de recuo em recuo vamos nos afastando dos “quadros”, à procura de um ponto de vista inacessivelmente externo e objetivo, sem conseguir. O mundo é uma sucessão de quadros em-abismo, diminuindo diante dos nossos olhos e ao mesmo tempo alargando-se às nossas costas. Não é que o mundo não exista; ele existe, mas é feito dessas caixas de linguagem infinitamente guardadas umas dentro das outras.

Leitores de Barthes hão de me crucificar por simplorizações deste tipo, mas paciência. Sempre que tentei penetrar no labirinto da semiótica dei com a cara em portas para as quais nunca tive a senha. As únicas portas estilisticamente abertas e convidativas eram as do italiano Umberto Eco e do francês Barthes, que viraram minhas referências de leigo sempre que procuro refletir a respeito dos reflexos das reflexões alheias sobre os espelhos da literatura e da linguagem. Barthes deve ter sido um professor fascinante para seus alunos do Collège de France e outras instituições. Sempre o imaginei tendo algo de meu mestre Jomard Muniz de Britto e de explicadores mesmerizantes como Paulo Emílio Salles Gomes ou José Miguel Wisnik.

A Bibliothèque Nationale de France abriu uma grande exposição em sua homenagem (ver aqui: http://tinyurl.com/nm2msgx). Um lembrete para que a gente retorne a sua obra, sempre inventiva. Dele, li apenas três livros: Mitologias (1957), sua primeira coletânea de artigos sobre literatura, moda, arte, educação e outros temas, sempre numa linguagem acessível, e de grande impacto na época; A Câmara Clara (1981), reflexões sobre a fotografia analisada por um sistema de signos muito pessoal, e sempre com alguma coisa nova para dizer; e Fragmentos do Discurso Amoroso (1977), anotações sobre o que acontece na mente de uma pessoa apaixonada, e talvez o único livro inteligente já escrito sobre este tema.



segunda-feira, 7 de setembro de 2015

3913) Bola de gude (8.9.2015)




Na época em que joguei bola de gude (mais ou menos entre 1958 e 1965) a variante que se usava em nossa rua era assim: primeiro criavam-se os buracos na terra, rodando com força o calcanhar até produzir buracos hemisféricos com alguns centímetros de fundura, e depois espalhando a terra em volta, para aplainar. Eram três buracos formando um triângulo equilátero calculado no olhômetro, a cerca de um metro e meio de distância. O jogador tinha como objetivo colocar sua bola nos três buracos, sucessivamente, e ao mesmo tempo afastar as bolas dos outros jogadores. Para determinar a ordem de jogada, cada um atirava, da mesma distância, sua bola na direção de um dos buracos; quem colocasse a bola mais perto jogava primeiro.

Nas jogadas propriamente ditas a bola ficava apoiada no indicador curvado, e era atirada pra frente com a unha do polegar, pressionado contra o outro dedo até escapar de repente, arremessando longe a bolinha. (Também chamada “bila” por nossos vizinhos cearenses.) Quando se acertava dentro do primeiro buraco passava-se aos demais, sempre numa mesma ordem, até errar, cedendo então a vez ao próximo. Depois que a gente acertava o primeiro buraco, tinha o direito de alvejar as bolas dos adversários, atirando-as para longe. Quando a gente completava os 3 buracos tornava-se “mata” (=matador): ao acertar a bola de um adversário ela era retirada do jogo. (Nos jogos “na vera”, de-verdade, o cara ganhava a bola para si; nas partidas “na brinca”, a bola e o adversário apenas saíam do jogo.)

Quando nossa bola parava muito próxima de outra era possível dar a famosa “estica”, uma colisão violenta que jogava a outra bem longe. Havia também a “tranfa” (=transferência): se um acidente do terreno atrapalhava o “tiro” do jogador, ele media com o palmo um arco de círculo na areia (tendo a bola-alvo como centro) e movia sua bola para outro ponto desse arco, mantendo a mesma distância em relação à bola-alvo, enquanto dizia: “Peço tranfa!”  Quando havia algum pedregulho ou folha seca no meio, dizia-se: “Peço limpo!”  A palavra “tranfa” também sofria outra corruptela, sendo substituída por “Peço trança!”.

Enquanto o jogador não se tornava “mata”, era chamado “feda” (=fedorento); podia ser morto mas não podia matar as bolas dos demais. Isso deu origem à expressão “combinação contra o feda”: qualquer complô entre pessoas experientes para enganar ou explorar um sujeito ingênuo, novato, despreparado.  “Meu primo tentou conseguir um emprego lá, mas houve uma combinação contra o feda, e deram a vaga a um amigo do gerente.” Ganhava o jogo quem conseguia “matar” as bolas de todos os concorrentes.

sábado, 5 de setembro de 2015

3912) 7 Ovnis (6.9.2015)




Heng Sin-Yu, 33 anos, Macau, estava trabalhando à noite no seu apartamento e foi à janela fumar um cigarro quando viu cruzando o céu um ponto de luz vermelha que deixava atrás de si um rastro de fagulhas amareladas, e a única coisa que lhe veio à mente foi que alguém no firmamento estava fumando também.

Terzio Pastore, 61 anos, Ravena, passou mais de dez anos frequentando uma colina próxima à fazenda onde vivia, colina esta que se dizia ser frequentada por extraterrestres, e a única coisa estranha que viu em todo esse tempo foi uma gigantesca forma metálica quadrada, maior que a colina, elevando-se ao céu por trás dela, mas como não correspondia à forma de um disco ele decidiu não levar em consideração, e nada publicou.

Camille Nguyen, 62 anos, Pnom Penh, descreveu à imprensa local o artefato que pousou no arrozal perto de sua casa como “uma fila de contêiners de navio enganchados como uma correntinha de clipes e girando em volta de um globo-da-morte com mais de mil motocicletas dentro e uma abertura por onde saíam nuvens com asas e patas”, e a imprensa agradeceu e foi embora.

Paulo César Tostes, 41 anos, Natal, vinha dirigindo à noite pela estrada que leva a Mossoró quando viu uma banda inteira do céu se esverdear, e erguer-se ali uma semi-esfera verde-limão que ficou suspensa no ar e depois voltou a descer, escondendo-se atrás do horizonte. Nessa mesma noite ele deixou de beber.

Laura Rimanelli, 38 anos, Firenze, viu de madrugada uma estrela muito branca no céu, imóvel, tão imóvel que horas depois o céu inteiro tinha girado e ela continuava ali, como se estivesse vigiando, fotografando algo, e como Laura vestia apenas uma camisolinha bem fininha e transparente achou melhor recolher-se para longe da curiosidade erótica dos marcianos, portanto voltou ao quarto e acordou o marido para os folguedos noturnos.

Baldomiro de Sousa Dias, 55 anos, Campina Grande, estava certa noite olhando as águas do Açude Velho da janela do seu 15O andar quando viu uma formação em forma de V com mais de vinte naves passando silenciosamente, piscando em cores variadas, mas quando ergueu os olhos para o céu não viu nada, o que o fez pensar no conceito de “objetos submarinos não identificados”.

Sarah Rosten, 22 anos, Roterdam, estava comprando um sorvete no parque quando avistou um brilho avermelhado no céu azul, de onde desceu um facho de luz que a abduziu, levou-a para o planeta Zadykstra, onde ela se tornou embaixatriz da Terra, casou com o príncipe herdeiro, governou num palácio de cristal e ônix, morreu aos 97 anos aclamada pelos descamisados locais, recebeu o troco e o sorvete e voltou para casa pensativa.