(George Raft em Scarface)
Quando Billy Wilder estava tentando filmar Pacto de
Sangue, adaptando o romance de James M. Cain (Double Indemnity,
1943), foi oferecer o papel principal ao ator George Raft.
Começou a contar a história do começo ao fim, e Raft perguntava repetidamente: “E a que altura aparece a lapela?”. Wilder não sabia que lapela era essa e contou a história até terminar. Raft se espantou: “Então não tem lapela?”. E ele: “Que diabo é lapela?” Raft: “Aquela cena em que o bandido vira a lapela do casaco, exibe o distintivo, e mostra que é da polícia ou trabalha para o governo, enfim, é um cara do bem.” Wilde confessa que nunca ouvira essa gíria.
Começou a contar a história do começo ao fim, e Raft perguntava repetidamente: “E a que altura aparece a lapela?”. Wilder não sabia que lapela era essa e contou a história até terminar. Raft se espantou: “Então não tem lapela?”. E ele: “Que diabo é lapela?” Raft: “Aquela cena em que o bandido vira a lapela do casaco, exibe o distintivo, e mostra que é da polícia ou trabalha para o governo, enfim, é um cara do bem.” Wilde confessa que nunca ouvira essa gíria.
Todo clichê é um velho amigo nosso, a prova disso é ver o
quanto ele é bem recebido quando se apresenta: com simpatia, quase com alívio.
Um clichê narrativo (“Acho que seria melhor dar uma olhada no porão para tirarmos qualquer dúvida”) é reencontrado com a mesma alegria de quando voltamos a um boteco simpático onde já fomos bem recebidos.
Ou, mais rigorosamente, é recebido como algo sobre o qual já pensamos e que por isso achamos legal não precisar pensar de novo.
Um clichê narrativo (“Acho que seria melhor dar uma olhada no porão para tirarmos qualquer dúvida”) é reencontrado com a mesma alegria de quando voltamos a um boteco simpático onde já fomos bem recebidos.
Ou, mais rigorosamente, é recebido como algo sobre o qual já pensamos e que por isso achamos legal não precisar pensar de novo.
Comecei ontem a ler um romance qualquer e me dei de cara com
dois bons exemplos.
Um nobre sobe na charrete ou tílburi (é século 19) e diz ao seu cocheiro que siga para a rua tal. O cocheiro diz, nervoso: “Mas, senhor! Foi lá que...” E o nobre o interrompe: “Silêncio! Faça o que estou mandando!”
Eu já vi essa cena dezenas de vezes, com Peter Cushing ou Vincent Price ou Basil Rathbone insistindo em ir, na calada da noite, ao local do crime, ao local de assombração, ao local do feitiço.
Um nobre sobe na charrete ou tílburi (é século 19) e diz ao seu cocheiro que siga para a rua tal. O cocheiro diz, nervoso: “Mas, senhor! Foi lá que...” E o nobre o interrompe: “Silêncio! Faça o que estou mandando!”
Eu já vi essa cena dezenas de vezes, com Peter Cushing ou Vincent Price ou Basil Rathbone insistindo em ir, na calada da noite, ao local do crime, ao local de assombração, ao local do feitiço.
Em outra cena o personagem chega à casa de alguém e enquanto
espera fica olhando um quadro na parede, e o descreve. O parágrafo é cortado por um diálogo:
“Gostou? Foi pintado por Fulano de Tal” – e o dono da casa aproxima-se por trás
dele.
Lembrei desta cena porque eu mesmo já a escrevi tintim por tintim, e só o fiz porque a lera mil vezes antes, ou a vira na tela do Babilônia ou Capitólio.
Lembrei desta cena porque eu mesmo já a escrevi tintim por tintim, e só o fiz porque a lera mil vezes antes, ou a vira na tela do Babilônia ou Capitólio.
Em geral, um clichê fica tão bem impregnado na nossa memória que acaba brotando no mais indesejável dos momentos, ou seja, quando começamos a escrever. Nesse momento crucial, o jovem autor precisa ter autodistanciamento e boa memória.
E precisa ter por perto uma pessoa com credibilidade bastante e aproximação bastante para poder lhe dizer: “Velho, tire esse negócio aí, isso é o maior clichê.”
Um comentário:
Adorei isso que você escreveu sobre clichés. Trabalho com linguagem jurídica, e a minha, mais do que qualquer outra, é puro clichê - até porque tem que ser, pra dar velocidade á produção em massa, senão, não se dá conta de tantas demandas.
Gosto de autores que fogem dos clichês e me surpreendem. Depois de algumas décadas de leituras, a gente que mais ou menos espera o resultado de um evento ou diálogo em um livro - a menos que o autor seja daqueles que se preocupam em fugir do clichê.
Ser surpreendido é bom. Imagina o cocheiro dizendo ao senhor "Vamos lá, espero encontrar o que encontramos da última vez..." dando-lhe por fim um sorriso maquiavélico. Ah, isso nos dá vontade de continuar a leitura.
De sua fã.
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