segunda-feira, 19 de abril de 2010
1933) Leonard Cohen (20.5.2009)
Num show recente em Londres, o poeta-compositor Leonard Cohen disse ao público: “Cantei aqui pela última vez há quinze anos. Naquele tempo eu era apenas um jovem, cheio de entusiasmo e ilusões”.
A graça está no fato de que o último show de Cohen na Inglaterra foi feito quando ele tinha 60 anos, e hoje ele volta aos palcos com 75.
Nada mau para quem já foi chamado “o poeta mais sisudo do rock”. Durante os anos 1970, aquela década cheia de glamour e purpurinas e roupas psicodélicas e androginia e guitarras estridentes, as canções introspectivas e monótonas de Cohen eram absorvidas por uma minoria de gurmês para quem substância e sabor valiam mais do que pose e aparência.
Cohen é comparado a Bob Dylan, pela qualidade de suas letras, mas a atitude dos dois para com a música não poderia ser mais diferente.
Dylan sempre foi um camaleão musical; experimentou todos os estilos, do country ao rock, do gospel ao blues, da valsa à balada. Há quem não o considere bom cantor (eu acho que foi um ótimo cantor em diferentes fases de sua carreira, e não o é mais), mas ele sempre teve uma abordagem de cantor ao interpretar as próprias músicas. Bem ou mal, o ato de cantar parecia mais importante para ele do que o ato de compor.
Um dos melhores analistas de sua obra, Paul Williams, desenvolveu ao longo da série de livros Bob Dylan, performing artist a tese de que para Dylan a canção gravada em estúdio era apenas uma versão provisória para algo que só iria acontecer de verdade, e imprevisivelmente, quando ele subisse ao palco.
Cohen, que nunca foi um cantor com a mesma vitalidade e versatilidade de Dylan, é hoje aos 75 anos o mesmo cantor contido, meticuloso e incisivo que era há meio século.
Seus discos saíram de forma irregular no Brasil, mas é possível ver no YouTube performances suas com trinta ou quarenta anos de intervalo, cantando a mesma canção, com a mesma articulação cuidadosa dos versos, reforçando pequenas sutilezas ou duplos sentidos ou ironias poéticas, das quais ele é um mestre completo. A voz está rouca, é claro, o rosto parece um pergaminho zen-budista, mas a suavidade no canto é a mesma.
Ao contrário de Dylan, que parece recusar-se a repetir a mesma melodia em duas execuções da mesma canção, Cohen parece ter dedicado toda a vida a lapidar as mesmas notas, como João Gilberto.
Dylan é mais compositor, porque mais musical, mais flexível e mais eclético. As canções de Cohen são mais “quadradas” e “caretas”, para usar termos da época em que ele surgiu. Seguem o esquema de estrofes sucessivas com a mesma melodia e letra diferente, intercaladas às vezes por um refrão. Um esquema que Dylan usou mas que também explodiu em variantes incontáveis.
Cohen é mais conservador nesse aspecto estrutural. Se ele tem uma canção de sete minutos, com um minuto e meio o ouvinte já sabe que vai ser aquilo até o fim, só que com versos diferentes. Quê que tem? Os versos dele estão entre os melhores do seu idioma no século 20.
1932) O perigo da série (19.5.2009)
Se usava muito antigamente. Quando víamos uma pessoa emproada, arrogante, metida a besta, dizíamos: “Fulano só quer ser o perigo da série”.
Vi há poucos dias um equivalente carioca: “Fulano só quer ser o gás da Coca-Cola”. Lembro de outra muito engraçada: “Fulano só quer ser o pitó de Gengis Khan”. E outra de fundo historiográfico: “Fulano só quer ser a bala que matou Kennedy”. Serve para descrever gente que só quer ser o centro das atenções, o altar das oferendas, o foco da curiosidade de todos.
“O perigo da série” porque nos antigos seriados do cinema, que em Campina eram exibidos aos domingos, na “matinal das 10 horas”, os capítulos terminavam sempre com o herói (ou a mocinha) numa situação dificílima, a ponto de morrer. Amarrado sobre os trilhos com um trem se aproximando a toda. Preso numa masmorra cujas paredes se fecham lentamente. Acorrentado no chão de uma cabana a que os bandidos põem fogo antes de fugir. Atado a um poste enquanto os zulus fervem um caldeirão de água e dançam em volta. Ou – mais classicamente – pendurado à beira de um abismo, segurando-se a um arbusto, ou uma corda, ou à mão de alguém que tenta puxá-lo para cima.
Este último momento tornou-se um clichê tão recorrente que virou substantivo e conceito literário: “cliffhanger”, o equivalente em língua inglesa a “o perigo da série”. Usa-se porque o herói está “pendurado num barranco” (“hanging on a cliff”).
Por algum motivo freudiano, esta imagem tem em nosso inconsciente profundas ressonâncias de angústia e medo. É a expressão mais pura da sensação de estar indefeso.
Já que falei em Freud, arrisco: o indivíduo pendurado sobre um abismo, e segurando-se apenas numa corda ou num braço estendido, sente-se como se retornasse ao instante do nascimento, quando foi trazido para um vazio gigantesco, e apegou-se apenas ao cordão umbilical para tentar (em vão!) retornar ao aconchegante universo anterior; para não “morrer”.
Deve existir algo de psicanalítico nesta imagem, para que se tornasse tão emblemática. Intriga Internacional e Um Corpo que Cai de Hitchcock, Blade Runner de Ridley Scott, Na linha de fogo de Wolfgang Petersen, King Kong de Peter Jackson...
Estes são os primeiros filmes que me ocorrem; cada leitor pode ampliar ilimitadamente esta lista. O que têm eles em comum? O mesmo perigo da série: a pessoa dependurada sobre o abismo, o “cliffhanger”.
Daqui a algum tempo um cinéfilo com bastante tempo livre vai produzir uma compilação dessas cenas de gente balouçando sobre o vácuo, apegando-se a uma mão salvadora ou a um fio de esperança.
Há outro motivo. A cultura de massas lida com nitidez, e repele a ambiguidade. Gosta de cenas inequívocas, cujo significado possa ser apreendido em um milésimo de segundo, e reiteradamente reconfirmado em cada segundo posterior.
Existe imagem menos ambígua do que a de uma pessoa solta sobre um abismo, gritando de terror, segurando-se num apoio precário e olhando para nós?
1931) Farrapos de canção (17.5.2009)

Era de sábado para domingo. Passava das duas da manhã e eu estava na sala, lendo T. S. Eliot. Dizer que a madrugada era silenciosa seria como dizer que o céu era brilhante, porque na rua adormecida brotava o barulho de uma festa na terceira casa à esquerda, do lado oposto ao meu prédio, uma casa onde algumas vezes por ano reúnem-se jovens para falarem todos ao mesmo tempo, dar gargalhadas, e ouvir discos cantando a plenos pulmões. O repertório musical sempre começa com os sucessos do momento, mas com o passar das horas vai atingindo camadas geológicas mais profundas. Em geral, às duas da manhã eles chegam aos anos 1970.
Foi então que ergui os olhos do livro. A canção que brotou de repente me era tão intimamente familiar que era de mim que parecia estar brotando. Uma parte de mim que até alguns segundos atrás eu não lembrava que existia. Como um músculo que usamos sem querer, num movimento imprevisto, e é como se ele nos dissesse: “Olha aqui, eu estava aqui, esse tempo todo”. A canção era medíocre, em inglês, com guitarras, um teclado monopolizante, uma tríade de vozes bem comportadinhas. Que banda era aquela? Nunca saberei, nem me importei com isto, porque naquele instante o que surgiu na minha mente foi outro momento, muitos anos atrás.
Eu estava de passagem por uma cidade estrangeira, sozinho, sem conhecer ninguém, sem falar o idioma, e desfrutando do prazer indescritível do anonimato. O formato das casas era diferente, o cheiro das ruas, o dinheiro, os rótulos das cervejas, as placas, os sinais de trânsito, as pedras do calçamento. Essa abundância de irrealidade me dava a liberdade gozosa de quem está sonhando, sabe que está sonhando, e sabe que pode fazer o que quiser, porque está só sonhando. Com as mãos nos bolsos e a mente nas nuvens, eu vagava de noite por entre uma multidão de extras, parando num bar, depois noutro, com a sensação triunfante de ser a única pessoal real no mundo inteiro.
Foi quando de repente, ao tomar uma cerveja num balcão, emergiu do aparelho de som, que até então só tocara músicas invisíveis aos meus olhos, uma canção em inglês, com guitarras, um teclado monopolizante, uma tríade de vozes bem comportadinhas. Metade do gole de cerveja voltou para o copo. Levei alguns segundos para me recuperar do susto, mas tudo que havia à minha volta foi contaminado por aquela canção americana que trouxe para ali, de golpe, de súbito, com a implacabilidade dos fatos consumados, uma madrugada remota num subúrbio de Campina, em que aos 20 anos tomei um pileque bukovskiano e alguns samaritanos me arrastaram para uma escadinha nos fundos do clube, na qual me livrei de tudo quanto me incomodava o corpo e a alma. Quedei-me ali ao som daquela canção, estirado, olhos cerrados, aplaudindo com as mãos do espírito aquela banda B cuja falta de talento me redimia da minha própria, e cujo esforço bem intencionado me aconselhava a persistir. Dei um suspiro e retomei a leitura dos Quatro Quartetos.
1930) As cidades intangíveis (16.5.2009)
Há uma piada antiga em que dois portugueses estão lá no interiorzão do Alentejo discutindo distâncias. Um deles diz que o lugar mais distante que existe é Lisboa. O outro aponta a Lua e diz: “Não, a Lua é mais longe”. E o primeiro: “Claro que não é. A Lua eu posso enxergar, e Lisboa está tão longe que eu não vejo”.
Como seria nossa visão do mundo se só pudéssemos acreditar na existência de lugares que vemos com os nossos olhos?
Eu nunca fui ao Paquistão, mas as provas da existência do Paquistão são convincentes. Acredito, mas por uma questão de fé, porque são afirmações alheias que não posso comprovar pessoalmente. Mas são informações tão numerosas, ordenadas, e coerentes entre si que é mais simples admitir que o Paquistão existe mesmo do que imaginar que a Humanidade inteira criou essa vasta conspiração para... para quê?
O fato de que já fui a Lisboa e nunca fui a Monteiro, portanto, não desnivela meu senso de realidade sobre as duas. Para mim são igualmente reais e concretas, mesmo que num caso eu tenha obtido provas empíricas abundantes, e no outro esteja apenas me fiando em informações de apologistas.
O fato de que já fui a Lisboa e nunca fui a Monteiro, portanto, não desnivela meu senso de realidade sobre as duas. Para mim são igualmente reais e concretas, mesmo que num caso eu tenha obtido provas empíricas abundantes, e no outro esteja apenas me fiando em informações de apologistas.
Sabemos conviver com essa dualidade, mas sempre que chegamos numa cidade pela primeira vez (existe emoção maior?) há uma espécie de alívio. “Ah, agora sim. Existe mesmo”.
A escritora russa, radicada nos EUA, Ekaterina Sedia ilustra essa situação com bom humor.
A escritora russa, radicada nos EUA, Ekaterina Sedia ilustra essa situação com bom humor.
Eu passei meus primeiros vinte anos atrás da Cortina de Ferro, onde a gente não tinha esperanças de conhecer nada fora do país. Lendo Victor Hugo, eu pensava: ‘Nunca vou conhecer Paris. É como se fosse uma cidade numa romance fantástico’ Fiquei estupefata quando descobri que Nova York existia de fato! Para mim, a maior parte da geografia mundial era fantasia.
É como a neurose compulsiva das pessoas que abrem de dez em dez minutos o armário para ver se as roupas continuam lá; ou como os namorados, que perguntam: “Você me ama?” – “Mas claro, falei que te amava, há dois minutos...” – “Me amava há dois minutos, mas, me ama agora?”. Creio que tudo vem daquela época da infância em que o bebê vira a cabeça e, ao ver a imagem da mãe sumir do seu campo visual, acha que ela deixou de existir, e abre o berreiro.
Nossa consciência cria o mundo ao percebê-lo. Como naqueles video-games em que o personagem é visível no centro de um espaço de uns cem metros, e o horizonte se perde em brumas indistintas. Quando ele caminha em qualquer direção, a paisagem distante surge, magicamente, estimulada pela sua presença. Ou como já disse Philip K. Dick:
Eles constroem apenas as partes do mundo necessárias para dar a ilusão de que ele é real. É um projeto de baixo orçamento. Países como Japão, ou Austrália, na verdade não existem. Não há nada, ali. A não ser que a gente decida viajar para lá, e neste caso eles constroem tudo às pressas, todo o cenário, os prédios, e as pessoas, a tempo de estarem lá na sua chegada. Têm que trabalhar muito rápido.
1929) A luta contra o material (15.5.2009)
Tenho às vezes, diante de uma obra de arte, a atitude injusta de olhar e pensar: “Mas que besteira, que coisa sem idéia! Se isso é obra de arte eu posso fazer também!” Quem pensa isso está ignorando (ou fingindo ignorar) o processo que leva à criação da obra e julgando apenas o produto final. Porque toda obra é processo e produto.
A vez mais recente em que cometi esse deslize foi ao ver no metrô de São Paulo uma escultura de Francisco Brennand, o “Pássaro Roca”, uma espécie de totem de cerâmica com a cabeça de uma ave no alto. “Grande besteira,” pensei. “É só isso? Um passarinho em cima dum poste?”
Grande injustiça, isso sim, e não porque se trata de Brennand, a quem muito admiro. A injustiça seria a mesma diante de uma obra semelhante de um artista anônimo. Escultura, cerâmica, etc. são formas de arte em que, mais do que a Briga Com a Idéia (que é o feijão-com-arroz cotidiano na batalha literária) existe uma Briga Com o Material. São formas de arte que lidam com algo que está fora de nossa mente.
Quem faz cerâmica, para ficar só no presente caso, está lidando o tempo inteiro com mistura de argilas ou sílicas ou sei-lá-que-mais, com pigmentos, com fornos e temperaturas, e assim por diante. Perde-se a conta de quantas vezes uma obra bem concebida e bem moldada racha quando submetida aos mil-e-tantos graus que deveriam cristalizá-la.
A idéia é simples, minimalista até; mas o material escolhido para concretizá-lo é rebelde, ou caótico, ou frágil, e todo o esforço do artista é para impor aquela pequena idéia àquele veículo refratário à manipulação.
Em atividades artísticas desse tipo, talvez o artista pense: quanto da minha idéia original restará ao fim deste processo tão sofrido de luta contra o material? Uma coisa é você imaginar uma xilogravura; outra muito diferente é convencer a madeira, o papel, as tintas e a prensa a colaborarem para que sua idéia se realize plenamente na folha impressa, úmida como um recém-nascido.
Vem daí a tradicional admiração pelas “artes artesanais” (desculpem o termo tosco) que exigem essa habilidade em lidar com a matéria bruta, com a natureza. E vem daí também o paradoxal desprezo de alguns por aqueles que as praticam sem questionar a fundo para onde isto os leva.
Quando Marcel Duchamp disse que queria tirar a primazia do pincel e colocá-la na mente, este foi um gesto com a arrogância típica dos intelectuais que sabem ser o intelecto o diferencial que desequilibra sua disputa com artesãos mais hábeis do que eles.
Nesse aspecto, a literatura consiste apenas em luta contra as limitações da expressão verbal do autor. Talvez por isso alguns artistas procurem criar limitações ainda mais radicais, seja entregando-se ao preciosismo (uma manhã para tirar uma vírgula, uma tarde para pô-la de volta) seja inventando “contraintes”, restrições gratuitas, como fazem os membros da Oulipo e outros grupos experimentais.
domingo, 18 de abril de 2010
1928) Os dois tipos de música (14.5.2009)
Muitas discussões sobre música popular e música erudita se encerram assim: “Essa divisão não faz sentido. O que existe mesmo é música boa e música ruim”. Tudo bem; mas falando em bom e ruim entramos num nevoeiro cerrado que faz empacar qualquer discussão mais séria. Quando tudo se resume a gostar ou não, ficamos desprovidos de um crivo externo de comparação. Precisamos de uma distinção que possa ser estabelecida “de fora”. Por isso sugiro uma: “Existem dois tipos de música: música para ouvir, e música para dançar”. Ou seja – podemos dizer que existe música para a mente, e música para o corpo. Existe música feita para ouvir e música feita para dançar, embora algumas músicas sirvam para as duas coisas, e muitas não sirvam para nenhuma.
À primeira vista é um Muro de Berlim nítido e intransponível. Música para ouvir, por exemplo, é João Gilberto; música para dançar é Zé Calixto e seus 8 Baixos. Numa temos o recolhimento intimista de quem, a sós, à meia-noite e à meia-luz, tilinta um uísque no copo quadrado, semicerra os olhos e se entrega aos desfrute do tom, do som, do timbre, da textura, do entrecruzar das harmonias, do modo como voz, violão, melodia e letra se entrelaçam. Na outra temos o resfolego frenético do instrumento, e as percussões sacudidas, segurando o ritmo implacável, daquele tipo que basta a gente ouvir para começar a balançar alguma coisa, seja lá o que for.
Isto não impede, contudo, que a gente escute Zé Calixto (ou qualquer música-para-dançar, do rock ao reggae) para curtir a beleza musical do que está sendo feito. Nada impede que ao som de uma bossa-nova sofisticada o sujeito conduza a “cavaleira” ao salão e ali se entregue à nobre versão vertical da mais antiga das artes. Alguém dirá: “Oi, e música clássica? Já se viu alguém dançar música clássica?” Bom, talvez ninguém dance John Cage ou o Cravo Bem Temperado de Bach; mas não esqueçamos as valsas de Strauss & Cia., que eram o filé da música dançante do seu tempo, assim como as músicas para balé clássico, que são compostas, sim, pensando em coreografia, pensando em passos a serem executados por corpos humanos. Será que os grandes balés de Tchaikovsky seriam ou não dançantes numa “balada” de hoje? Este é um detalhe circunstancial que não cancela o fato mais amplo de que aquela música foi feita para um tipo de dança, tão legítimo quanto qualquer outro.
O jazz era freneticamente dançado nos anos 1920, 30, 40. Vemos nos documentários antigos uma orquestra tocando no palco e centenas de negros mandando ver no salão. Sofisticou-se, intelectualizou-se, mas a pulsação dançante ainda estala o dedo ao longo das semifusas. Algo parecido se defende hoje para o frevo. Muitos compositores e instrumentistas querem que o frevo não seja apenas um pretexto para “fazer o passo” no Carnaval, mas uma música que cresça em si própria e possa ser ouvida pela beleza de música que contém.
1927) A Coisa Pública e a Privada (13.5.2009)

Os políticos costumam confundir a Coisa Pública com a Privada. Esta curiosa expressão, “coisa pública” (em latim, “res publica”) batizou nossa forma de governo, a República, em que todos os cidadãos contribuem com uma parte dos seus ganhos e nomeiam, a intervalos regulares, funcionários de confiança para administrar esse dinheiro. A Coisa é pública pela sua origem (a contribuição é de todos) e também pelo seu destino, porque o dinheiro deve ser empregado em obras de interesse de todos. Só que é uma dessas situações em forma de ampulheta, com dois imensos espaços ligados por um gargalo minúsculo. Para que o dinheiro investido por todos chegue às obras que são do interesse de todos, cada grão de areia deve passar por esse gargalo, que se chama Administração (da Coisa) Pública.
Não era assim que eu via a questão quando garoto. Na minha infância, tínhamos uma noção obscura de que os políticos eram “As Pessoas Que Mandam no Mundo”. Alguém ou Algo lhes dava esse direito de mandar em todos os cidadãos: “É proibido fazer isso! É obrigado a fazer aquilo!” E o cidadão tinha mais era que obedecer as ordens dos políticos, senão ia preso. Eram como deuses. Vi, com o coração batendo forte, o carro aberto em que Juscelino Kubitschek adentrou Campina, dando a volta pelo Açude Velho e subindo a Rua Miguel Couto rumo ao centro da cidade. Contemplei à distância, agarrado à mão de Tia Adiza, os vultos ora de Severino Cabral, ora de Newton Rique, discursando em palanques iluminados, sob o pipocar das girândolas. Newton chegava ao microfone, esperava amainar a gritaria e dizia com voz calma: “Campinenses amigos...” E eram mais dez minutos de foguetão e “Vassourinha” antes que ele pudesse prosseguir no discurso.
“Quem manda em Campina?”, perguntava eu, ansioso, aos cinco ou seis anos. E minha mãe, taxativa: “O Prefeito”. Eu insistia: “E no Brasil?” E ela: “O Presidente da República”. Um dia, fui mais longe: “E quem manda no mundo?” Ela titubeou, mas a fé falou mais alto: “O Papa”. Eu digeri aquela informação e depois revelei meu plano: “Quando eu crescer quero ser o Papa”. Na verdade, não me movia a vontade de mandar em ninguém. A única coisa que eu desejava era que não houvesse ninguém mandando em mim.
A República mudou a forma de escolha dos governantes mas não mudou a atitude papal de submissão e respeito, herdada da Monarquia. O povo daquele tempo via os reis como representantes legítimos de Deus na Terra, a quem devemos obediência e louvores. E de certo modo é assim que vê ainda hoje os políticos, sejam eles vereadores, deputados, prefeitos, governadores ou presidentes. Em vez de vê-los como profissionais pagos para resolver um problema, são vistos como “As Pessoas Que Mandam Na Gente”. As repúblicas de hoje são como uma fazenda cujo dono vive nela sem saber que é sua. Pensa que o proprietário é o caseiro que a administra, e que vive nela à tripa forra.
1926) Ballard e a FC (12.5.2009)
Uma página de tributo ao escritor recém-falecido J. G. Ballard foi criada no saite Omnivoracious (http://tinyurl.com/cavvsj), com links para numerosos depoimentos.
Para quem quiser conhecer melhor suas idéias, antes de chegar aos livros propriamente ditos, um bom começo é o saite “Ballard”, em http://www.jgballard.ca/.
Ballard era um homem culto, de informação variada e surpreendente, além de extremamente articulado. É notável a sua capacidade de jogar idéias espantosas e verossímeis no colo do interlocutor, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Seu livro de ensaios e artigos A User’s Guide to the Millenium (1996) tem sido uma fonte permanente de temas para esta coluna. Um saite com um grande número de entrevistas, que vão de 1966 a 2008, é: http://tinyurl.com/y29w2d4.
Para os espectadores de cinema, Ballard tornou-se mais conhecido através de dois filmes. O primeiro deles é O Império do Sol de Steven Spielberg, a história de um garoto inglês que, durante a II Guerra Mundial, se perde dos seus pais em Xangai, onde moravam, e acaba passando o resto da Guerra num campo de prisioneiros. É a infância do próprio Ballard, que ele recontou num livro autobiográfico e Spielberg adaptou com sensibilidade e estilo. O outro filme é Crash de David Cronenberg (não confundir com Crash – No limite, filme vencedor do Oscar há alguns anos). Baseado num livro de Ballard, é a história de um grupo de homens e mulheres que têm fixação erótica em automóveis, em acidentes de carro e em pessoas mutiladas por esses acidentes. Com James Spader e Rosana Arquette, é um filme doentio, incômodo e verdadeiro sobre o fetichismo do corpo e da máquina, e o impulso simultâneo do auto-erotismo e da auto-destruição.
Uma das grandes influências na obra de Ballard foi o Surrealismo dos anos 1920, e talvez por isto sua ficção científica destoe tanto da FC norte-americana, que parece não ter tomado conhecimento de André Breton e seus seguidores. O que é uma pena. O Surrealismo e a obra de Freud, que para Ballard estão sempre próximos, lhe serviram para criar o conceito de Espaço Interior (“inner space”) que ele contrapôs ao Espaço Exterior (o sistema solar, as estrelas, a galáxia), domínio preferencial da FC clássica. Ballard argumentava que o mundo da mente era mais amplo, mais surpreendente e mais acessível do que a Via Láctea, e não via motivo para que a ficção científica se limitasse a “ir lá para fora” sem dar muita importância ao que ocorria “aqui dentro”.
Comentando a obra de William Burroughs, com a qual ele tanto se identificava, disse Ballard: “A conclusão a que Burroughs chega em sua obra é de que a guerra entre a sociedade e a liberdade individual, uma liberdade que consiste apenas em ser um indivíduo, nunca pode acabar, e em última análise a única escolha que nos resta é viver em nossos próprios pesadelos ou nos pesadelos dos outros”.
1925) A escova elétrica (10.5.2009)

Entre os muitos absurdos do mundo tecnológico um dos meus preferidos é a escova-de-dentes elétrica. Já experimentei essa engenhoca. Você coloca pasta, encosta nos dentes as cerdas da escova e aperta um botão. A escova começa a zumbir e a vibrar, e as cerdas se movimentam ritmicamente, friccionando os dentes. Você fica ali paradão, atrofiando os músculos do braço, enquanto o aparelho vai consumindo seus volts ou watts de energia, sugados da hidrelétrica mais próxima.
As invenções científicas surgem de um preguiçoso que fica tardes inteiras pensando: “Deve existir uma maneira de conseguir isso sem fazer força”. As invenções mecânicas básicas (a alavanca, a roldana, o plano inclinado, a roda, etc.) apareceram assim. Foram necessárias, concordo, para as grandes obras de arte arquitetônica, porque sem elas não teríamos as Pirâmides ou as catedrais góticas. Mas deram origem também a um sem-número de besteiras, principalmente nos últimos cem anos, quando o mundo ocidental industrializado foi tomado por uma febre rubegoldberguiana para a construção de engenhocas inverossímeis, abstrusas e irrelevantes, cujo único objetivo era evitar que um mané fizesse um dispêndio mínimo de energia muscular.
Quando eu era pequeno as pequenas invenções da ficção científica eram fonte permanente de inspiração para que O Preguiçoso Em Mim sonhasse com um futuro estilo Os Jetsons. Quantas vezes fiquei na mesa do almoço, tentando cortar um bife recalcitrante, e imaginando uma faca com o cabo oco, dentro do qual houvesse um mecanismo de tração, fazendo com que bastasse a gente encostá-la no bife e apertar um botão, para que a lâmina ficasse indo-e-vindo velozmente, e a gente se limitasse a apoiá-la no bife.
O controle remoto da TV já foi apontado como a grande conquista científica do século 20, maior que a energia atômica ou os voos espaciais. Só estou esperando a hora em que tenhamos um que nos permita apagar ou acender a lâmpada da sala sem que a gente precise erguer da poltrona a nossa crescente adiposidade.
Aos olhos das pessoas que inventam e fabricam essas coisas, a economia de esforço muscular se justifica por si mesma, é um bem em si, um valor absoluto. Ela tem como efeito colateral a tecnologia oposta: a do esforço muscular sem finalidade alguma: as esteiras e bicicletas ergométricas, os puxa-ferro das academias. Nada disso tem qualquer utilidade a não ser recuperar o tônus muscular que deixamos atrofiar-se usando os demais aparelhos. Isso gera o divertido círculo vicioso em que pagamos por um instrumento elétrico para que ele nos poupe esforço físico, e depois pagamos por outro instrumento elétrico para fazermos um esforço físico sem qualquer utilidade prática. Quando a FC diz que os homens um dia viverão para servir às máquinas, amigos, não estão dizendo que um dia teremos um computador na Presidência da República (embora provavelmente venhamos a ter, e rodando Windows).
1924) Slinkachu – a vida em miniatura (9.5.2009)
Gosto de quem faz pequenas interferências, às vezes quase imperceptíveis, na paisagem urbana, como Banksy, e de quem faz interferências gigantescas e despropositadas, como Christo.
Também gosto de trabalhos que envolvem algo feito em escala minúscula: esculturas em palitos de fósforos, ou textos escritos na cabeça de um alfinete.
Essas duas pequenas artes estão misturadas no trabalho do artista conhecido como Slinkachu, e que pode ser visto, entre outros saites, aqui: http://slinkachu.blogspot.com/.
Slinkachu pega pequenos bonecos, com alguns milímetros de altura, que ele retira de “kits” de joguinhos em geral, e os coloca em situações peculiares em certos lugares do ambiente urbano. A dois ou três metros de distância, os bonecos são praticamente invisíveis, a menos que a gente calhe de olhar exatamente para aquele ponto do chão. Fotografados de perto, e ampliados, eles nos dão a curiosa sensação de serem bonecos humanos em tamanho natural, engajados em algum tipo de atividade.
É, como diz um comentarista anônimo de jornal, “uma Londres liliputiana” que aparece nessas fotografias, uma Londres invisível pela qual talvez os londrinos de carne e osso estejam passando diariamente sem perceber.
As fotos aqui (http://www.little-people.blogspot.com) são mais elucidativas. O artista tira uma foto em detalhe, que nos dá a tal sensação de que aquilo é em tamanho natural, e em seguida mostra fotos a uns dois metros de distância, em que mal vemos o bonequinho no chão, e depois mais longe ainda, quando por fim temos idéia do trecho da cidade onde o boneco foi colocado, mas o boneco em si já se tornou invisível.
É um skatista deslizando no interior da casca de uma tangerina; é o pai mandando a filha tomar cuidado enquanto lhe mostra uma abelha morta quase do tamanho dele; é o homem de paletó encostado a um palito de fósforo como se fosse um poste de rua; é o rapaz de casaco entrando numa caixinha de hamburger do MacDonald’s como se fosse uma espaçonave pousada; é a família confortavelmente instalada sobre a carapaça de um caracol...
São “cenas da vida minúscula”, como no romance de Moacyr Scliar. Cenas que curiosamente também só assumem pleno sentido quando são fotografadas e ampliadas. Faz parte da natureza do trabalho de Slinkachu que a obra física em si seja quase impossível de ver, e passe despercebida pela quase totalidade das pessoas, podendo até ser esmagada pelos sapatos de alguns. A obra existe mas é inacessível como obra – só podemos acessá-la quando ela é fotografada, ampliada, e pode enfim nos produzir aquela breve desorientação de ver pessoas normais numa terra de gigantes, ou quem sabe o contrário.
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