domingo, 1 de junho de 2014

3514) Castelo de Drácula (1.6.2014)



O Castelo de Bran, na Romênia, está à venda por 73 milhões de euros.  Se eu tivesse o dobro disso sobrando, era negócio fechado, na certa.  É um castelo interessante, a julgar pelas fotos da matéria num saite português (aqui: http://tinyurl.com/q94ho8a). Duas imagens de um pátio interno lajeado, com um poço circular a céu aberto, para onde convergem claustrofóbicos cubículos, lembram o castelo de Drácula no Nosferatu (1979) de Werner Herzog. O castelo de Bran certamente serviu como modelo cenográfico a Herzog, porque é “o” castelo associado à figura histórica do sequioso Conde.  Havia outro, mas virou areia.

O castelo atrai 500 mil turistas por ano mas a manutenção é cara. Talvez ele valesse hoje apenas um quinto desse assombroso total, se não fossem os pesadelos que o semi-inválido (na infância apenas) Bram Stoker suportou, e o livro, em que ele os transfigurou em algo mais deliberadamente inventado e mais real.  O Drácula do romance de Stoker tem só uma beirinha factual em comum com o Conde Vlad histórico, mas tal como nos casos de Lampião, Alexandre e outros heróis, o vulto histórico é uma mera isca, um ímã inicial para produzir o primeiro movimento da imaginação.  Um indez de idéias.

Sabemos mais fatos históricos a respeito do Vlad Tepes real do que do Jesus Cristo real, do Homero real, do D. Sebastião real, e nem por isso estes todos são menos reais para nós.  Seria interessante se um Magomante da Crisoféia Sagrada daquela época pudesse ter chamado o conde Vlad ao Porão Encantatório, onde lhe mostraria na bola de cristal que seu nome no futuro estava associado a um dos maiores mitos satânicos daquele século não muito distante.  O Conde veria passarem no hipnoscópio todos aqueles rostos de dentes arreganhados, virar-se-ia para o Mago, diria apenas: “Isso não sou eu”. E o inocente do cientista seria empalado.

Vlad era um guerreiro cruel. Iria estranhar aquilo, porque não quereria ser outra pessoa (se pudermos pelo menos aceitar dando-de-ombros a premissa de uma tecnologia futurista para que ele tivesse tal acesso: aos dráculas dos quadrinhos, do cinema, do cartum, da pornografia, do gibi juvenil, da pulp fiction de operário e comerciário, dos videclips milionários, dos games humorísticos ou sadomasoquistas, etc.)  Vlad era um guerreiro rude, quase um urso armado.  Repeliria com brutalidade essa imagem dândi.  Ele era capaz de pôr abaixo a machado um pequeno bosque, e fazer dele um cemitério de prisioneiros empalados, mas não entendia que um homem pudesse ser tão capacho a ponto de cortejar uma mulher, efeminado a ponto de morder-lhe o pescoço, anormal a ponto de beber seu sangue.


sábado, 31 de maio de 2014

3513) Shakespeare (31.5.2014)



Dizem que o maior tributo intelectual já prestado a Shakespeare foram os numerosos ensaios e livros do crítico Harold Bloom.  O Bardo completa 450 anos este ano, e uma boa homenagem a ele talvez fosse ler os livros de Bloom. O “pobrema” é que eu me veria afligido por um surto de escrúpulos ao quadrado, e me diria: “Nesse caso, que tal ler as dezenas de peças que você ainda não leu?”.  Porque eu conheço mais ou menos duas peças do bardo (Hamlet, Macbeth), li algumas outras e desconheço a enorme maioria.  Que direito tenho de dizer que conheço o autor? Pelo menos a ponto de distingui-lo de outros?

(Esta – incidentalmente – seria uma experiência limite, um teste: quem de nós identificaria qualquer parágrafo, colhido aleatoriamente, de um dos seus autores favoritos? Ninguém!  Ou melhor: diferente de zero, mas estatisticamente pouquíssimos.)

A pouca biografia que há de Shakespeare parece até uma coisa boa, porque quando penso nele não penso numa pessoa, penso num estilo. Nada sei sobre ele a não ser os poucos fatos que a imprensa compartilha.  A pessoa dele é para mim tão desfocada e transparente quanto a de Chaucer, Francis Bacon, Marlowe, meros nomes e (no caso dele) um estilo.  Diferente de outros que, por proximidade cultural talvez, sempre senti como pessoas e livro juntos, nenhum primeiro, nenhum depois: Cervantes e Camões.

Shakespeare é transparente, holográfico, uma mente que parece não ter deixado corpo atrás de si, ter trabalhado apenas a beleza e a clareza da linguagem. Ele pegava seus enredos de qualquer lugar: crônicas históricas, sagas, relatos de família, poemas orais guardados na memória. Em cima disso, o cidadão projetava um Raios-Gama verbal de extrema amplitude e implacável nitidez, algo que mesmo meio milênio depois raramente se consegue de vez em quando, quanto mais como ele, a cada folha.

Sua magia é a mesma de Camões: como se concebe que quinhentos anos depois ainda escrevam quase como ele?  A resposta é que ele procurou em si mesmo a linguagem mais maleável, mais flexível, mais carregada de variantes, com uma riqueza retórica capaz de produzir, quase que fala-a-fala (do ponto de vista dos atores) frases de belo teor e que desafiam o ator (e a direção) a escolher entre uma no meio de mil possibilidades de interpretação.

Dá a impressão de que poetas como Camões, Dante e Shakespeare, mesmo tendo um conhecimento respeitável das línguas do passado, estavam, de algum modo e não se sabe por que motivos, tentando escrever na língua do futuro, na língua que conseguia se enriquecer e se simplificar sem contradição interna.  E ajudaram a criá-la. Que escritor, publicado hoje, será lido e (pretensamente) compreendido em 2600?


sexta-feira, 30 de maio de 2014

3512) De Bandeira para Rosa (30.5.2014)



O primeiro grande spoiler da minha vida literária foi num texto que hoje reencontrei meio por acaso. Para quem não sabe, spoiler é aquela revelação indesejada que estraga o prazer de uma narrativa: “O assassino é o Doutor Fulano.” Na arte da narrativa, contudo, existem surpresas, segredos e mistérios de toda natureza.  Eu via desde menino na estante da minha casa o Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, que já tinha folheado por curiosidade, mas considerei impenetrável. Sagarana eu consegui ler alguma coisa antes dos doze anos; mas aquele ali era proibitivo. Eu tinha apenas uma vaga noção da história e dos personagens.

Anos depois, li num jornal ou revista esta resenha/carta de Manuel Bandeira, de março de 1957, endereçada a Guimarães Rosa, e exprimindo as primeiras emoções de Bandeira diante da leitura do livro.  Como é inevitável, Bandeira se dirige ao autor meio que adotando a voz narrativa de Riobaldo, uma contaminação inevitável a qualquer leitor bom de verbo que tenha acabado de receber aquele choque monumental de palavreado de alta voltagem. (Aqui, a carta inteira: http://tinyurl.com/otpawfr).

E a certa altura Bandeira dizia: “E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. ‘Honni soit qui mal y pense’, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! nunca que maldei nada.” 

Eu li isso, ergui os olhos da página para a parede em branco.  Então o tal do jagunço Diadorim, brabo e feroz, que eu já vira aparecer no texto, era uma Joana d’Arc!  Uma donzela guerreira!  Como na época eu não tinha a menor intenção de ler o livro, dei de ombros e fui em frente.

E chego ao ponto. É aconselhável ficar discutindo esses segredos em público?  Todo dia nascem pessoas, Brasil afora, que ainda não sabem o segredo de Diadorim. Alguns milhares lerão o livro de Rosa daqui a 20 ou 30 anos. Até então, o segredo será mantido?  Para uma geração mais jovem do que a minha, Diadorim é Bruna Lombardi, ou seja, tchau segredo.  Quando li aquelas terríveis sessenta páginas derradeiras do romance, ao longo daquelas fugas, dos cercos, dos confrontos, da batalha apocalíptica, a coisa que menos importava ali era o sexo dos anjos.  Rosa deve ter pressentido que o segredo da sua Donzela Guerreira iria se esvaindo à medida que o livro se tornasse famoso, como ele devia ter certeza que iria ocorrer.  Mas o segredo, que numa literatura menor seria A Grande Revelação, acaba se minimizando, porque num grande livro há grandes revelações em cada parágrafo, em cada linha.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

3511) Meu Godzilla (29.5.2014)



A primeira imagem da minha adaptação cinematográfica do mito de Godzilla já mostra as profundezas do plâncton no fundo do oceano, no fundo daquele canyon submarino, aquela camada pastosa com centenas de metros de espessura, que há muitos milênios se deposita e sedimenta no fundo do Atlântico, encorpando ali uma sopa-primordial pastosa e fecunda, de onde certamente não foi nenhuma improbabilidade biológica que brotasse um dinossauro gigante, espécie possibilíssima de emergir nessas condições, visto que durante eras geológicas inteiras eles tiveram seus restos mortais e seu DNA varridos para baixo da superfície do mar, que é o tapete embaixo do qual a natureza esconde os seus próprios malfeitos.

Os primeiros cinquenta minutos do filme acompanham sem texto, só com imagens e ruídos, os milhões de anos de lento processamento eletroquímico, combinações genéticas sempre instáveis mas que um belo dia se estabilizaram em forma de um embrião enrodilhado, no interior de um ovo transparente, aquecido pelas correntezas vulcânicas que se infiltram por entre as placas tectônicas do continente. Durante os próximos 43 minutos de filme o ovo incha e a criatura se encorpa, protegida pelo casulo de água aquecida que também mantém à distância os predadores das profundezas, não acostumados àquele jorro escaldante. E a criatura cresce.

É por volta de uma hora e meia de projeção que o ovo, já do tamanho de uma montanha, se rompe, e dali de dentro emerge o corpo pesadão, cascudo, coberto de uma camada rugosa que protege a criatura do calor, do frio, da enorme pressão. E ela sente instintivamente que precisa emergir. E começa sua lenta ascensão para aquele ponto, nas trevas abissais, em que a pressão sobre seus órgãos é menor, é mais aliviante.  Como uma tartaruga de alguma espécie semi-extinta, ela agita os membros, devagar, e devagar sobe.  Do seu primeiro impulso para cima até o momento em que sua cabeça pela primeira vez emerge e vê somente o oceano em volta e o céu noturno estrelado, serão mais vinte, vinte e cinco minutos.

Entre meios-dias e meias-noites a criatura, à tona, percebe enormes vultos que passam, maciços e iluminados, sempre longe, sempre muito além. Mas indicam uma direção, e a criatura a segue.  Quinze minutos depois surge um clarão no horizonte (sempre à noite) e a criatura vê escancarar-se à sua frente uma cidade portuária, feérica e fervilhante. A criatura se encaminha para lá, chega à praia, da praia às ruas.  A destruição que produz na cidade (que parece uma colagem de cidades aleatórias) recebe cerca de dois minutos e quarenta segundos de filme, e nesse ponto o filme acaba.


quarta-feira, 28 de maio de 2014

3510) Giger (28.5.2014)



Lamentei a morte recente do artista H. R. Giger, um sujeito de técnica brilhante e imaginação incômoda.  Ele é famoso pela criação do “Alien” da série do cinema, por muitas capas e ilustrações no gênero do horror e da ficção científica, além de uma participação no fracassado projeto de Duna dirigido por Jodorowski, que não deu certo mas ajudou a projetar vários artistas, Giger inclusive.

Giger era chamado às vezes de surrealista, mas não acho que fosse mais do que a maioria dos ilustradores e artistas do fantástico.  As justaposições inesperadas, os seres híbridos, as deformações, são elementos que hoje em dia estão presentes nos mais diferentes estilos.  Salvador Dalí tinha uma obsessão pelo chifre do rinoceronte, que aparece como uma forma recorrente em inúmeros quadros dele; Giger tinha fixação semelhante em crânios alongados, como o do Alien. 

As hibridizações entre o mecânico e o orgânico são lugar comum na ilustração de FC/horror. Giger fazia as dele com uma variação maior de monstruosidades aparentes.  Seu olhar era o olhar de um cientista louco, e ele até parecia bastante com o Rothwang de Metrópolis (1926), com aqueles cabelos brancos e as olheiras de gênio insone. Seu mundo era um mundo assustador onde tudo era monstruoso mas ao mesmo tempo tudo era atraente. Um mundo tecno-pagão, povoado por depravações biológicas e ciência gótica.

Giger pode ser encampado pelo cyberpunk, pelo steampunk, pelo biotech, por qualquer ramificação que possa envolver o mecânico, o monstruoso, o atraente e o carnal.  Não é um artista fácil para os que se incomodam um pouco com a visão de coisas fisicamente monstruosas, mas a cada geração o público se mostra mais receptivo a essas imagens.  Nada sei sobre a pessoa dele, mas sempre me pareceu um atormentado, tal como Lovecraft ou Cronenberg.

Aqui (http://tinyurl.com/k8wozj9) há uma pequena amostra da variedade do seu trabalho, que se expandiu até capas de álbuns de rock e bares temáticos. Tem sempre alguma coisa que nos perturba e nos fascina nesse mundo soturno de próteses, tentáculos, dutos metálicos revestidos de mucosas, crânios vivos sem pele, articulações presas a parafusos e rebites, superfícies plásticas revestidas de pelos, “dreadlocks” longos como colunas vertebrais, dedos humanos que lembram o corpo de um anelídeo e a pata de um caranguejo, salões mobiliados dentro de cavidades digestivas, narizes que lembram pênis junto a bocas que lembram vaginas, tubulações flexíveis mas que parecem feitas de osso, tendões servindo de piercing num corpo de inseto, o contubérnio e o conúbio entre palavras monstruosas, substâncias alienígenas e obsessões reprimidas.


terça-feira, 27 de maio de 2014

3509) Prosa simplificada (27.5.2014)



(Ray Bradbury, por Selin Arisoy)

Em 1979, no posfácio de uma reedição de Fahrenheit 451, Ray Bradbury escreveu: “Cinco anos atrás, os editores de uma antologia para estudantes lançaram um volume contendo 400 contos. Isso mesmo, quatrocentos. Como se faz para colocar 400 histórias de Mark Twain, Poe, Irving, Maupassant e Bierce num único volume? É a coisa mais simples do mundo. Esfole. Esquarteje. Extraia a medula. Retalhe, derreta, corte e destrua. Cada adjetivo que conta, cada verbo que comove, cada metáfora que pese mais do que um mosquito – fora!  Cada comparação que possa fazer mover os lábios de um sub-retardado – fora! Cada digressão que possa explicar em duas linhas a visão filosófica de um autor de primeira classe – fora!

“Cada história – adelgaçada, definhada, censurada, sanguessugada até a derradeira palidez – estava igualzinha a qualquer outra. O estilo de Twain estava igual ao de Poe que estava igual ao de Shakespeare que estava igual a Dostoiévski que estava igual – no fim das contas – a Edgar Guest.  Cada palavra com mais de três sílabas tinha sido cortada a navalha. Cada imagem que exigisse mais do que um instante de atenção tinha sido fuzilada a queima-roupa”.

Bradbury era um escritor de estilo exuberante, florido, repleto de imagens, de símiles, com um vocabulário transbordante.  Para ele, tirar essas palavras em benefício da mera compreensão da história era uma deformação imperdoável. Para autores assim, as palavras não são um mero veículo para idéias, elas são criaturas em si mesmas. Afinal, uma palavra também é um ser humano.

Por outro lado, o mercado editorial precisa atrair pessoas de escolaridade sacrificada e difícil. É preciso dispor de uma boa variedade de textos que não afugentem esse leitor limitado logo na página 1.  Numa cultura literária pomposa e hipócrita como a nossa, em que “saber palavras difíceis” é considerado uma prova de inteligência, vocabulário se torna proporcional a status.  Nossos beletristas gostam de se pavonear com penas de vocabulário. Não é o caso, por exemplo, de Bradbury, que mesmo sendo um autor às vezes meio auto-indulgente com os próprios cacoetes, está defendendo uma visão que acho correta.

É útil dispor de adaptações, versões condensadas dos clássicos, mas que sejam oferecidos como tal, senão seu texto expurgado acabará se sobrepondo ao texto original.  Que o caráter de “texto inspirado em” continue a ser, como tem sempre sido, claramente destacado na capa e em todas as formas de publicidade da edição. Se o leitor tem o direito de ter acesso a uma versão reduzida, modificada, facilitada, tem o direito também de não ser levado a confundir aquilo com a obra original.


domingo, 25 de maio de 2014

3508) Os outros Sertões (25.5.2014)



(ilustração: Gabriel Arcanjo)

Se eu fosse dono de uma editora profissional e Euclides da Cunha me trouxesse o manuscrito de Os Sertões para avaliação, eu diria (claro, desde já beneficiado por quilômetros de leituras e séculos de discussão que não posso eliminar da memória estalando o dedo):

“Doutor Euclides, seu livro é um monumento. O que tem de literário é magnífico, e o que tem de científico é rigoroso e ousado.  Mas como todo monumento ele tem as dimensões de uma montanha. É preciso aproximar-se dele aos poucos, conquistá-lo por estágios sucessivos. O senhor sabe disso.  Tanto é assim que escolheu uma gradação do mais amplo para o mais específico: a paisagem, os personagens, e por fim a luta.  Mas pense se essa estrutura fosse invertida. Primeiro, a Luta, a sangrenta batalha de Canudos.  Finda esta, é como se o nosso ponto de observação se distanciasse, e víssemos o Homem, populações inteiras agindo, nascendo, morrendo, lutando. E depois a Terra, a terra que precedeu a nós todos e que nos sucederá, a terra eterna, a terra que resistirá a tudo, até a nós.”

Acho que Euclides exclamaria “Humpf!” e iria em busca de outra editora. Publicaria o livro exatamente como ele está até hoje, que invalida meu universo paralelo acima. Mas há precedentes. Consta que a ordem dos capítulos do Almoço Nu de Burroughs foi determinada pela ordem em que eles chegavam pelo Correio aos responsáveis pela edição, que eram Allen Ginsberg e Jack Kerouac. (Eu dou por vista a aventura que é trabalhar com dois produtores ajuizados como estes.)

Meu Sertões seria uma versão convincente por si só, sem precisar de comparações com a versão real.  Parece que Euclides quis de propósito tornar o primeiro degrau o mais alto de todos, o primeiro trajeto o mais penoso e comprido.  Fez como Dante, que começou a sua Comédia pelo inferno, como que sugerindo que não há nenhum caminho para o Paraíso que não tenha de atravessar aquilo mais cedo ou mais tarde.  O Purgatório meramente prepara a queda de paraquedas no Paraíso.

No meu, primeiro a batalha!  Não duvido que arrebatasse os leitores.  Mesmo que só lessem isso, teriam tido uma experiência literária inesquecível. Incompleta, claro, mas qual é a experiência literária completa?  Muitos quereriam ler, depois do relato do massacre, a descrição da vida e dos hábitos do vaqueiro.  Seria como ressuscitar os jagunços mortos. A vida continuava.  E na terceira parte, como numa bomba de nêutrons, os humanos desapareceriam e ficaria somente a terra árida, a terra desolada, a terra do sol, a terra perseguida; e a última coisa no mundo seria a descrição científica e impessoal dessa terra sem ninguém.





sábado, 24 de maio de 2014

3507) FC e Surrealismo (24.5.2014)



(Ilustração: Richard Powers)

Em princípio são duas coisas que não têm nada a ver. 

O Surrealismo gerou os estilos (ou propostas de novos estilos) mais excêntricos de sua época e de muitas outras, ao passo que a ficção científica, embora imaginativa em termos de enredos, sempre tendeu a uma narrativa tradicional, mimética, com uma sintaxe estruturalmente conservadora (ou seja, com começo, meio e fim, nesta ordem). 

Difícil conciliá-las: a doutrina da escrita de-pernas-para-o-ar (sem pensar, sem refletir, drenando sua energia do sonho, do delírio, do trauma) e a literatura da imaginação cartesiana, capaz de conceber e ilustrar uma teoria original do universo e ter personagens com que um leitor médio consegue se identificar.

Creio que vale o mesmo que dizemos sobre surrealismo e cinema. Uma coisa é praticar escrita automática; qualquer um pode pegar uma caneta, fechar os olhos, e despejar ali o que lhe passa na cabeça. Outra coisa é tentar fazer isso enquanto tem que dirigir uma equipe de cem pessoas, tomar decisões logísticas, financeiras e estéticas das seis da manhã à meia-noite, berrar em megafones, suportar bombardeios da imprensa.  Será possível um surrealismo aplicado a uma profissão tão administrativa quanto “diretor de cinema”?

Buñuel, Lynch e outros parecem ter um procedimento básico que a FC pode adotar. O Surrealismo, no que tem de liberação inconsciente e não-programada, ocorre em duas instâncias: na concepção original, geralmente o argumento, que pode ser tão surrealista quanto o de Um cão andaluz; e na possibilidade de improvisar, fazer mudanças de surpresa, imprevistas, no momento mesmo da execução. 

Buñuel tinha essas venetas, que produziam algumas de suas imagens mais desconcertantes.

O espírito do surrealismo está presente, por exemplo, em Philip K. Dick, e digo espírito porque não me consta que Dick fosse fã de Breton e companhia. Dentro das suas obsessões recorrentes, a narrativa de Dick era muito movida pelos ventos da veneta, do repente, da cena ou personagem caídos do céu. 

Outros autores ficam mais próximos do surrealismo pela heterogeneidade cultural entre seus ambientes e personagens, como Cordwainer Smith. 

Outros pela imaginação desenfreada e sem precisar dar explicações, como muitos autores de pulp fiction. 

Outros por vasculhar do lado negro da ciência e o lado tenebroso do ser humano, como J. G. Ballard e William Burroughs.  

A imprevisibilidade e o jogo de choque desencadeado pelo acaso ou por processos artificiais (neste ponto a Oulipo herdou algo do surrealismo) é um recurso tecnicamente modernista que a FC pode aplicar com lucro nos seus formatos clássicos e no seu banco-de-dados imaginativo.




sexta-feira, 23 de maio de 2014

3506) "Quarenta Dias" (23.5.2014)




Esse romance de Maria Valéria Rezende, recém-saído pela Alfaguara/Objetiva (Rio) é a história de uma viagem à rua.  Ele produz, em muitos momentos simples e verazes, quase documentais, a vertigem de quem pula numa cidade como quem pula num barreiro, ou, pra ficar mais proporcional, numa piscina de clube cheia de gente desconhecida. A rua, sem ter onde dormir nem o que comer. Os Beatles já retrataram magicamente essa voragem do desconhecido: “Saí da universidade, gastei o dinheiro, não vejo futuro, não pago aluguel, o dinheiro voou, nenhum lugar para onde ir. Oh, aquela sensação mágica: nenhum lugar para onde ir” (“You Never Give Me Your Money”). 

Seria injustiça chamar de existencialista um livro que nada teoriza e parece feito só de existência, mas nesse caso o nome se aplica de qualquer jeito.  É a história de você passar a vida carregando nos ombros e acima da cabeça um homem-da-meia-noite ou mulher-do-dia criado por você mesmo e por todos que o conhecem.  Construir um Eu Visível e usá-lo como um supermamulengo pela vida afora. De repente você percebe que você e seu personagem são duas coisas diferentes. Quem quebra seu Eu consegue ver através do de todo mundo.  Vem a liberdade de poder ver como todo mundo é, como tudo é, por dentro do boneco-gigante-de-si-mesmo.  Existe uma certa crueldade indispensável em toda auto-libertação.

Mulher conversa com diários. Dá-lhes nomes de amigas reais ou de imagens da moda. O diário é sua melhor amiga: “Olha, Barbie, sabe por que eu falei isso pra Mamãe? Porque ela é uma chata!  Isso mesmo, uma grande chata.”  Uma menina se queixando a outra menina da maneira como outra menina criou outra menina. “A idade adulta sumiu, comprimida entre a juventude esticada até o limite do indisfarçável e a tal da melhor idade” (p. 55)

É a história de Alice, uma mulher nessa faixa etária “zona fantasma”, que se muda de João Pessoa para Porto Alegre ao longo de uma desilusão afetiva, e procura numa cidade desconhecida  fazer alguma coisa, mesmo pequena, mas que valha a pena. Quando a bolha explode, ela vira uma espécie da “Velha Dama Indigna” de René Allio ou Dora de Central do BrasilUma Alice que ao invés de variar de tamanho varia de idade, pulando de menina para velhinha fatigada, daí para mulher madura e compreensiva, sempre com passagens pela menininha antes de voltar à jovem cheia de expedientes, capaz de pequenas vitórias. Fica apertando e folgando os próprios conceitos como quem aperta e folga roupas. E descobre a rua, descobre o que é se sentir sem lar, sem uma casa para onde voltar, como uma completa desconhecida, como uma pedra rolando.



quinta-feira, 22 de maio de 2014

3505) Poemas para a defunta (22.5.2014)




(The Tomb of Ligeia, 1964)

Quando sua noiva Alice morreu, depois de meses de luta contra uma doença implacável, Karl pensou que iria enlouquecer. Durante o velório e os preparativos para o sepultamento, parentes se revezaram ao seu lado, atentos a qualquer gesto de desespero. Sabiam o quanto ele era emotivo, melodramático, precisava externalizar tudo que sentia. Viram com alívio, contudo, que ele dedicou aquela última e interminável noite à compilação de todos os poemas que escrevera para Alice, principalmente durante as semanas de sua agonia final. Na manhã seguinte, na hora das últimas despedidas antes de fechar o caixão, ele aproximou-se, ficou alguns minutos murmurando algo em voz baixa, e por fim colocou entre as mãos postas dela o grosso maço de folhas manuscritas, atadas com uma fita de seda: os poemas, sem cópia, que pertenciam a ela e só a ela. E assim foi enterrada.

O tempo passou, e com ele as coisas que o tempo traz. Karl concluiu seu curso, foi morar na capital. Continuou a escrever; a poesia era não somente a cura para o sofrimento mas o registro da descoberta de novos mundos, novos horizontes. Frequentou a corte. Fez amigos. Amadureceu; conquistou cargos e posições, e quando começou a publicar seus primeiros livros, os novos poemas foram acolhidos com entusiasmo e reverência. Ninguém os amava mais do que Dorotéia, a bela filha de um embaixador, em cujos braços ele encontrou por fim a felicidade que lhe fôra negada.

Um ano depois marcaram o casamento, e o editor de Karl sugeriu que publicasse um novo livro para comemorar a data. Foi Dorotéia que, sabendo do noivado tragicamente interrompido, sugeriu-lhe que tentasse recuperar os manuscritos sepultados. Seria uma aventura romântica, que iria projetar ainda mais seu nome. Karl, que secretamente já se arrependia do que fizera, concordou.  Combinaram que só revelariam tudo depois de feito, e embarcaram no trem para a cidade natal do poeta.

A noite estava quente e enluarada. Entraram ele e ela no cemitério, trajando roupas rústicas, armados de pás. Afastaram com dificuldade a lápide, e puseram-se a cavar. Karl estava possuído por uma sensação de eterno retorno, como se não fosse a primeira vez que aquilo lhe acontecia. Quando a pá bateu na tampa do ataúde, os dois desceram, e dentro do buraco acenderam uma lanterna. Desparafusaram a tampa, ergueram-na. Soltaram um arquejo de horror; não diante do esqueleto vestido de branco, ao qual se agarravam ainda pedaços de pele mumificada, mas à vista das páginas espalhadas por todo o ataúde, minuciosamente rasgadas, deliberadamente destruídas, friamente reduzidas a farrapos e vingança.