sexta-feira, 8 de novembro de 2013

3338) Pague o músico! (8.11.2013)




Circula pela web (recebi via Twitter do ilustrador Renato Alarcão) um email assinado pelo músico N. J. White, endereçado a uma tal “Zoe”, de um canal de TV britânico, que, aparentemente, escreveu para ele pedindo a liberação, sem pagamento, de alguma música ou trecho de música de autoria dele, para inclusão em algum tipo de trabalho. Esses detalhes não ficam muito claros, mas não importa. Importa a resposta do músico e seus argumentos. Faço pequenos cortes na mensagem original, que é bem mais extensa, mas o essencial vai aí abaixo.

“Prezada Zoe: (...) Estou de saco cheio desse papo furado, dessa inevitável frase: ‘Infelizmente não temos verba para a música’, como se alguma permanente Lei do Universo tivesse proferido um triste e imutável veredito impedindo você de destinar verba para a música. É a SUA empresa quem determina as verbas. Foram vocês que decidiram não destinar verba para a música. Vivo recebendo mensagens desse tipo, toda semana, enviadas por uma indústria de mídia rica, globalizada.

“Por que é assim? Vamos dar uma olhada em quem somos, eu e você. Eu sou um músico profissional, vivo da minha música. Levei metade da vida para aprender minha técnica, e anos para subir na estrutura da profissão até chegar a um ponto de receber mensagens de estranhos como você. Minha música é uma propriedade conquistada com muito esforço. Já licenciei música minha para alguns dos maiores programas, marcas, games e produções de TV, desde Breaking Bad até Os Sopranos, da Coca-Cola a Visa, da HBO até Rockstar Games. Você teria coragem de abordar um Diretor com um currículo assim, e, com uma simples frase cínica, pedir-lhe que trabalhasse de graça?

“É o menosprezo pela música, culturalmente impregnado na SUA profissão, que leva vocês a desdenhar o quesito ‘música’ sempre que possível. Vocês pagarão, sem questionar, a qualquer pessoa envolvida numa filmagem, (...). O músico? Ele que trabalhe de graça. (...) Você trabalha numa empresa financeiramente próspera, bem sucedida, reconhecida no mundo inteiro, com um portfólio cheio de sucessos. (...) Vocês têm dinheiro, sim, e fingir o contrário chega a ser um desaforo. E me manda esse pedido esfarrapado, “dê-me seu trabalho de graça”. (...) A resposta é um sonoro e definitivo NÃO”.

White termina a carta dizendo que está remetendo cópias para vários websaites e blogs voltados para a música, e encorajando os colegas a fazerem o mesmo. É o que estou fazendo. Dona TV (etc.), pague o músico! Pague o poeta, o escritor, o ilustrador, o fotógrafo, o ator... Nenhum email dizendo “Não temos verba para roteiro” já foi enviado por uma pessoa que estava trabalhando de graça.


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

3337) Tome uma pela gente (7.11.2013)




De vez em quando um governo proíbe o consumo de uma droga bem popular no país, com as consequências que já se sabe. Cem anos depois, a droga volta de vento em popa, e do Governo que a proibiu só restam bustos de gesso, medalhas comemorativas e nomes de ruas.

Foi o caso da Lei Seca, quando os EUA proibiram que se bebesse bebida alcoólica no país. Durou de 1920 até 1933, e, como disseram vários historiadores, ali nunca se bebeu tanto, e nunca se bebeu tão mal. 

Arthur Machen afirmou: “Proíbam um homem de beber uma bebida alcoólica decente, e em breve ele estará alegremente bebendo álcool puro”. Os norte-americanos beberam álcool impuro durante 13 anos. O uísque era fabricado nas banheiras dos apartamentos, com ingredientes improvisados, e vendido por qualquer preço. 

A Máfia, um obscuro grupo de bandidos imigrantes, tornou-se uma das principais forças do crime organizado no país, graças à fabricação e venda daquilo que o Governo, ao invés de administrar, resolveu proibir. Triste do poder que não pode.

Li a notícia (http://bit.ly/1bshw4N) de que numa reforma realizada num dos edifícios da Universidade de Fairleigh (em New Jersey) foi encontrada uma lata de tabaco contendo uma folha manuscrita, uma verdadeira “cápsula do tempo”.  A lata estava embutida numa das paredes; quando foi aberta, encontrou-se a nota que dizia: 

“Estes banheiros foram remodelados em 1932. E. J. Parsons de Morristown fez os encanamentos, e Edw F Daniher de St Madison fez o revestimento. Outros homens que aqui trabalharam foram: (... – segue-se uma lista de nomes.) Foi durante a Lei Seca, e foi um trabalho feito sem tomar uma dose sequer. Quem encontrar esta nota, se a Lei no. 18 tiver sido revogada, tome uma pela gente”.

A Lei 18 era justamente a que entrou em vigor em 17 de janeiro de 1920, proibindo as bebidas alcoólicas. Atentem para o detalhe subversivo da “cápsula”, porque quem a colocou ali não hesitou em dar os nomes dos envolvidos no trabalho, e, mesmo admitindo que não tinham bebido nada durante aquele período, o teor da mensagem podia ser considerado (e certamente seria, basta imaginar as figuras que lessem aquilo) uma “apologia do uso das drogas”.

Um professor da Universidade local explica que (como sempre) a Lei só serviu para os pobres. Antes da sua promulgação, Ruth Vanderbilt Twombly, da elite local, “fez estocar na região uma tal quantidade de bebida que durou os treze anos da Proibição, e dava festas em estilo Grande Gatsby para mais de 600 pessoas”. 

Os operários não bebiam – assim como os remadores de Ulisses, na Odisséia, não tinham permissão para ouvir o canto das sereias. Quanto mais muda mais continua a mesma coisa.







quarta-feira, 6 de novembro de 2013

3336) O futebol da Paraíba (6.11.2013)




Acho que a esta altura de 2013 já podemos dar por encerrado o ano futebolístico na Paraíba. Foi um ano em que o Treze, animado pelo simbolismo numérico, preparou-se para grandes jornadas e grandes conquistas. As jornadas foram memoráveis, sem dúvida; somente as conquistas não vieram. Paciência.

Acabou sendo um ano vitorioso para o Botafogo-JP, que ganhou o campeonato paraibano e o título da Série D, e para o Campinense, campeão da Copa do Nordeste. O Galo ciscou bastante, e muitas vezes, com equipes inferiores aos adversários que enfrentava, conquistou grandes resultados. Mas título, que é bom... nem de eleitor.

Houve (para mim, dos jogos que acompanhei) duas batidas-na-trave particularmente dolorosas, dessas de deixar o bico do Galo inchado durante um mês. 

A primeira foi a perda do título paraibano jogando em Campina, com todas as vantagens, contra um adversário que já havíamos derrotado fora de casa. Verdade que o nosso time era fraco, jogava defensivamente, chutando bolas pro mato, talvez tenha ganho alguns jogos importantes por pura sorte... Mas não adianta discutir. Decidir o título em casa jogando pelo empate é uma vantagem que não pode ser desperdiçada. E, como tantas vezes acontece, foi uma vantagem que acabou super-estimada. O time entrou em campo disposto a empatar de 0x0. Como todo time que faz isto, recebeu o merecido castigo. A bola pune. Prego na tampa do caixão.

Na Série C, o time, que havia sido desmontado e remontado após o fim do Paraibano, começou com uma campanha horrorosa, chegando a ficar na vice-lanterna. Depois foi se ajeitando e no segundo turno teve uma arrancada entusiasmante, com várias vitórias seguidas, dentro e fora de casa, contra adversários teoricamente superiores. Foi para o último jogo precisando de um empate, ou de uma derrota simples com muitos gols. Perdeu a classificação para o Vila Nova num jogo de 0x2 em que teria lhe bastado um gol, um golzinho, para subir à Série B. Acanhado, travado, sem autoridade em campo, o time não conseguiu esse gol. (Tal como no ano passado, bastaria uma vitória a mais para ter subido.)

Vamos para 2014 e alguém deve alguma coisa a alguém. Devemos a nós mesmos um time menos vacilante, um time que perca quando for possível perder mas ganhe quando for preciso ganhar. Nossos principais adversários conseguiram botar a cabeça pra fora dágua, conseguiram respirar, têm pelo menos mais um ano de sobrevida. O Treze tem a obrigação de ganhar os títulos que deixou escapar este ano, e mais alguma coisa. Eu nem quero saber de Copa do Mundo em 2014. Por mim, o Brasil pode até perder a final pra Argentina no Maracanã. Bora, Galo! Quero ver serviço!


terça-feira, 5 de novembro de 2013

3335) Meus erros de português (5.11.2013)





Diziam os antigos que nenhum homem é herói para seu criado de quarto. Isso era num tempo em que os cavalheiros tinham um “valete” que os ajudava a levantar da cama, fazer o asseio pessoal, vestir-se, tomar o desjejum, e assim por diante. Quem contemplava o patrão em momentos tão prosaicos não podia jamais ter uma imagem idealizada dele.  Pois digo eu que nenhum escritor é um gênio para seu revisor. Quem revisa os textos de muitos literatos em voga acaba surpreendendo-os em momentos, deixa ver como é que eu digo, de incontinência estilística ou de pouca higiene gramatical. Todo mundo erra. Com a palavra os revisores, copidesques e tradutores que há por aí.

Isto nada tem a ver com o fato de que Balzac e Guimarães Rosa viviam em briga permanente com revisores e tipografias. Ambos gostavam de remendar, na hora de conferir as provas, coisas que tinham escrito há semanas ou meses. Todo escritor é assim. Rosa era do tipo que fazia uma “edição definitiva” e poucos anos depois fazia outra, que só faltava trazer no título a expressão “VALE ESTA”. Quanto à queda-de-braço pessoal de Rosa com os corretores ortográficos biológicos daquele tempo, poucas vezes um autor ganhou essa disputa com tanta autoridade. Depois de passado o choque inicial, deixaram-no escrever como lhe dava na telha.

Todo mundo erra algo. Eu sou vagaroso para me adaptar às mudanças das reformas gramaticais. Ainda levei anos escrevendo êle, fôrça, cafèzal. Ainda não sei usar direito o novo hífen, mas pelo menos já me resignei à perda do trema. Erro muito em regência, porque todas me parecem ter alguma lógica embutida. Erro em concordância, porque assimilei um certo linguajar de rua, acho naturais certas formas de escrever que deixariam um gramático indignado. Digo coisas como “há muitos anos atrás” e não considero erro. Por outro lado, tenho o costume de pluralizar o verbo: “houveram bons filmes este ano”, e isso sim, eu considero erro.

Mas discordo da gramática quando ela diz que “conserta-se sapatos” está errado. Não está não. O “-se” não é forma reflexiva, é um sujeito abstrato, coletivo, como em “fala-se que ele vai renunciar”. Fala-se inglês, vende-se revistas, aluga-se carros, solda-se a oxigênio. Para mim, tudo isto está correto.

Existe o que a gente erra porque não sabe mesmo, por desinformação, ginásio mal feito. E existem coisas que usamos meio com segurança e meio na dúvida, porque para nós elas estão numa zona crepuscular entre o adequado e o inadequado, que são conceitos mais precisos do que abstrações morais como “certo” e “errado”. Se pra mim fizer sentido e ao meu ouvido soar bem, eu tendo a achar que está certo.


domingo, 3 de novembro de 2013

3334) "Inferno de Wall Street" (3.11.2013)





Um dos poetas mais fora-de-esquadro da literatura brasileira foi o maranhense Sousândrade (1832-1902), obscuro apesar de ser uma pessoa de relativo destaque em vida, tendo sido presidente da intendência municipal em São Luís e candidato a senador; foi também o criador da bandeira do seu Estado. Além disso, sendo filho de um fazendeiro rico, teve uma formação cosmopolita, pois estudou em Paris (na Sorbonne) e depois viveu nos Estados Unidos, de 1871 a 1885.

Durante muitos anos ninguém encontrou um lugar para ele na poesia brasileira, tendo sido classificado como Condoreiro, Simbolista, Pré-Modernista. Coube aos irmãos Augusto e Haroldo de Campos fazer uma redescoberta e revisão de sua obra, destacando, como sempre faziam, os aspectos que indicavam afinidade com os princípios do Concretismo. Seus livros mais importantes são O Guesa Errante (1871-77), Harpas Selvagens (1857), O Novo Éden (1893).

Saiu agora em João Pessoa (Editora Idéia, 2013 – www.ideiaeditora.com.br) uma edição bilingue de “O Inferno de Wall Street”, um dos mais curiosos fragmentos de O Guesa Errante, poema que foi publicado aos poucos durante a vida do autor. O “Inferno” tem uma complicada história bibliográfica. A versão deste livro, organizado por Carlos Alberto Azevedo, traz as 176 estrofes deste fragmento, acompanhadas de sua tradução para o alemão, feita por Helga Rieck e Marli Woll-Tienes.

Não posso opinar sobre a tradução, sem saber a língua; a única certeza que tenho é que deve ter sido um trabalho mais difícil do que tanger uma corda de caranguejos. Os versos do “Inferno” são estrofes pequenas, de linguagem extremamente concentrada, com palavras em português, inglês, italiano, francês e outras línguas, repletas de nomes próprios e de referências culturais da época (anos 1870) que as tradutoras referenciam em 294 notas, que infelizmente só vêm em alemão. (Talvez pelo fato de se terem baseado nas notas dos irmãos Campos em seu Re/Visão de Sousândrade, Nova Fronteira, 1982, portanto disponíveis em português).

Pretendo voltar ao assunto do poema em si, que requer mais espaço, mas fica o registro desse trabalho bilingue muito importante para conhecimento de nossa poesia, dentro e fora do Brasil. (Alguns críticos brasileiros são tão eruditos que talvez entendam melhor a versão em alemão.) Aliás, as duas tradutoras já verteram para a língua de Brecht os poemas de Augusto dos Anjos, o que também não é propriamente um passatempo de fim de semana. Sousândrade, guesa-errante, cavaleiro-nauta, estrangeiro-universal, talvez nunca seja totalmente brasileiro, mas nunca é demais levar a outros públicos sua misteriosa poesia.


sábado, 2 de novembro de 2013

3333) Pistas policiais (2.11.2013)




Tive uma idéia excelente para um conto policial. Eu sou, aliás, o rei das idéias.  Se fosse menos preguiçoso, poderia até ter chegado a ser o rei dos contos policiais, mas escrever, escrever mesmo, concretamente, é um trabalho braçal que às vezes parece desnecessário, já que é tão mais fácil ter uma idéia atrás da outra, sempre colocando uma pedra em cima da folha para que o vento não a leve, e seguindo adiante. Basta abrir um arquivo, jogar um título, dar uma salvada rápida... A vida não foi feita para se perder, nem o tempo para passar. A vida tem mais é que ser pra sempre. O tempo tem mais é que descansar um pouco.

A idéia é: um sujeito é encontrado morto em seu escritório, e tudo indica ser um suicídio. Ele escreveu um bilhete e explodiu a cabeça com um tiro. O detetive examina o bilhete, que diz algo como: “Lamento por todos, mas é o jeito”. O detalhe é que a história se passa nos anos 1980, num mundo pré-computador, e o sujeito tem uma máquina de escrever elétrica. Essas máquinas elétricas tinham dois tipos de fita: a de algodão (mais barata) e a de polietileno. A de algodão rendia mais. Tal como as velhas fitas das velhas máquinas mecânicas, era um algodão embebido em tinta que admitia várias “passadas”, sendo que a cada passada a tinta ficava mais rala. Já a fita de polietileno era uma faixa negra e estreita, em direção única, onde o martelinho de cada letra cortava como guilhotina o formato exato de sua letra, e voltava ao repouso enquanto a fita se movia meio milímetro de lado e aguardava a próxima martelada.

Acho que não é preciso mais. Este conto devia ter sido escrito quando essas coisas eram novas. Tudo tem que ser escrito enquanto as coisas são novas. Quando a gente menos repara, as coisas envelheceram mais rápido do que nós. A idéia era que o detetive examinasse o cartucho de fita de polietileno, onde cada letra percute uma vez apenas, e reconstituísse na ordem reversa das letras todas as palavras que tinham sido datilografadas naquela máquina. E assim o detetive descobre que dois bilhetes de suicida haviam sido escritos: o verdadeiro (que foi destruído), e o que tinha sido encontrado junto ao corpo. Não houve assassinato, mas houve uma substituição de bilhetes (para efeito de herança, etc.).

E se a solução de um mistério detetivesco dependesse do criminoso (e o leitor, por tabela) entender o funcionamento e a estrutura de um candeeiro de querosene, ou de um alambique, ou de um moinho dágua? Quantas pessoas no mundo sabem como essas coisas funcionam? É duro repousar toda a trama de um mistério na chance de o leitor ter familiaridade com um detalhe técnico em vias de extinção.


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

3332) "The Golden" (1.11.2013)




Não sou um grande leitor de histórias de vampiros e o grande romance de vampiros, para mim, sempre foi e continua a ser o Drácula de Bram Stoker (1897). Existem outros, por certo; mas agora tenho a certeza de que numa prateleira dos melhores deve existir espaço para The Golden (1993) de Lucius Shepard, que acabei de ler. Shepard é um autor que nunca me decepciona, embora dele eu só conhecesse contos, alguns deles memoráveis: “A Spanish Lesson” (1985; pessoas em férias numa praia da Espanha descobrem um portal para um mundo de pesadelo), “Bound for Glory” (1988; um trem fantasmagórico viajando pelo interior); “Only partly here” (2003; um operário no Ground Zero encontra fantasmas de vítimas das Torres Gêmeas); “Nomans Land” (1988; um náufrago numa ilha é envenenado por aranhas alucinógenas). Este último eu traduzi para a edição brasileira da Isaac Asimov Magazine.

The Golden transcorre durante cerca de três dias e noites alucinantes, por volta de 1860, num castelo da Europa, durante o encontro d’A Família, a dinastia de vampiros que domina o continente. A Família tem ramificações rivais e fervilha em política. O objetivo desse encontro é apresentar “the golden”, uma jovem cujo sangue foi purificado e cultivado durante gerações, para ser saboreado por uns poucos felizardos (o sangue é descrito no livro em termos muito próximos dos usados pelos enólogos para falar de vinhos). Na primeira noite, a “golden” é assassinada, e o protagonista, Michel Beheim, um vampiro que foi chefe de polícia em Paris, é encarregado da investigação.

É um romance de detetive, um romance de intrigas palacianas (porque os vampiros são todos aristocratas, sofisticados, ambiciosos, cruéis, “traíras”) e uma história de terror sobrenatural que extrai muito do seu impacto na descrição do Castelo Banat, uma construção gigantesca com quilômetros de altura e de extensão, e uma arquitetura interna que lembra os espaços fantásticos de Escher e Piranesi, além de castelos literários famosos como o Gormenghast (1946-59) de Mervyn Peake. A prosa de Shepard é consistentemente brilhante, rebuscada, exótica, colando-se ao tema e ao ambiente como uma pele. Seus personagens são sempre problemáticos, com caráter oscilante, sujeitos a vilezas e a decisões erradas, e sempre pagando caro o preço de seus vacilos. Shepard é um dos melhores autores da Fantasia Tenebrosa (“dark fantasy”) norte-americana; tem um universo moral próprio onde não faz muita diferença se o gênero é FC, terror ou fantasia. É um mundo sombrio, violento, de imaginação desmedida e insólita, que se torna mais real pelo vigor da sua prosa e pela crueza dos seus sentimentos.


quinta-feira, 31 de outubro de 2013

3331) Ghost Watchers (31.10.2013)



“Ghost Watchers” é um clube criado em 1998 por um grupo de entusiastas do espíritismo. Não pertencem à religião espírita; são indivíduos que tratam a mediunidade, a vida após a morte e a comunicação com os espíritos de maneira científica, pragmática. 

Investem nas faculdades mediúnicas (que têm de nascença) com o auxílio de drogas legais, disciplinas, exercícios de atenção e de concentração. 

Ficam sensíveis à presença do ectoplasma, de cujas manifestações, dizem, o mundo está cheio, mas são tão irreais para nós quanto um arco-íris para um cego.

Existem reservas de espíritos em determinadas regiões, assim como reservas de pássaros em certas áreas no campo. Na noite em que entrevistei membros do grupo, eles estavam concentrados, passeando como se fossem turistas, no quadrilátero de quatro esquinas: o vetusto hotel, a praça confortável, o cinema outrora imenso, e uma fila de restaurantes lado a lado. 

Fizemos uma visita guiada. Meu favorito foi um menino com a camisa de um time de futebol (que nenhum de nós sabia qual era), fazendo proezas na faixa de pedestres enquanto os carros o trespassavam como a um holograma. Numa alameda lateral da praça vimos desfilar um casal, a mulher com um bebê vistoso ao colo, o homem com chapéu panamá e bengala de castão. Também registramos a presença de uma moça com a blusa aberta, o cabelo preso, rindo e falando num orelhão invisível, ou que talvez não existisse mais ali.

A ruela lateral do teatro é uma mina, porque para ali convergem, mecanizados pelo hábito ou atraídos pela concha repleta de calor humano, todos os vagabundos invisíveis que não entendem direito o que está se passando. 

Vi um exemplar de flashers, aqueles espectros que surgem de repente, tornam real uma cena incrivelmente vívida, e somem logo sem deixar rastros, consumida toda a energia que tinham. 

Vi um Ecto-penitente, que se gruda ao braço dos passantes e o acompanha desfiando seu rosário de penas, cuja depressividade a vítima acaba assimilando sem ter noção do que lhe acontece.

Na segunda noite (de um sábado para um domingo), vimos um número maior, porém menos nítido ou menos focado. Casais de namorados, grupos de amigos abraçados, cantando rua afora. Pessoas conversando baixinho durante horas. 

Explicaram-me que, ao contrário da crença popular, os fantasmas ficam revivendo seus momentos felizes, não vêm pedir nada, prantear nada. Vem visitar este mundo porque é aqui que deixaram gravadas suas lembranças. “É como se o mundo,” disse-me ele, “fosse o suporte onde estão aprisionadas as lembranças deles, e eles ficassem girando nelas, e assim se tornam eternos”.




quarta-feira, 30 de outubro de 2013

3330) Por que não deu certo? (30.10.2013)




(by Niki Feijen)


Até agora não entendo. 

Tudo era céu de brigadeiro e mar de almirante. Tudo fluía sem solavancos, tudo se encaixava com um clique sólido e controlado, e daí em diante era apenas seguir o manual, ir conforme o figurino, não inventar, fazer o feijão com arroz, tocar a bola no meio de campo e esperar que os mecanismos continuassem no tiquetaque reconfortante de tudo que se desenrola de acordo com o planejado. 

E era tão bom olhar o horizonte e imaginar mil horizontes de possibilidades, um leque de possibilidades felizes competindo entre si por nossa atenção.

Falta de esforço não foi. Não foi por falta de suor físico e de angústias mentais. Nem por falta de insônias,  naturais ou provocadas por agenciações químicas de toda ordem. 

Também não foi por falta de sono, esse eterno bom conselheiro, esse apaziguador de tormentas, só que no presente caso o solvente universal não funcionou e na manhã seguinte o enorme pedregulho continuava intacto e parecia até mais cheio de arestas. 

Tentou-se tudo, e de todo jeito. Não deu certo.

Quando as coisas não dão certo, até os mais encarniçados resolvedores-de-problemas precisam se conformar com o irremediável, precisam engolir o sapo, assimilar o golpe, administrar a dor, aceitar que de agora em diante o argueiro faz parte do olho e o tigre vai morar com a gente. 

E não deixa de ser divertido observar como um Himalaia de argumentos começa a ser transferido de lugar para re-equacionar a conjuntura, e o dicionário está cheio de rasuras e borrões pois as palavras estão mudando de significado.

É difícil ter paciência para enfrentar as intermináveis perguntas alheias, porque os sucessos nunca despertam tanta curiosidade quanto os fracassos; e quando se espalha a má nova de que uma empreitada qualquer deu com os burros nágua e a vaca no brejo, orelhas se empertigam em volta do mapa múndi, olhares se dirigem todos para a vítima indefesa ou para o réu sem fiança. 

Todos querem saber por que foi, como foi, como não foi, o quê que aconteceu, o que poderia ter sido feito e não foi, o que não deveria ter sido feito e acabou sendo. 

Nos olhos dos perguntadores brilha a ansiedade em recolher lições e aplicá-las em seu próprio futuro, e a cintilação maligna de quem, enquanto anota, vai pensando: “Tá vendo? Bem feito”. 

É duro quando não dá certo, chega a dar vontade de dizer que a alegria do possível êxito não compensa o risco da depressão pelo possível fracasso, mas quem somos nós para dar conselhos – porque se nosso conselho valesse de alguma coisa era justamente porque somos alguém capaz de fazer as coisas darem certo. E dessa vez – é pena! – não deu.



terça-feira, 29 de outubro de 2013

3329) Lou Reed (29.10.2013)



(foto: Lou Reed)

Vivemos celebrando roqueiros como Janis Joplin, Jimi Hendrix, Amy Winehouse, que viveram todos os seus 27 anos no fio da navalha. O que dizer de quem estendeu esse prazo até os 71?  Lou Reed foi no rock a cara de um decadentismo high-tech que juntava rock americano com vanguarda poética fin-de-siècle, uma cultura da dissipação, um hedonismo dark.  Ao mesmo tempo, pegou carona na estética da androginia e do livre-amorismo dos beatniks e dos hippies que o antecederam. Seu primeiro grande voo foi sob a asa do rei da vanguarda dândi, Andy Warhol, e seus últimos anos foram vividos ao lado de Laurie Anderson, uma performer-pop que podia fazer-lhe frente, com luz e estética próprias. 

Era um cantor limitado mas bastava-lhe cantar um minuto para o ouvinte entender que os critérios ali eram outros. Quando em “Walk on the Wild Side” ele diz: “and the colored girls say / doo doo dooo...” é como se a música ainda não estivesse pronta e ele a estivesse mostrando a um amigo, descrevendo o que elas fariam neste trecho. Há um livro de Philip K. Dick em que o cara para diante de uma barraca de refrigerantes e quando vai fazer o pedido a barraca desaparece e fica em seu lugar, no chão, um papel onde está escrito: “Barraca de Refrigerantes”. Lou Reed diz: “Aqui, as morenas fazem du-du-du...”

Um jornal de São Paulo registrou no saite, durante o domingo: “Morre o guitarrista Lou Reed”. É um pouco como dizer “morre o dançarino Renato Russo” ou “morre o pandeirista Ringo Starr”. Reed tem uma frase famosa, que diz mais ou menos: “Uma música com um acorde está ótima, com dois está tudo OK, com três a gente já está entrando no domínio do jazz”. Uma estética não muito diferente da de Erasmo Carlos, que dizia algo assim, “três acordes e deixa que eu me viro”.

Poeta de vários estilos mas sempre à vontade nos domínios do Beat, da cultura que tenta juntar esses dois extremos: excesso e refinamento. Tinha interfaces poéticas com Ginsberg, tinha algo da autodestruição contemplada de Bukovski. Tem algo do ascetismo tecno-gótico de William Gibson, mas com uma carga de erotismo que em Gibson se manifesta pouco. Nunca pareceu levar o rock excessivamente a sério, mas ao mesmo tempo levou-o o bastante para ficar rico com ele, e para que os que gostam de rock o reconhecessem como um dos seus.

Morreu após um transplante de fígado, aos 71 anos. Para quem se aplicou quase todo tipo de droga e de excesso que lhe foi acessível, é uma façanha comparável aos mais de 80 anos de William Burroughs. Um dia, a longevidade dos nossos roqueiros causará espanto e incredulidade num mundo futuro em que gente assim jamais ultrapassa os vinte e cinco.