quarta-feira, 25 de junho de 2014

3534) Terra Oca (25.6.2014)




Era uma vez um planeta (o nosso) que era oco. Alguma coisa nas suas convulsões geológicas o deixara assim, e a velocidade com que girava tornava possível haver oceanos, continentes e mares não apenas no exterior da sua crosta sólida, mas na face interior dela também.  O oco interno era iluminado por um sol central de intensidade, tamanho, massa e variação cromática ideais.

Foram os homens de dentro, que em sua expansão, povoaram pela primeira vez o mundo de fora, até então entregue a feras descomunais. Brotaram do Polo Norte e desceram rumo a terras mais quentes. Alguns morriam com facilidade ao se aproximarem delas, mas outros pareciam despertar, redobrar de vigor. Ali se fincaram, ali esqueceram o trajeto dos seus ancestrais remotos. Pensavam mais na sobrevivência do que em ficar recitando as crônicas históricas de um mundo que não conheciam e de cuja existência não faziam questão.

Acostumados ao sol unânime e central do mundo de dentro, eles estranharam o mundo de fora. O sol girava sem parar, erguendo-se no primeiro abismo e pondo-se no último. Um sol rodopiante, descontrolado, num mundo sem paredes.  E nas horas em que o sol sumia, vinham horas espantosas cheias de terrores e constelações. E a tentativa de justificar a presença daqueles pontos de luz através de esferas, dentro de esferas, dentro de esferas, cada qual girando sobre si própria.

Existem pessoas que preferem um sol único, fixo, inalterável em si mesmo, podendo apenas ser oculto por invernos inteiros, mas confiadamente ali, onde sempre esteve e onde sempre deveria estar.  Um mundo em forma de esfera fechada. O que dizer das crises filosóficas de gerações de escribas teologais da Terra de Dentro, no século em que emergiram do outro lado do Poço, e descobriram que estavam pisando a superfície de uma esfera aberta?

Guerras por dissensão quanto a um axioma qualquer de teologia topológica. Impérios se ergueram, impérios tombaram.  Podemos descrever essa fase apenas em termos coletivos. Não há como saber se algum daquele filósofos (inteligentes, mas sem o instrumental de que se dispõe hoje) chegou a intuir mentalmente uma física, astronomia, geometria, etc. que pudesse se aplicar àqueles dois universos, a Terra de Dentro e a Terra de Fora.  Porque o mundo é binário, bipolar, contrário-complementar, oposto-simétrico.  O mundo não é apenas circular, esférico, concêntrico, harmonioso e uno.  Existe em nós a consciência atávica da existência de um mítico Aqui-Lá, um mundo com sinal invertido ao nosso, um mundo-do-espelho, um mundo de uma esfera fechada por paredes de matéria, que é o mundo primordial de onde viemos, e para onde tudo voltará um dia.


terça-feira, 24 de junho de 2014

3533) Clichê obrigatório (24.6.2014)





(George Raft em Scarface)



Quando Billy Wilder estava tentando filmar Pacto de Sangue, adaptando o romance de James M. Cain (Double Indemnity, 1943), foi oferecer o papel principal ao ator George Raft. 

Começou a contar a história do começo ao fim, e Raft perguntava repetidamente: “E a que altura aparece a lapela?”.  Wilder não sabia que lapela era essa e contou a história até terminar. Raft se espantou: “Então não tem lapela?”. E ele: “Que diabo é lapela?”  Raft: “Aquela cena em que o bandido vira a lapela do casaco, exibe o distintivo, e mostra que é da polícia ou trabalha para o governo, enfim, é um cara do bem.”  Wilde confessa que nunca ouvira essa gíria. 

Todo clichê é um velho amigo nosso, a prova disso é ver o quanto ele é bem recebido quando se apresenta: com simpatia, quase com alívio. 

Um clichê narrativo (“Acho que seria melhor dar uma olhada no porão para tirarmos qualquer dúvida”) é reencontrado com a mesma alegria de quando voltamos a um boteco simpático onde já fomos bem recebidos.  

Ou, mais rigorosamente, é recebido como algo sobre o qual já pensamos e que por isso achamos legal não precisar pensar de novo.

Comecei ontem a ler um romance qualquer e me dei de cara com dois bons exemplos.  

Um nobre sobe na charrete ou tílburi (é século 19) e diz ao seu cocheiro que siga para a rua tal. O cocheiro diz, nervoso: “Mas, senhor!  Foi lá que...” E o nobre o interrompe: “Silêncio!  Faça o que estou mandando!”  

Eu já vi essa cena dezenas de vezes, com Peter Cushing ou Vincent Price ou Basil Rathbone insistindo em ir, na calada da noite, ao local do crime, ao local de assombração, ao local do feitiço.

Em outra cena o personagem chega à casa de alguém e enquanto espera fica olhando um quadro na parede, e o descreve.  O parágrafo é cortado por um diálogo: “Gostou? Foi pintado por Fulano de Tal” – e o dono da casa aproxima-se por trás dele. 

Lembrei desta cena porque eu mesmo já a escrevi tintim por tintim, e só o fiz porque a lera mil vezes antes, ou a vira na tela do Babilônia ou Capitólio.

Esses pequenos efeitos narrativos, um dia, resolveram o problema de um escritor que precisava sugerir uma idéia ou dar dramaticidade a uma entrada em cena. Funcionaram, e funcionaram tão bem que continuam funcionando até hoje, nas mãos de qualquer um. 

Em geral, um clichê fica tão bem impregnado na nossa memória que acaba brotando no mais indesejável dos momentos, ou seja, quando começamos a escrever. Nesse momento crucial, o jovem autor precisa ter autodistanciamento e boa memória. 

E precisa ter por perto uma pessoa com credibilidade bastante e aproximação bastante para poder lhe dizer: “Velho, tire esse negócio aí, isso é o maior clichê.”







domingo, 22 de junho de 2014

3532) Ser soldado (22.6.2014)



Acho que a maioria dos soldados tornam-se soldados, pelo menos em desejo e fantasia, por volta dos cinco ou seis anos de idade.  Se bem me lembro, nesse período tudo que o camarada sonha na vida é ser tranquilizadoramente coletivo, e assim ser grande, ser forte, ser capaz de ser brutal, poder ver o medo nos olhos de quem o avista, poder empunhar aqueles instrumentos terríveis cheios de raios e trovões.  O menino quer ser um Deus atemorizante e invulnerável. Só o soldado é assim.

Ser soldado não é ser preparado apenas para matar, mas também para controlar o medo de morrer. Mais do que um poder sobre a morte, ser soldado implica num poder sobre o medo.  Uma das cenas mais vibrantes de um episódio recente de Games of Thrones ((HBO, cuja 4a. temporada terminou há poucos dias) é quando um gigante inimigo consegue arrombar a entrada de um túnel numa fortaleza, e cinco soldados da Guarda Noturna entram no túnel para detê-lo. O monstro é gigantesco, e quando se aproxima eles, aterrorizados e de armas em punho, gritam juntos o juramento que fizeram ao se alistar ali: “A noite está chegando, e minha vigília vai começar! Ela não chegará ao fim antes da minha morte! Eu nunca terei esposa, nunca possuirei terras, nunca terei filhos!  Nunca usarei coroa, e não conquistarei glórias! Eu viverei e morrerei no meu posto! Eu sou a espada da escuridão! Eu sou o sentinela no alto da muralha! Eu sou o escudo que protege os reinos dos homens! Eu dedico minha vida e minha honra à Guarda Noturna, nesta noite e em todas as noites que virão!”.  E partem para a batalha desigual.

Para uns, ser soldado evoca, de cara, a “licença para matar”, o apelo ao carcará sanguinolento que habita o inconsciente de toda pessoa civilizada.  Para outros, evoca a nobreza de mandar e a de obedecer.  Para outros ainda, a diluição-em-pixel numa estrutura maior, onde é possível obter anonimato e paz.  Para outros, há um trabalho a ser feito, alguém precisa fazê-lo, então que o faça bem feito, não importa a que custos ou sacrifícios. Para outros, é a escada mais curta para um trono.

Game of Thrones mostra soldados que quebram seus votos por causa de uma mulher. Soldados que correm o risco da morte, e mais, da desonra, mas não quebram a palavra dada.  Soldados que ganham todas as batalhas e perdem a guerra. Soldados pusilânimes em tempo de paz e heróis em campo de batalha.  Soldados cruéis que dos outros só esperam a crueldade.  Soldados que têm somente a mais vaga noção de por quê estão lutando, mas já que estão ali para lutar, tornam a luta em si a coisa mais importante de suas vidas, algo que faz valer a pena enfrentar a morte.


sábado, 21 de junho de 2014

3531) Tradução pessoal (21.6.2014)



Um tradutor de verdade é um homem preso.  Ele está preso a duas bolas-de-ferro-com-correntes que nem Janis Joplin seria capaz de arrastar. Em primeiro lugar, está preso à aceitação da existência de algum tipo de pacto supervisionador de tudo que ele irá colocar no papel. Pra ser mais exato, o tradutor é um homem preso a dois pactos.

O primeiro pacto é com o autor: “Prometo dar o meu sangue para que o leitor do seu livro em português tenha uma experiência estética que se equivalha à experiência dos que o leram no original; e que essas duas experiências distantes tenham tantos pontos de semelhança que dois leitores de duas versões possam conversar entre si uma tarde inteira e trocar impressões sem lembrar que leram livros diferentes, em línguas diferentes.” O segundo pacto é com o leitor, e é um pacto que pode ser, de um jeito meio irreverente, reproduzido como: “Comerás um gato, mas com um sabor-artificial-de-lebre no capricho.” Porque mesmo a melhor tradução não é a real coisa. a coisa-em-si.

O tradutor se resigna a vir atrás, a ser o “second best” , a ser o “quase-perfeito”, a tentar (tentar! conseguir é outra façanha!) acompanhar o original como a sombra acompanha um corpo em movimento. Isso é o que toda tradução tenta.  É possível? Não há como (estatisticamente) a frase brasileira acompanhar a métrica da frase inglesa, mas existe uma sensação mais ampla de ritmo, de arcos de ascensão, pico e descenso.  Dependendo do autor (porque há muitos onde essa precaução, infelizmente, é desnecessária) é preciso prestar atenção à sua música, tanto quanto ao seu sentido. Há uma certa música, nem que seja na sucessão de estruturas rítmicas bem amplas, recorrentes. E os breques, o muro de pedra.

Numa entrevista, Garcia Márquez diz mais ou menos que é preciso primeiro encontrar e depois manter a voz narrativa daquela história, e que muitas coisas que são ditas não têm grande importância factual, estão ali apenas para manter o ritmo hipnótico do tom e da cadência da voz que foi escolhida.

Esta é mais uma dificuldade para o leitor, e para o tradutor, que é leitor ao quadrado. Encontrar uma voz equivalente; mas equivalente exatamente a quê?  Se alguém for retraduzir Cem Anos de Solidão daqui a cem anos, em chinês, o que conseguirá passar para o lado de lá?  Talvez a saga e a tragédia dos Buendía passe, mas quem era aquela voz que contava tudo?  Será mantida no mesmo grau de distanciamento e intimidade?  Como reproduzir em chinês as mesmas nuances de entonação, de preferência vocabular, de rudezas gramaticais?  Dizer tudo o que foi dito, e dar a impressão de que o está dizendo pela primeira vez.


sexta-feira, 20 de junho de 2014

3530) Mistério do futebol (20.6.2014)




(cartum de Matt Diffee)

Que mistério tem o futebol? (Cada um ponha nesse nicho o esporte de sua fatalidade.) Que mistério ele tem para alterar a tal ponto nossa pulsação cardíaca, e digo mais, nosso controle sobre a nossa própria mente?  Por causa de futebol vi cidadãos pacíficos tresloucados, homens honestos fazerem um-em-pé-e-quatro-rodando num instantezinho de distração de alguém (“sofri um pênalte!”), amores se desfazerem, famílias se desmancharem, vizinhanças virarem praças de guerra conflagradas.

No futebol o atleta faz uma amputação de si próprio, proibindo-se de usar suas extensões mais prestas e mais acostumadas ao uso: braços, mãos, dedos.  Correr sem-braços atrás de uma bola que quica e é chutada, podendo tocar nela só com os pés e a cabeça, parece tortura inventada num campo de concentração grotesco.  Se a beleza da imagem do cinema decorre da limitações do retângulo do “frame”, a beleza do balé futebolístico vem desses braços e mãos que, não podendo colidir materialmente com a bola, viram ectoplasma, asas invisíveis, viram lemes, hélices ou remos de que se vale o atleta em cada um dos voos curtíssimos de que é capaz. 

Viram coice de cavalo, rabanada de baleia. Talvez venha dessa amputação a impaciência das cotoveladas no adversário que assedia, uma reação que o nosso Leonardo celebrizou na Copa de 1994 e que nesta de agora eu já vi duzentas vezes. O braço vive nervoso, não pode fazer nada, a adrenalina é grande e o calor é um inferno, esse braço precisa descarregar em alguma coisa.

O esporte bretão é um xadrez e um balé.  O balé da cortada que faz o adversário passar deslizando e batido, o balé do voo de tantos metros para dar só o toque de cabeça necessário para o gol, o banho de cuia, o drible da vaca, o elástico, a pedalada, o gol de letra, o gol chorado, o gol do meio da rua. O balé é o jogo dos jogadores, é o duelo entre a técnica de cada um. O xadrez é o jogo dos técnicos, o duelo entre táticas.

E tem outra dimensão extraordinária do esporte, é sua estrutura dramatúrgica, organizada em disputas específicas com resultados numéricos claros e consensuais. É como um video-game.  Campeonatos, torneios, pontos corridos, mata-mata, tudo servindo de grade para o lado-humano, os craques e os supertimes que surgem, assombram, brilham, e passam.  O futebol nos dá uma certeza de resultados que a vida, essa sim, nos nega sempre. Em campo, a vitória pode ter sido injusta, mas é unanimemente aceita e vira fato. Um a zero é um a zero em qualquer idioma, raça, cultura ou religião. A clareza da disputa dá sustentação às sagas heróicas cuja história está contada naqueles jogos que quem viu não esquece jamais.


quinta-feira, 19 de junho de 2014

3529) Gêneros literários (19.6.2014)



Num artigo na revista Locus (2003), Gary K. Wolfe (um dos melhores críticos de FC em atividade) fez uma comparação entre três dos melhores romances da época: The Years of Rice and Salt de Kim Stanley Robinson, Coraline de Neil Gaiman e The Scar de China Miéville. O ponto de vista dele é expresso nessa frase: “Não é que os livros pertençam a determinados gêneros, eles derivam desses gêneros”.  O livro de Robinson é uma espécie de FC, o de Gaiman uma espécie de terror, o de Miéville uma espécie de fantasia.  Não poderiam (diz Wolfe) ter sido escritos, nem serem lidos, sem a conexão com esses gêneros. Mas nenhum deles pode ser plenamente assimilado somente em termos dos gêneros.

A grande maioria das discussões literárias (para não falar nas outras) nunca chega a lugar nenhum porque parte de premissas inadequadas.  Essas premissas são os termos que usamos na discussão e que nunca questionamos.  Vemos todo mundo discutir o assunto naqueles termos, e achamos que está certo, que essa é a única maneira de pensar a respeito.  E não é.  Podemos propor (como fez Wolfe) uma maneira diferente de enxergar o problema.

A expressão “pertencer a” contamina qualquer argumentação. Condiciona nossa maneira de falar sobre as coisas, de descrever as relações que a gente vê entre elas. “Pertencer”, além de indicar posse, indica uma relação hierárquica, impõe uma polaridade tipo superior/inferior.  Se a obra “pertence” ao gênero X, então pra todos os efeitos o gênero comanda a obra, a obra tem que obedecer às leis dele e às exigências dele, e, como não se pode servir a dois senhores, quem “pertence” a um gênero não pode pertencer ao mesmo tempo a outro.

E podemos, agora sim, dividir as obras em dois tipos. O primeiro é o das que aceitam pertencer, sim, a um gênero, aceitam seguir as fórmulas do gênero, porque é no universo do gênero que querem fazer sucesso e alcançar a fama e a fortuna, não necessariamente nesta ordem. O segundo tipo é o das obras que não querem “pertencer” a um gênero, querem nascer dentro dele e nutrir-se dele, mas ao fim e ao cabo querem afastar-se dele, derivar tendo-o como porto de decolagem. Ir embora do gênero levando algo dele consigo, assim como Severian foi embora de Nessus.

Nenhuma opção é melhor do que a outra; nenhuma garante que o resultado literário será superior. Quem determina isso é o indivíduo. Mas é um erro dizer que qualquer obra pertence a um gênero. Asimov, Clarke, Heinlein, todos tinham orgulho de pertencer ao gênero da ficção científica.  Kim Stanley Robinson,  Neil Gaiman e China Miéville escrevem como quem quer na verdade “derivar” dele; e não veem nenhum problema nisso.


quarta-feira, 18 de junho de 2014

3528) Relíquias (18.6.2014)




Nos livros de capa-e-espada ou de aventuras de cavalaria apareciam com frequência (geralmente numa cena de rua, de feira, cheia de pessoas anônimas) os vendedores de relíquias. Um cacho de cabelo de São Fulano, uma unha de São Sicrano, um retalho do lençol com que São Beltrano se cobria...  

As pessoas mais pobres pagavam, apertavam a relíquia de encontro ao peito e saíam tomadas por um otimismo devastador.

Um cronista desabusado comentou: 

“Na Europa, nos últimos cinquenta anos, já foram vendidos pedaços da verdadeira cruz de Cristo em tal quantidade que daria para construir com essa madeira uma esquadra inteira de navios. ‘Cravos da verdadeira cruz’ são tão numerosos que dariam para crucificar um país inteiro.”  

E no entanto as pessoas compravam, e compram ainda hoje, as relíquias mais diversas. Não me refiro a imagens e símbolos em geral, mas à relíquia de caráter único, que esteve ligada à pessoa do santo de maneira muito próxima ou muito significativa. Ou uma parte do corpo dele.

Curiosamente, a ciência moderna produziu sua própria cultura de relíquias. Há indivíduos que ao morrer deixam sêmen congelado para poderem fecundar mulheres cem anos depois de mortos.  Outros deixam amostras de sangue, de cabelo, de tecidos: para que ali se conserve o seu DNA e, num possível futuro, alguém possa produzir um clone que seja para eles uma ressurreição parcial. 

(Isso funcionaria mais para os descendentes do que para ele. Os bisnetos poderiam se auto-iludir: “Meu bisavô está de volta!”, mas ele saberia que não era o mesmo.)

Recolher DNA de amostras humanas para produzir um clone de alguém é uma idéia recente, mas quem nos garante que já não estava presente na antiguidade.  Podemos imaginar uma rede secreta de viajantes no Tempo que eventualmente, no meio dos seus contatos com os “nativos”, aconselham: “Guardem relíquias das pessoas importantes. Guardem amostras do sangue num frasco, guardem cabelo, unhas, crânios, tecidos mumificados, tudo que puder ser preservado, e que seja autenticamente daquela pessoa.  Um dia isso terá utilidade.”

E podemos imaginar também a existência de corredores transversais no tempo, ligando universos paralelos e contíguos, fazendo com que relíquias de um sejam contrabandeadas para outro. 

Isso justificaria a piada do sujeito que vê num museu um esqueleto adulto com a placa “Esqueleto de São Francisco” e um esqueleto de criança com a placa “Esqueleto de São Francisco aos cinco anos”. O mercado transdimensional de relíquias está de vento em popa. 

Por exemplo, um bilionário russo de outro universo está colecionando esqueletos de Bin Laden.






terça-feira, 17 de junho de 2014

3527) Tá tendo Copa (17.6.2014)




Antes de tudo: sou a favor das manifestações, desde o começo. Quero que continuem, e que desmascarem as políticas dos governos (federal, estaduais e municipais, bem como do legislativo e do judiciário), políticas que prejudicam a população e favorecem apenas os grandes grupos econômicos, construtoras, bancos e financeiras, etc.  Sou a favor de qualquer manifestação que denuncie as tramóias da Fifa. É um grupo de trambiqueiros internacionais em grande escala, que veem nosso povo com desprezo e nosso país como um antro de otários fáceis de corromper porque são desonestos de nascença.

Tirando isto, toda Copa do Mundo é uma festa do futebol para otimistas como eu, que acham que os resultados não são combinados com antecedência ou manipulados de última hora, numa reunião a portas fechadas entre representantes da Fifa e das duas seleções que jogarão logo mais. É preciso despregar do futebol (o que é dificílimo) essa gosma de dinheiro sujo e de ambição corporativa. O jogo em si é uma beleza, pelo choque entre estilos diferentes de jogar, formas diferentes de talento (o talento, por definição, é individual, multiforme, de possibilidades inesgotáveis).

A pior coisa que pode acontecer nesta Copa é qualquer violência contra os visitantes. Acho que a regra da hospitalidade é sagrada, e qualquer violência (do anfitrião contra o hóspede, ou do hóspede contra o anfitrião) é vergonhosa. (Assistam Game of Thrones, onde este tema é recorrente.)  Vamos deixar que todos torçam em paz pelos seus times, chorem suas derrotas, comemorem suas vitórias. Inclusive quando, e se, nos derrotarem. Sei que é pedir demais a meros torcedores. Continuarei pedindo.

Gosto mais de futebol bem jogado do que da Seleção Brasileira. Em 1974 e 1978 torci pela Holanda, que na época era o melhor time do mundo.  Em parte, também, torci contra a Seleção para ser contra o governo (era a época da ditadura), mas hoje acho que isso é bobagem. A Seleção representa mais o povo do que o Governo, mesmo que este pegue carona nos seus triunfos.  Os governos passam e a Seleção fica.

Não faço questão de que o Brasil seja campeão. Preferiria alguma seleção que joga bem e nunca foi. (Menos os EUA, que são a Roma Imperial de hoje.) Quero que a Copa seja alegre, festiva, disputada, com grandes jogos e grandes jogadas, que revele novos craques, que consagre os antigos, que ajude alguns a encerrar suas carreiras de cabeça erguida. No esporte, só um é campeão; mas há incontáveis motivos para orgulho e celebração, mesmo quando se é derrotado. Quero que a festa na rua seja bonita, e que após o final todo mundo vá embora pensando: “Obrigado, Brasil”.


domingo, 15 de junho de 2014

3526) De onde vêm as idéias? (15.6.2014)




(ilustração: Bill Waterson)


Todo escritor é obrigado a responder essa pergunta em qualquer bate-papo, palestra, chat via Internet. Cada um se vira como pode. A resposta não é difícil de dar, mas existe um acordo entre escritores profissionais de que é proibido revelar esse segredo aos leitores, aos críticos e aos escritores não-profissionais. 

É um pouco como os rituais da Maçonaria, a senha de acesso ao mainframe da CIA e a idade das atrizes do cinema. Correndo o risco de ser metralhado por mafiosos numa noite chuvosa numa rua deserta, revelarei alguns desses lugares secretos de onde vêm as idéias para as obras literárias. 

No Rio de Janeiro há uma galeria, na rua Marquês de Abrantes, com uma daquelas maquininhas de vender balas mediante fichas. Quem pede a ficha mais cara tem acesso a um depósito de balas que são ocas e trazem idéias para histórias no seu interior, enroladinhas em papéis como os do “biscoito da sorte”.  

Em Melbourne (Austrália), no aeroporto, basta pedir a versão atualizada do “Guia de Ruas”: a cada cinco páginas haverá um pequeno box impresso com idéias para histórias. 

Em Seattle, há uma casinha de subúrbio sempre trancada, mas a porta dos fundos fica aberta. Numa lata de leite em pó no armário, há idéias. 

Em Lodz, na Polônia, podem-se receber mentalmente idéias de uma árvore no jardim municipal, mediante uma espécie de wifi, não de mensagens concretas.

Curiosamente, foram localizadas três cidades onde as idéias podem ser recolhidas num cofre de fechadura quebrada no guarda-volumes da respectiva estação rodoviária: são elas Feira de Santana (Bahia), Ipatinga (MG) e Vancouver (Canadá).  

Nas minhas anotações consta também um supermercado em Vila Mariana (São Paulo) onde as pessoas que compram sacos de batatinhas Ruffles deparam-se às vezes com um saco (de cor inesperadamente verde) cheio de idéias anotadas e dobradinhas.  

Viajando fora do Brasil e precisando escrever, já encontrei idéias distribuídas como brinde a quem tomasse o café da manhã numa padaria no Largo do Areeiro, em Lisboa.

Há um filtro de barro que goteja idéias numa fonte dos banhos públicos, em Omã.  

Há um calendário em Baía da Traição com uma idéia atrás de cada folhinha que se arranca. 

Há uma ampulheta em Roraima onde a areia ao cair revela uma idéia que logo se desmancha e também se esvai em grãos.  

Moradores de Kalamazoo (EUA) reportam uma afloração de idéias à superfície de uma mina onde nenhum minério mais restava.  

Em Lyon, surgem envelopes apátridas de idéias, jamais abertos, apenas tendo duas inscrições pelo lado de fora, lidas com desvelo, e em seguida reenvelopados intactos e remetidos para produzir idéias em alguém.





sábado, 14 de junho de 2014

3525) A volta do piquenique (14.6.2014)



(ilustração: Tudor Dulhaz)

Me contaram (tantas vezes que para mim virou uma repousante verdade) que quando eu tinha oito ou dez anos eu morava numa casa ali perto da Mata da Bombinha, do lado de lá da universidade. No colégio me chamavam de Aluado, porque eu era um garoto arredio e diferente dos outros. Eu não entendia as aulas, isso eu me lembro. E do pouco delas que me lembro não entendo até hoje.  Essa escola ficava junto da Praça da Fonte. Meus pais me levavam de manhã e me pegavam no fim da tarde; eu almoçava lá.

Um dia (disseram) a turma foi fazer um piquenique e um passeio guiado na mata, com três professoras e dois assistentes. A escola era séria e as precauções eram grandes, mas parece que houve um momento em que todas as crianças foram para um lado e eu para outro. Eu me perdi. Durante horas todos quase perderam o juízo. Muita preocupação e desespero, achando que, sendo eu quem era, algo terrível devia ter me acontecido.

O que eles só deduziram depois, comparando provas e lembranças, foi que eu vi algo que me era familiar, algum caminho na mata que eu já tivesse trilhado antes, e por algum motivo tivesse achado que era naquele rumo que esperavam que eu fosse.  Quando deram pela minha falta e conseguiram organizar um mínimo de expedição de busca, eu já devia estar muito longe. Ao longo da manhã e da tarde eu caminhei pela Mata da Bombinha, até que (isso eu me lembro, ninguém me contou) ao me virar de repente enxerguei a rua que levava à rua que levava à rua que levava à minha rua. 

Havia pouca gente. Já começava a escurecer. Ao chegar em casa, vi que estava fechada, meus pais deviam ter saído e éramos só nós três. Eu não sabia de nada, só sabia que estava morto de cansado. Cruzei a rua sem ser visto, a porta da cozinha estava trancada, mas havia a escada na garagem e o postigo no sótão. Vivia desferrolhado, quase como se fosse uma coisa planejada. Entrei, fui para o meu quarto, desabei, dormi.  Pouco depois fui despertado por gritos de uma multidão onde reconheci meus pais, pessoas com farda de polícia, pessoas com farda de médico, pessoas empunhando os celulares, apressadas. Estavam me procurando há cerca de oito horas.

Eles não sabem (nem eu vou dizer) que durante aquele tempo afundei caravelas, contemporizei com dragões, neutralizei criptonitas, fugi da bela dama sem mercê, galguei o trono, pisei no planeta, domei burros brabos, compus sestinas, violei pirâmides, matei o tempo mil vezes e mil vezes voltei a matá-lo em suas mil ressurreições, e outra coisa que me lembro é que na hora eu me julguei merecedor do resultado final daquilo tudo. A única coisa de que me lembro é que já fui rei de alguma coisa.