segunda-feira, 19 de abril de 2010
1929) A luta contra o material (15.5.2009)
Tenho às vezes, diante de uma obra de arte, a atitude injusta de olhar e pensar: “Mas que besteira, que coisa sem idéia! Se isso é obra de arte eu posso fazer também!” Quem pensa isso está ignorando (ou fingindo ignorar) o processo que leva à criação da obra e julgando apenas o produto final. Porque toda obra é processo e produto.
A vez mais recente em que cometi esse deslize foi ao ver no metrô de São Paulo uma escultura de Francisco Brennand, o “Pássaro Roca”, uma espécie de totem de cerâmica com a cabeça de uma ave no alto. “Grande besteira,” pensei. “É só isso? Um passarinho em cima dum poste?”
Grande injustiça, isso sim, e não porque se trata de Brennand, a quem muito admiro. A injustiça seria a mesma diante de uma obra semelhante de um artista anônimo. Escultura, cerâmica, etc. são formas de arte em que, mais do que a Briga Com a Idéia (que é o feijão-com-arroz cotidiano na batalha literária) existe uma Briga Com o Material. São formas de arte que lidam com algo que está fora de nossa mente.
Quem faz cerâmica, para ficar só no presente caso, está lidando o tempo inteiro com mistura de argilas ou sílicas ou sei-lá-que-mais, com pigmentos, com fornos e temperaturas, e assim por diante. Perde-se a conta de quantas vezes uma obra bem concebida e bem moldada racha quando submetida aos mil-e-tantos graus que deveriam cristalizá-la.
A idéia é simples, minimalista até; mas o material escolhido para concretizá-lo é rebelde, ou caótico, ou frágil, e todo o esforço do artista é para impor aquela pequena idéia àquele veículo refratário à manipulação.
Em atividades artísticas desse tipo, talvez o artista pense: quanto da minha idéia original restará ao fim deste processo tão sofrido de luta contra o material? Uma coisa é você imaginar uma xilogravura; outra muito diferente é convencer a madeira, o papel, as tintas e a prensa a colaborarem para que sua idéia se realize plenamente na folha impressa, úmida como um recém-nascido.
Vem daí a tradicional admiração pelas “artes artesanais” (desculpem o termo tosco) que exigem essa habilidade em lidar com a matéria bruta, com a natureza. E vem daí também o paradoxal desprezo de alguns por aqueles que as praticam sem questionar a fundo para onde isto os leva.
Quando Marcel Duchamp disse que queria tirar a primazia do pincel e colocá-la na mente, este foi um gesto com a arrogância típica dos intelectuais que sabem ser o intelecto o diferencial que desequilibra sua disputa com artesãos mais hábeis do que eles.
Nesse aspecto, a literatura consiste apenas em luta contra as limitações da expressão verbal do autor. Talvez por isso alguns artistas procurem criar limitações ainda mais radicais, seja entregando-se ao preciosismo (uma manhã para tirar uma vírgula, uma tarde para pô-la de volta) seja inventando “contraintes”, restrições gratuitas, como fazem os membros da Oulipo e outros grupos experimentais.
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