sábado, 14 de junho de 2014

3525) A volta do piquenique (14.6.2014)



(ilustração: Tudor Dulhaz)

Me contaram (tantas vezes que para mim virou uma repousante verdade) que quando eu tinha oito ou dez anos eu morava numa casa ali perto da Mata da Bombinha, do lado de lá da universidade. No colégio me chamavam de Aluado, porque eu era um garoto arredio e diferente dos outros. Eu não entendia as aulas, isso eu me lembro. E do pouco delas que me lembro não entendo até hoje.  Essa escola ficava junto da Praça da Fonte. Meus pais me levavam de manhã e me pegavam no fim da tarde; eu almoçava lá.

Um dia (disseram) a turma foi fazer um piquenique e um passeio guiado na mata, com três professoras e dois assistentes. A escola era séria e as precauções eram grandes, mas parece que houve um momento em que todas as crianças foram para um lado e eu para outro. Eu me perdi. Durante horas todos quase perderam o juízo. Muita preocupação e desespero, achando que, sendo eu quem era, algo terrível devia ter me acontecido.

O que eles só deduziram depois, comparando provas e lembranças, foi que eu vi algo que me era familiar, algum caminho na mata que eu já tivesse trilhado antes, e por algum motivo tivesse achado que era naquele rumo que esperavam que eu fosse.  Quando deram pela minha falta e conseguiram organizar um mínimo de expedição de busca, eu já devia estar muito longe. Ao longo da manhã e da tarde eu caminhei pela Mata da Bombinha, até que (isso eu me lembro, ninguém me contou) ao me virar de repente enxerguei a rua que levava à rua que levava à rua que levava à minha rua. 

Havia pouca gente. Já começava a escurecer. Ao chegar em casa, vi que estava fechada, meus pais deviam ter saído e éramos só nós três. Eu não sabia de nada, só sabia que estava morto de cansado. Cruzei a rua sem ser visto, a porta da cozinha estava trancada, mas havia a escada na garagem e o postigo no sótão. Vivia desferrolhado, quase como se fosse uma coisa planejada. Entrei, fui para o meu quarto, desabei, dormi.  Pouco depois fui despertado por gritos de uma multidão onde reconheci meus pais, pessoas com farda de polícia, pessoas com farda de médico, pessoas empunhando os celulares, apressadas. Estavam me procurando há cerca de oito horas.

Eles não sabem (nem eu vou dizer) que durante aquele tempo afundei caravelas, contemporizei com dragões, neutralizei criptonitas, fugi da bela dama sem mercê, galguei o trono, pisei no planeta, domei burros brabos, compus sestinas, violei pirâmides, matei o tempo mil vezes e mil vezes voltei a matá-lo em suas mil ressurreições, e outra coisa que me lembro é que na hora eu me julguei merecedor do resultado final daquilo tudo. A única coisa de que me lembro é que já fui rei de alguma coisa.


2 comentários:

Micelânia disse...

Doce é a ilusão e o mundo da infância, quando perdido se acha um rei.

POETA GORDO SOLEDADE disse...

Coincidência. O mesmíssimo relato de Kamikaze Joe.