domingo, 19 de outubro de 2014

3633) "A dançarina e o coronel" (17.10.2014)



A Guerra de Princesa é um dos grandes episódios épicos da história da Paraíba.  Em 1930 o município de Princesa Isabel desafiou o governo do Estado, chefiado por João Pessoa, o qual tentava (muito compreensivelmente, do ponto de vista administrativo) evitar que o algodão paraibano fosse remetido direto para o porto do Recife, sem pagar impostos na Paraíba. A velha animosidade entre os coronéis sertanejos e os burocratas do governo precisou apenas dessa fagulha para pegar fogo.



Princesa pegou em armas, declarando-se “Território Independente”, com hino, bandeira, o escambau. e foi atacada pelas tropas do governo. Em julho daquele ano, o assassinato de João Pessoa pelo líder sertanejo João Dantas, por motivos mais pessoais do que políticos, espalhou a guerra pelo resto do Brasil.  O conflito ganhou outra proporção, os sertanejos entregaram as armas e Getúlio Vargas virou ditador.



Não conheço muitos romances sobre a Guerra de Princesa. Dois deles, contudo, são de Aldo Lopes de Araújo: O dia dos cachorros (Recife: Bagaço, 2005), uma reconstituição fantasiosa e desbocada da campanha, e agora A dançarina e o coronel (Bagaço, 2014) que é focado no mesmo tempo e espaço, mas com uma narrativa muito diferente.  Desta vez, o centro do romance é a chegada de um circo à cidade (que no livro recebe o nome de “Perdição”) e uma porção de fatos inusitados que acontecem.  A guerra é lá fora, vemos os jovens que partem armados, alguns que voltam mortos na carroceria de um caminhão, mas o foco da história é nos personagens presos no interior da cidade cercada. 



Num clima meio O Circo do Dr. Lao de Charles G. Finney (o romance fantástico arquetípico do tema “Circo Chegou na Cidade”), vemos a história do rapaz que faz uma corda apontar para o ar, sobe por ela e desaparece; o avião rebocado por carro de boi; o bebê que passa 40 anos no ventre da mãe; um desfilar de criaturas e situações que ora lembram Garcia Márquez, ora as histórias que minha avó contava a minha mãe muito antes de Garcia Márquez saber o beabá.


O Dia dos Cachorros era um “roman à clef” onde era possível identificar os vultos históricos por trás dos nomes dados pelo autor. A dançarina e o coronel, se usa esse artifício, é em função de pessoas locais que um leitor de fora não tem como reconhecer, nem precisa.  A história se arma como fabulação, cuja verossimilhança é robustecida não pelos paralelos com a História, mas pela sua simetria com os mitos, as lendas, as histórias que todos nós ouvimos na Paraíba e eram todas tão óbvias que antes de Aldo Lopes ninguém achou que valia a pena transformá-las em literatura.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

3632) 5 suspeitas (16.10.2014)




George Alírio de Souza, 38 anos, técnico em eletrônica, casado, três filhos, morador de Goiânia, preocupado há meses com rachaduras que apareceram no prédio, na própria coluna 3 onde ele mora, oitavo andar, e moradores antigos lembram que aquilo não foi bem aterrado, mas o porteiro acha normal, e a sub-síndica garantiu que não há o que se preocupar, todos os prédios do conjunto habitacional apresentam essas correções estruturais de vez em quando e o fato é que até hoje não caiu nenhum.



Sunlya Aranahdi, 21 anos,  estudante, síria, moradora em Damasco, filha única de um casal que não pode nunca suspeitar do que fizeram ela e seu primo Akhazim, numa noite de loucura e lua cheia, junto à sebe que margeia o rio, ele garantindo-lhe que tomara as precauções, que ela não imaginava quais fossem, mas agora passou-se um mês, passaram-se dois, não veio, e Akhazim a evitou na festa de aniversário do seu avô, como se soubesse, como se tivesse já a confirmação do que para ela era apenas uma inquietante e inédita suspeita.



Lúcio Armendáriz Colón, 33 anos, soldador numa fábrica, em Bilbao, tentou filiar-se ao Partido Socialista Operário daquela cidade, e se defrontou com a mais impenetrável burocracia, exigências descabidas, prazos extenuantes, a tal ponto que, de tanto ir à sede do partido, de tanto circular pelos corredores com o protocolo nas mãos, ele notou a roupa, os óculos, os carros dos membros do Partido, e passou a suspeitar que aqueles intelectuais de classe média gostavam de operários o bastante para fundar um partido em sua defesa, mas não o suficiente para permitir que um operário de verdade viesse furar os balõezinhos das suas certezas.



Matilda Canteros, 35 anos, partner de mágico de salão, em Cuiabá, 16 anos de palco e manhas e catimbas, auto-empresariada, malandra mor, quatro noites por semana cumpre seu papel e executa suas manobras, mas depois não dorme, aterrada, porque não faz idéia de como seu novo patrão produz aquelas transformações impossíveis, porque nem ela sabe, e não há pistas, nem mesmo nos bastidores, e ela já começou a pensar que a idade a está tornando meio paranormal.


Zlatan Bavimovic, 45 anos, astrônomo amador, funcionário público, solteirão, morador de Dubrovnik, tem bebido todas nos últimos três anos, preocupando os vizinhos, com quem mantém boa convivência, por seu temperamento alegre e participativo, mas de três anos para cá vive a se queixar de cálculos que não batem, imagens que somem, descontinuidades inexplicáveis na medição do universo pelos instrumentos, e há momentos em que ou os instrumentos estão errados, o que é impossível, ou o Universo é irreal.





quarta-feira, 15 de outubro de 2014

3631) A Vida e os Tempos de Carpente Dias (15.10.2014)





Cap. 1 – De como Carpente tinha esse nome porque o pai gostava de um cineasta e a mãe de uma banda.  

Cap. 2 – De como ele foi filho único de mulher largada do marido (o qual subiu ao céu numa carruagem de fogo, ou algo igualmente definitivo, quando Carpente tinha apenas três anos), encostada na mãe doente, sofrendo com o atraso no pagamento da pensão, e mesmo assim o pirralho teve uma das infâncias mais felizes já registradas no Medidor Celestial do bairro do Catete.  

Cap. 3 – De como anos depois a vida, essa eterna caixinha de surpresas, pôs Carpente na escadaria do prédio da Receita, na Esplanada do Castelo, no momento em que uma moça escorregou no chão da tarde chuvosa, e foi coreograficamente colhida pelos braços dele, e salva de rolar escadaria abaixo, e houve um cambaleio, um roçar de superfícies, um agradecimento balbuciado antes da fuga, antes que ele tivesse tido a chance de dizer algo como “puxa, você ia se estabacar toda lá embaixo”, ou equivalente; portanto, melhor assim. 


Cap. 4 – De como o mero perfume que ficou nas roupas de Carpente lhe explicou com eloquência, na longa noite daquela tarde, que era debalde, pois uma mulher com aquele cheiro não ia querer saber de um cara com aquela barriga.  

Cap. 5 – De como Carpente jogou-se com tal fúria à bicicleta ergométrica que um mês depois sobreveio-lhe um piripaque alerta-alfa, houve um fade-out, e os médicos o beijaram no rosto ao dar-lhe alta um mês depois, diziam que ele tinha ganho a Mega-Sena da loteria médica, e Carpente, sempre cético, achando aquilo corporativismo e auto-promoção, pois a saúde estava cem por cento, muito obrigado.



Cap. 6 – De como mal retornou ao Catete a mãe de Carpente mandou-o sentar na poltrona e prestar atenção porque o assunto era sério, e na mente do nosso herói a alegria de estar de volta não a sua casa, mas ao seu quarto, era indizível, e ele pouco ligou para a revelação, por parte da mãe, dos remédios que Carpente teria que continuar tomando, das coisas que estava proibido de fazer, das comidas que não poderia mais nem chegar perto.


Cap. 7 – De como isso pareceu a Carpente pior do que o hospital, de modo que na primeira chance ele exibiu o certificado de alistamento numa Força de Paz de civis, coordenada por uma ONG de um amigo que ele tinha no Largo dos Leões.  

Cap. 8 – De como a mãe predisse-lhe todos os infortúnios e depois rogou-lhe todas as pragas, mas Carpente, por força desse estratagema, está até hoje circulando entre o Afeganistão, o Iraque e a Síria, viajando com tudo pago, ganhando uma nota preta por ter aprendido a ligar uma bomba à ignição de um carro em trinta segundos.


terça-feira, 14 de outubro de 2014

3630) Palavras criadas (14.10.2014)





Às vezes escrevo uma bobagem qualquer aqui e alguém vem me perguntar se eu tive a “pretensão” de inventar uma palavra que não existe (“websaite” é o caso mais recorrente.)  Como se inventar palavras fosse proibido.  Como se isso fosse algum tipo de extemporismo que somente um verbador crachado tivesse jurisdicção para concomitar.



Quem inventou as palavras que usamos hoje?  Minha aposta: não foi nenhum linguista, nenhum diplomado, nenhum peagadê.  Foram grupos inteiros de pessoas que bateram as palavras antigas no pilão e as transformaram, distorceram, recombinaram, fracionaram, derivaram de formas inesperadas, mas acharam bom, ficaram usando.  E a palavra nova foi entendida, aceita, assimilada, e ficou.  É, hoje, uma dessas palavras velhas que estamos usando.



Qualquer um pode inventar, não sou só eu.  A lista A Word A Day, que recebo diariamente, trouxe a contribuição do leitor Ezra Wegbreit. O assunto da semana era o uso de radicais, prefixos e sufixos: fissi-, tele-, xero-, dactylo-, pluto-, -parous, -logy, -philous, -scopy, -mania.  Todos frequentes em português (não darei o sentido de cada uma por falta de espaço).  Wegbreit (que mora em Massachusetts) recombinou essas peças-de-Lego propondo palavras novas, que mostro agora em tradução direta.



“Fissiologia: estudo das fendas e das divisões (em rochas, instituições, ou na sociedade). Xeróparo: criaturas que dão à luz em lugares secos.  Datilomania: o amor (ou a obsessão) por efeitos de prestidigitação ou truques em geral. Plutologia: o estudo da riqueza e de como obtê-la. Fissiscópio: instrumento (físico ou retórico) usado para separar fios de cabelo (=distinguir entre coisas muito semelhantes entre si).  Teleoscópio: um texto que alguém estuda a fim de determinar o seu propósito pessoal na vida.”


Ele conclui: “Talvez alguém, lendo este email, veja essas palavras e as use na imprensa, e então elas se tornarão palavras reais.”  Não resisti a essa esperança, e dei um passo além: essas palavras encaixa-e-aperta, inventadas por Ezra poucos dias atrás, já estão traduzidas, imagine só, para o Português, essa língua bárbara, essa colcha-de-retalhos de Legos gregos e latinos.  Elas são feitas de pedaços cujo sentido original já conhecemos de outros termos; adivinhar o que dizem não é tão difícil assim.  Alguma delas pode se tornar uma palavra de uso corrente?  Provavelmente não, mas claro que sim.  Qualquer inventismo que consiga se autopropalar e encontrar recolho na mnemória de um povo loquânime ganhará o retimbre de tudo que é personal e colectivo, de tudo que nasce da febricitância partenogenética dos seres vivos chamados “palavras”.


domingo, 12 de outubro de 2014

3629) O efeito folhetim (12.10.2014)




(Dica de leitura: Folhetim - Uma História, de Marlise Meyer, Companhia das Letras)


É terrível, mas precisa se dizer. Uma das coisas que nós, críticos, vivemos a criticar no folhetim em seu sentido mais amplo (incluindo romances europeus em fascículos no século 19, telenovelas de hoje, aventuras de FC seralizadas em revistas, etc.) é seu apelo à sorte e ao azar, ao acaso benigno, à coincidência salvadora, à chance-em-um-milhão que acaba dando certo, a frase que foi involuntariamente escutada por alguém e isso poupou uma vida, um encontro casual num hotel que evita ou provoca a queda de um governo, tudo que significa uma solução caída do céu para que a história vá em frente e ainda consiga fazer sentido.



O folhetim, sendo uma literatura escrita ao correr da pena (era a expressão da época), nem sempre podia voltar no capítulo 10 e eliminar uma cena entre dois personagens, cena cuja existência impede agora o autor de dar uma guinada na história.  Já num livro feito e refeito antes de ser impresso, basta cortar a cena e dar algumas falas àquela velhinha anônima que catava papel no parque, para preparar uma situação futura. 



No folhetim de Tolstoi, Balzac e Dickens, não.  O que era escrito era logo publicado, e ninguém podia voltar atrás para mexer. (Parece que autores mais exigentes preferiam escrever tudo e publicar aos poucos, seguindo o modelo das séries de TV atuais, que só vão ao ar depois de prontas.) Às vezes autores mais despachados, como Ponson du Terrail, se faziam de doidos e recontavam os fatos do passado como lhes convinha, não como já tinham sido contados antes.   (A publicação em livro, após encerrado o folhetim, permitia geralmente remendar esses trechos.)



O hóspede do albergue levanta-se de madrugada para fechar uma janela ruidosa e percebe a tempo os rufiões que rumam para o seu quarto a fim de matá-lo.  Tudo parece ocorrer por uma coreografia precisa do destino, em que basta perder um trem para, ao embarcar no próximo, envolver-se num turbilhão de aventuras ou de horrores.  Na vida real, certas coisas teriam que acontecer inúmeras vezes até que se produzisse a fagulha dramática, a confluência dinâmica dos destinos.  No folhetim, é sempre da primeira vez.  O Deus dos folhetins não gosta de perder tempo.


A coincidência e a conveniência dramatúrgica trabalham (do ponto de vista prático) para poupar tempo ao autor, ou para fazê-lo cortar um nó górdio, ou para manter seu interesse quando está sem saco de escrever. Isso dá a essa narrativa um traçado fluido e aerodinâmico que não teria na vida real, onde os acontecimentos estariam sujeitos a trambolhões, solavancos, descontinuidades e imprecisões, o pedágio que temos de pagar à realidade.


sábado, 11 de outubro de 2014

3628) Apaguem as luzes (11.10.2014)




Apaguem as luzes, estou com medo.  Não sabia que existiam criaturas assim, vorazes, na escuridão, cegas a tudo a não ser à própria fome, ou à própria gula, sabe-se lá com que intenção nos caçam tanto assim.  Melhor fazer de conta que nunca as vimos e que se as vimos isso ajudou a afastá-las, ao invés (pelo menos é o que a gente espera!) de atraí-las.  Banqueiro por dinheiro é tubarão por sangue.  Quantas outras coisas existem, afora dinheiro e sangue, que produzam uma tal leminguização do Homo Sapiens?



Lembrei agora a história do cego de nascença que, finalmente curado, ao atravessar as avenidas sentia-se mais seguro quando fechava os olhos, porque não registrava as motos resfolegantes, os ônibus de bote armado, os carros-esporte velozes e indiferentes.  Fechava os olhos; e atravessava.  Retornava ao lusco-fusco do somente áudio, onde se sentia mais senhor de si.



Melhor deixar as luzes do país bem apagadas. Eu não esperava tanto serpentário espalhado em bairros dos mais belos jardins, em gente do mais branco sorriso, em famílias que ostentam amor e solidariedade na lapela.  Melhor ter desligado o P. A., ou ter abaixado a chave no quadro-de-luz, do que permitir que uma tamanha algazarra midiática revelasse o país inteiro a si mesmo, assim, de chofre, ao longo de uma ou duas décadas de pura vertigem, de voo cibernético, de strip-tease desta nação véia diante do espelho.



A Web tornou-se a tela íntima e pública dos nossos pensamentos, desde o melhor que há nos artigos ao pior que há nos comentários.  Antes você tinha o cinema, aquela telona gigantesca.  De repente, do lado oposto você tem cem mil telinhas, como se fosse aquelas histórias de Marc Laidlaw sobre uma parede com cem apartamentos, em dez camadas de dez.  É mundo demais, realidade demais, vampirismo curitibano demais, nelsonrodriguismo demais.  O “cerumano” não pode ser tão previsivelmente real assim.  Apaguem já essa luz.



Eu preferiria aquelas elegias melancólicas que falam do fim do mundo como um lento e imperceptível anoitecer.  Deixar a vida aos poucos, como o ficando-reto de uma onda, não com a guilhotina súbita de um interruptor.  


Tive um susto danado com o que vi, obrigado por terem desligado.  Bem, continuo vendo tudo à minha frente. Engraçado isso. Acho que deve ser o conhecido fenômeno da persistência retiniana, que mantém vivo, por frações de segundo, o lampejo do entrevisto. Engraçado. O lampejo ainda não sumiu. Mesmo com as luzes apagadas, consigo ver tudo.  Não é como se estivesse vendo mesmo, pra valer, luz acesa olhos abertos.  É um fantasma do que eu vi, mas ele é tudo que minha lembrança é capaz de ver agora.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

3627) Lovecraft e racismo (10.10.2014)





O World Fantasy Award, um dos principais prêmios da literatura fantástica, já foi recebido por muita gente importante. Na categoria de “Lifetime Achievement” (conjunto da obra), já foi para Ray Bradbury, Jorge Luís Borges, Italo Calvino, Harlan Ellison. Consiste num pequeno busto que reproduz H. P. Lovecraft. Em 2011, foi premiada ("Melhor Romance") a autora nigeriana-americana Nnedi Okorafor, que depois manifestou seu constrangimento ao ler um poema racista de Lovecraft. E agora há um movimento para mudar o prêmio, para não constranger pessoas que se julguem (possíveis) alvos de racismo.



Há indivíduos que são racistas e fazem disso o carro-chefe de sua vida, como os membros de Ku-Klux-Klan ou as autoridades da África do Sul na época do apartheid, etc.  Vivem em função disso; é a principal bandeira ideológica de tudo que fazem.  Esses, para quem não é racista, devem ser combatidos com a mesma firmeza com que perseguem suas vítimas.



E há pessoas que são racistas por mera osmose, porque foram criadas num ambiente onde isso era ponto pacífico, era um saber herdado e compartilhado sem jamais ser discutido.  Por isso é importante discutir publicamente o racismo, talvez não para mudar a opinião da categoria anterior – esses são o “núcleo duro” do racismo, não podem ser convencidos, podem apenas ser neutralizados.  Mas a discussão é para esses indivíduos que desprezam pretos ou judeus porque – como parece ser o caso de Lovecraft – cresceram num ambiente onde “gente de respeito não se mistura com gente inferior”, etc. 



Dá-se algo parecido com as religiões.  Muita gente cresce num ambiente vagamente religioso e adota a religião dos pais sem lhe dar muita atenção; torna-se geralmente aquele tipo “crente, mas não praticante”, e muitas vezes, se apertado, se colocado no canto da parede, o sujeito percebe que nem crente ele é pra valer.  Aceitou sem muito interesse, mas não crê naquilo de verdade. 


E Lovecraft? Parece que ele era um meio-caminho entre essas duas posições. Era um sujeito com traumas profundos, enorme senso de inadequação, inaptidão sexual, fantasias de nobreza e aristocracia, impulsos racistas que eram uma fantasia a mais.  Mas nada disso estava sendo celebrado quando foi dada sua imagem ao prêmio. A celebração era do seu talento como escritor e sua influência no gênero fantasia/horror.  Todo escritor tem defeitos como pessoa, tem falhas de caráter, tem ações ou omissões politicamente condenáveis, já se envolveu com atividades capazes de desagradar A ou B.  Vai ser difícil (se resolverem trocar mesmo a estátua) achar um escritor sem defeitos, pra botar no lugar dele.


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

3626) Muitos anos depois (9.10.2014)




Na sala de visitas do dr. Amarante só faltava a lareira, mas havia uisque e charutos. “Aqui em São Luís da Serra uma lareira não destoaria,” disse o visitante, o advogado Hugo Restelo. “Meus pais se mudaram para esta casa já na época dos aquecedores elétricos,” disse o dr. Amarante, puxando as cortinas que mostravam por imensas vidraças o vale começando a anoitecer. “Mas tínhamos lareira na casa anterior, onde nasci, e que já não existe mais.”  “Não sabia,” disse Hugo, pegando o charuto do sogro para acender o seu. “Quando o sr. falava em sua casa aqui na montanha, sempre achei que fosse esta.” “A maioria das histórias de fato se refere a esta,” disse o doutor, que, na pia da parede oposta, fazia a torneira jorrar sobre uma caçamba de cubos de gelo, produzindo estalidos. “Vim morar aqui com dez ou onze anos. O mais importante aconteceu aqui.”



Brindaram erguendo os copos. Falaram sobre o passar do tempo. “Disse que a outra casa não existe mais?”, perguntou Hugo, olhando as luzinhas se acenderem nos chalés, em pontos distantes do vale. “Foi destruída acidentalmente. Eu estudava na Europa, tinha ido logo depois da morte dos meus pais,” disse o doutor. “A família do meu pai cuidou de tudo. Não lembro bem como foi”  Uma pausa longa. Hugo; “Uma lareira é um lugar bom para contar histórias, ouvir...”  “Passávamos noites agradáveis junto ao fogo,” disse o doutor. “Era lareira a lenha?” perguntou Hugo. “Não, era a gás, meu pai tinha inventado um sistema de canalização Ele trazia uma parte do gás que alimentava o moinho até nossa casa. Era gás.”


Houve um longo silêncio. “Meu Deus,” disse ele. Depois de mais um silêncio, Hugo falou: “Sabe o que isto significa, não é?  A casa queimou.  O inquérito suspeitou, mas não pôde provar, ter sido um vazamento de gás,”  “Botaram o gás para a festa do meu aniversário de dez anos,” murmurou Amarante. “Só houve o fogo mais de dez anos depois. Não venha me dizer que tem relação.”  Hugo: “Sabíamos que tinha, mas a polícia local, e seus tios, receberam o seguro “sub judice” e botaram uma pedra em cima do processo. Até bem pouco tempo era assim.”  O velho doutor ergueu o rosto. “Desde quando você sabe disso?  Desde quando pensou em arrancar isso de mim?” perguntou. E Hugo: “Desde antes de conhecer sua filha, de casar, de tudo. São milhões. Vários tipos de seguro, de prêmio, sei lá.  As companhias só precisam de uma confirmação idônea de que havia um ‘gatilho’ irregular de gás.”  “O fogo destruiu tudo. Não há provas. Toda a tubulação foi arrancada aos poucos.” “Tiveram tempo para isso?” “Na época, ninguém os estava vigiando.”  Um silêncio. “Quantos milhões seriam mesmo?...”


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

3625) Pulp Fiction (8.10.2014)





Se você se avizinhasse de uma banca de revistas cinquenta anos atrás, perceberia, além da ausência de DVDs-de-brinde e de revistas pornô, a presença de uma miríade de livrinhos de bolso para vender. Os anos 1960 foram a Pocket Revolution, iniciada aqui, pelo que me consta, com as “Edições de Ouro” da TecnoPrint, com suas séries famosas de literatura de gênero: Futurâmica, Terror, Policial, Criminal, Aventuras... Logo surgiram séries dos grandes mestres: Agatha Christie, Erle Stanley Gardner, Ellery Queen, Rex Stout, e detetives de grande sucesso popular como Shell Scott, Chester Drum, Mike Shayne, Al Wheeler... Todos saíram às dúzias pelas “Edições de Ouro”.



Mas não eram os únicos. Nos sebos achamos remanescentes dessa fase em que o livrinho de bolso reinou soberano na jângal da literatura barata. Não dá para saber até que ponto eram mal escritos ou mal traduzidos.  No caso da FC, eram a pulp fiction norte-americana no que ela tem de mais melodrama, mais clichê, mais invencionice bizarra.  Livros com títulos como Zym domina o mundo, Homens-monstros do espaço, Os vespões de ouro, O terror da sexta lua... De vez em quando um deles era um clássico, de autor famoso, e a gente só ficou sabendo 20 anos depois.



Nos EUA, as revistas tinham sido o refúgio e a estufa protetora dessa literatura nos anos 1920-30-40. A partir da década de 1950, os pulp magazines, lá, começaram a ser substituídos pelos livros de bolso.  Uma banca de revistas podia exibir uns vinte exemplares simultâneos com histórias de Lester Dent, Hugh B. Cave, autores que sob o pretexto geral de “aventura” passeavam pela FC e pela fantasia, ou se concentravam num gênero, como foi o faroeste para Zane Grey, Louis L´Amour, Max Brand.


O Brasil teve revistas de pulp fiction (A Novela, Detetive, Mistérios, Meia Noite, X-9, Suspense, etc.) e teve a floração de livrinhos de bolso a partir de fins dos anos 1950.  A convivência competitiva entre revistas e livrinhos aconteceu aqui também, nos termos da indústria local. Os termos brasileiros, no caso dos livros de bolso, consistiam em traduzir o que fosse mais financeiramente acessível, publicando raros autores locais.  Alguns brasileiros aceitavam assinar nomes estrangeiros. Rubens Francisco Lucchetti, Jeronymo Monteiro, todos usaram pseudônimo.  Quando eu traduzia para a Editora Récord, vim a conhecer Gilson Soares, tradutor e revisor, que escrevia os romances de Miguel “Chucho” Santillana, autor de dezenas de livrinhos da Bruguera que ninguém teria comprado se ele os assinasse com seu nome verdadeiro.  Alguém precisa escrever a História Secreta da Pulp Fiction no Brasil.


terça-feira, 7 de outubro de 2014

3624) As vozes de Dickens (7.20.2014)






Um inquietante artigo de Peter Garratt no The Guardian examina a literatura e a vida de Charles Dickens em função do que poderíamos chamar “a arte de ouvir vozes”.  A tese do autor, bastante plausível, é de que Dickens era um desses escritores que praticamente “recebem os espíritos” dos personagens.  Criando os seus romances, improvisava longos diálogos que depois eram passados para o papel.  Diz Garratt que entre 1853 e sua morte em 1870 Dickens realizou 470 performances públicas, que devemos entender como conferências e leituras dos próprios livros com alto grau de teatralidade.  Parece que Dickens eram bom nisso, porque viajou pela Europa e América fazendo essas dramatizações.



Ele cita um testemunho do próprio Dickens sobre o ato da criação literária: “Quando me sento para trabalhar num livro, algum poder benfazejo me mostra aquilo tudo, e atiça meu interesse, e eu não invento nada, não mesmo, eu somente vejo, e passo para o papel.”  Segundo ele, Dickens era interessado em mesmerismo, ilusões e alucinações. (Coisa que, uma geração depois, iria interessar autores como Doyle, Wells, etc.)  Ele provavelmente era um steampunk “avant la lettre”, mas devia ter um certo desdém pela tecnologia.  Seus garotos encardidos, maltratados nos orfanatos, perseguidos nos becos, fugindo de todos, prefiguram essa literatura dos marginais contemporâneos, só que uns marginais num mundo mais Julio Verne do que o dele.



Diz Garratt que “a experiência literária tem muito a ver com a experiência de escutar a conversa alheia.  Ler ficção é um processo de permitir que as vozes dos personagens soem em nosso ouvido interno, e de absorver os sons que produzem.”  Na minha experiência, foi Coelho Neto (Velhos & Novos) o primeiro autor que vi descrever um fenômeno que para mim era óbvio: o fato de que qualquer palavra que lemos vai sendo lida em voz alta por uma voz interior muito semelhante à nossa.  Não diria que é um fenômeno do ouvido (meus tímpanos não ouvem nada), mas do pensamento puro: pensar em palavras é imaginar seu som.


Dickens devia ser um daqueles autores que depois fizeram a fortuna das estenógrafas e dos vendedores de ditafones.  Nem sempre o autor que dita seus livros o faz com arroubos de entusiasmo.  Erle Stanley Gardner, cartesianíssimo autor, nunca perdia de vista a história nem os personagens.  Chandler, Edgar Wallace, todos ditavam para uma máquina tanto quanto Walter Scott ditava para um secretário.  Dickens não pensava em voz alta, provavelmente: tornava-se cada personagem, como num palco só dele. Quem cria assim precisa de alguém que registre.  É uma espécie de mediunidade fingida, para efeito de criação.