quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

1701) Machado: “A Chinela Turca” (24.8.2008)


(Machado, por Spacca)


Talvez uma das razões que fizeram de Machado de Assis um escritor de enredos minimalistas, quase inexistentes, seja o fato de que ele viveu numa época parecida com a nossa, quando os enredos veementes, fantasiosos, cheios de peripécias, faziam as obras de sucesso popular. 

O espaço hoje ocupado pelo cinema e pelas telenovelas pertencia, no tempo de Machado, ao romance em folhetins e ao melodrama teatral; e é contra esses dois moinhos de vento que ele investe em “A Chinela Turca” (em Papéis Avulsos, 1882), mais com “a pena da galhofa” do que com “a tinta da melancolia”. Releia o conto, e veja o quanto eram familiares ao nosso escriba os recursos do melodrama.

É noite. O bacharel Duarte está se aprontando para ir fazer cerca-lourenço a uma namorada, quando irrompe-lhe em casa o major Lopo Alves, com a notícia de que acaba de compor um drama. Duarte não tem como negar atenção ao major, e concorda em submeter-se à leitura, que é um suplício: 

Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ‘ficelles’ e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. 

Peripécias absurdas se sucedem. Duarte cochila, e de repente vê que o major guarda os papéis e sai.

Então... surpresa! Entra-lhe de casa adentro um homem que anuncia ser da polícia, acusa-o do roubo de uma chinela turca, e o conduz sob protestos a uma mansão onde Duarte entra de olhos vendados, encontra um padre misterioso, e é levado a um salão, na presença de uma dama belíssima. 

Um homem de arma em punho anuncia-lhe que terá de casar com a dama, fazer um testamento deixando-lhe tudo que possui, e em seguida beber “certa droga do Levante”. Duarte recebe a inesperada ajuda do padre (que lhe sussurra: “Não sou padre, sou tenente do exército”). Pula pela janela, foge pela escuridão da noite, perseguido pelos esbirros da mansão, entra por uma casa, e ali vê o Major Lopo Alves lendo um jornal, “cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas”... O Major profere a última fala do seu drama, e encerra a leitura.

O jornal que vira folha de manuscrito é o mesmo hipopótamo do delírio de Brás Cubas, que se reduz às dimensões de um gato real. Durante a leitura de uma peça maçante, Duarte viajou mentalmente para uma aventura tão “ultra-romântica” quanto o drama do major, porém mais conforme com seu momento emocional e com a existência de uma namorada inacessível. E ele conclui dizendo: “O melhor drama está no espectador e não no palco”.

Duarte substitui a fantasia melodramática do Major por uma de sua própria lavra; Machado ironiza as duas, mas reconhece a necessidade terapêutica de fantasiar, a vantagem de substituir “o tédio por um pesadelo”. Mas na frase final do conto cifra o que seria sua literatura da madureza: o romance do espaço interior, romance da mente, romance do discurso verbal que a move, o romance de personagem, e não de peripécia.





1700) Comida comunitária (23.8.2008)



Numa ida rápida ao Banco encontro com meu vizinho Egeu Laus, que de uma esquina a outra me apresenta o conceito de Slow Food, proposto por grupos que querem se contrapor não apenas ao sanduíche-iche-iche multinacional, mas à despersonalização dos hábitos que a cultura de lanchonete acarreta. Egeu lembra o conceito clássico do “ágape”, que significa entre os gregos amor ou afeição, e foi transplantado para os tempos cristãos como sinônimo de banquete, ou de comida comunitária, congraçamento, convivência e outras prefixações que sugerem o entrelaçamento harmonioso das vontades e dos prazeres.

Não me constrange admitir que como “fast food”. Detesto os hamburgers do MacDonald’s; prefiro os nuggets de frango. No Bob’s vou de salada de atum. No KFC gosto dos frangos empanados (apesar do colesterol recorde), e tem uma Salada Crocante que me quebra um galho. Como se vê, não sou um fundamentalista, um radical hardcore, e acho que isto dá equilíbrio e credibilidade às minhas escolhas. E podendo escolher prefiro a comida vagarosa, regada a cerveja, música e papo.

A Comida Comunitária nos lembra um aspecto que vai mais além do alimentício. Ela é uma reunião de pessoas que, sob o pretexto de comerem juntas, vivem juntas durante algumas horas, relacionando-se, trocando informações, aparando arestas, reafirmando laços. Ou até mesmo tolerando-se mutuamente, porque a tolerância é a quarta virtude teologal. Comida comunitária quer dizer fundo de quintal, terraço no sábado à tarde, restaurante com mesas longas e bancos de madeira onde cabem quinze pessoas de cada lado. É a mesa na casa grande da fazenda, com o patriarca à cabeceira, a família e os hóspedes próximos a ele, e o resto da mesa ocupado pelos serviçais, até o mais humilde peão, todos almoçando juntos.

Comida Comunitária é a buchada nordestina, a feijoada carioca e o caruru baiano. “Amanhã tem um caruru na casa de Fulano!” Não é uma dica gastronômica, é uma convocação social. Que eu saiba, nenhuma dona de casa baiana prepara um caruru para comê-lo a sós com seu respectivo. Caruru só presta no panelão, com a casa cheia de gente. Feijoada e buchada são pretexto para violão, tumbadora e cavaquinho.

O fast-food não é invenção dos americanos, também é coisa nossa. É a comida às pressas, sozinho, em silêncio, no intervalo entre dois turnos do escritório. Era a refeição escravocrata dos botequins de Copacabana que conheci há quase 40 anos, em que um sujeito comia um prato-feito sentado ao balcão enquanto atrás dele uma fila indiana e silenciosa esperava, até ele dar a vez ao próximo. Naquele recinto apinhado de gente, cada um comia a sós, sem cruzar um olho, sem trocar uma palavra, sem perder um minuto. A comida tinha que ser rápida, porque o taxímetro do patrão estava tiquetaqueando no local de trabalho. “Quem come depressa morre ligeiro”, rezava a sabedoria das tias de antanho, cuja longevidade atesta o quanto sabiam viver.

1699) O futebol olímpico (22.8.2008)



(Marta)

Eu trocaria de bom grado a conquista de uma Copa do Mundo pela Seleção principal (essa de 2010 na África do Sul, por exemplo) pela medalha de ouro olímpica para a Seleção feminina, que merece muito mais uma consagração. Nenhuma derrota nestes jogos me abateu tanto quanto a das “meninas do Brasil”, como são chamadas pela imprensa. A Seleção masculina de Dunga perdeu para a Argentina sem jogar dois-tões de bola. Irritou; mas não entristeceu. Já a Seleção das meninas entristeceu – mas não irritou. Jogou bem, buscou o gol, lutou o jogo inteiro, e no segundo tempo da prorrogação, já perdendo, já exausta, ainda corria, chutava, batalhava pela bola como se fosse um prato de comida. Perdeu injustamente, mais uma vez. Eu preferiria perder uma Copa do Mundo inteira do que ter perdido esse jogo.

Falei que o time jogou bem, mas como perdeu está na cara que esse “bem” é relativo. O time tem defeitos. Talvez o defeito decisivo tenha sido o lado emocional, porque era visível o desgaste na paciência delas à medida que o jogo ia correndo. A sucessão de tentativas e erros cria um círculo vicioso em que os erros acabavam se tornando mais prováveis.

Todo mundo (inclusive eu) tem a mania de dizer que as americanas e européias são frias, são robotizadas, ao passo que nossas meninas são mais instáveis. Não é bem assim. Na semi-final contra a Alemanha, quando o Brasil virou o jogo para 2x1 as alemãs pareciam umas baratas tontas dentro de campo. Elas também acusam um golpe. Elas também se abalam. Aquela frieza só dura enquanto as coisas estão saindo conforme o manual, o planejamento e o cronograma. Se puxar o tapete, elas também caem.

Se tivéssemos feito o primeiro gol, certamente seriam as americanas a bater cabeça, a se afobar. Para mim o lance decisivo do jogo foi no segundo tempo, quando Marta driblou duas, entrou na área, chutou de esquerda e a goleira tirou com um soco da mão direita, às cegas, no susto, na intuição – e não estou dizendo que foi mera sorte, foi talento mesmo. Se essa bola entrasse, nossos nervos se normalizariam. Se íamos ganhar é outra história, mas com 1x0 o jogo estaria nas nossas mãos.

Faz pena um time de moças tão valentes, tão dedicadas (e tão hábeis com a bola nos pés) perder para um time tecnicamente inferior, cujas únicas virtudes são as virtudes de um jogo coletivo bem ensaiado, de muita marcação, muito preparo físico e muito estudo do adversário. No segundo tempo da prorrogação, as brasileiras, já com os nervos em frangalhos e as pernas bambeando, ainda corriam em campo com uma vontade admirável. Fico pensando se a seleção de Dunga estava assistindo esse jogo. Dunga está com os dias contados; e torcida já canta “Eu vou – eu vou – pra casa agora eu vou...” Tomara que vá logo, porque o futebol que ele quer nos impor é o contrário do futebol de Marta, Cristiane, Daniela, Ester, Formiga, Tânia e todas as valentes meninas do Brasil.

1698) “Blackwater” (21.8.2008)



Um programa recente na TV a cabo teve como tema as relações sombrias e escusas entre o governo Bush e a Blackwater, a principal empresa de mercenários (funcionários e soldados de aluguel) envolvida na Guerra do Iraque. O programa entrevistou o jornalista Jeremy Scahill, autor do livro Blackwater: The Rise of the World’s Most Powerful Mercenary Army (2007). Segundo Scahill, a Blackwater, mesmo sendo o exército mercenário mais poderoso do mundo, é apenas o topo de um iceberg de empresas contratadas pelo governo dos EUA para gradualmente ocuparem as tarefas de logística da guerra, desde conduzir comboios de carga até cuidar da burocracia, cozinhar e fazer tarefas de vigilância. Isto iria liberar um número cada vez maior de soldados para o combate propriamente dito.

Haveria outro benefício. Os soldados mercenários dessas empresas, quando mortos, não entram nas estatísticas oficiais de baixas. Mercenário morto é prejuízo apenas para a companhia para quem o governo terceirizou aquelas funções. Os funcionários da Blackwater ficaram famosos depois de um famoso massacre na ponte de Falluja, em março de 2004, quando quatro deles foram arrancados dos carros pelos iraquianos, fuzilados no meio da rua, queimados e pendurados de cabeça para baixo na ponte.
(Ver: http://tinyurl.com/yhzmsvx, e também: http://tinyurl.com/yfcogju).

Estimativas do custo da guerra para os EUA variam de 850 bilhões de dólares a três trilhões, por enquanto. Imagino que terceirizar essa atividade ajudaria a manter no mesmo ritmo de aquecimento a indústria bélica, que continuaria a fabricar e vender tanques, armamentos, munições, etc., mas aliviaria a mão do Estado, pois os custos recairiam em grande parte nas empresas privadas.

Aqui no Rio têm surgido nas favelas as milícias, que são uma terceira força a brotar no vácuo entre a polícia e os traficantes. As milícias armadas se proclamam grupos de defesa dos cidadãos contra o tráfico em áreas onde a polícia não consegue entrar, ou não consegue manter uma presença constante. A questão é que à medida que esses grupos para-militares se tornam mais fortes, mais bem armados e mais articulados com uma certa ala da política, passam a exercer pressão armada sobre a população. As favelas viviam entre dois fogos, agora vivem entre três.

A privatização da violência armada é a conseqüência natural de conflitos cujo objetivo puramente econômico todo mundo percebe. A retórica pró-forma sobre “libertar o povo”, “derrubar a ditadura”, “implantar a democracia” se choca com os fatos. O objetivo da guerra é o lucro, e surgem cada vez mais grupos que não precisam inventar outro argumento, além do lucro, para empunhar as armas. Clausewitz, convidado a falar sobre “a Arte da Guerra”, disse que a guerra não se parece muito com a Arte, e sim com o Comércio, que é também um conflito de interesses humanos.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

1697) Machado: “20 anos! 20 anos!” (20.8.2008)



Este conto não é estruturalmente um conto, e sim um desses tecidos literários que Machado, sentando-se sem idéia e criando ao correr da pena, produzia de maneira tão espontânea. Uma “tranche de vie” flutuando nas fronteiras entre o conto e a crônica. O texto saiu em A Estação, em 15-7-1884, tem não mais do que três páginas, e acompanha o jovem Gonçalves, estudante e boêmio cuja família reside no interior. A mesada paterna lhe chega às mãos através de um correspondente do pai, residente na Corte (ou seja, na cidade do Rio), e tão logo chega, desaparece na caixa registradora dos bares e cafés. O conto se abre com Gonçalves amarrotando, ultrajado, a carta em que o correspondente se nega a ressarci-lo de uma despesa urgente (um sobretudo de peles, uma bengala), e mais, avisa que vai discutir o assunto com seu pai.

Gonçalves sai à rua disposto a esbordoar o atrevido, mas logo adiante é puxado para dentro de um café por um grupo de amigos. Fogem-lhe à mente a dívida pendente e a tunda planejada, e o que se segue é um retrato, tamanho camafeu, do cotidiano estróina e descuidado dos rapazes de boa família daquele tempo, que se perdem a conversar nos cafés, discutindo belezas femininas, falando de política, não sei do que mais: “Um dos colegas contou então um caso análogo, e, como falasse de passagem em Wagner, conversaram da revolução que o Wagner estava fazendo na Europa. Daí passaram naturalmente à ciência moderna; veio Darwin, veio Spencer, veio Büchner, veio Moleschott, veio tudo. Nota séria, nota graciosa, uma grave, outra aguda, e café, cigarro, troça, alegria geral, até que um relógio os surpreendeu batendo cinco horas.”

Os rapazes saem dali a somar os tostões para jantar num hotel modesto, e depois até São Cristóvão, para acompanhar o “footing” (o termo é meu, não de Machado) das moças no ponto dos “bonds” (dele, não meu). Voltam para a Rua do Ouvidor, para zanzar à frente dos teatros, pois não têm dinheiro para as entradas, e “uma hora depois vamos achá-los, no Rocio, discutindo uma questão de física”. E Gonçalves, o eternamente liso, encerra a noitada às nove, na Rua do Ouvidor, comprando fiado uma caixa de charutos. E o autor encerra o conto: “Vinte anos! Vinte anos!”.

Machado tinha 45 anos quando publicou este conto. No retrato que esboça vemos sua benevolência com a falta de responsabilidade da juventude, a ironia com a dissipação inconseqüente, e o “flash” das noitadas boêmias cariocas, que recordou em tantos outros contos e cujo retrato definitivo (creio) foi feito por Coelho Neto em A Conquista (1899). Seria interessante ler lado a lado este conto de Machado e o conto "After the Races” de Joyce (em Dublinenses, 1914). São duas miniaturas paralelas e parecidas, centradas em jovens (Gonçalves, Jimmy Doyle) que, inebriados pela bebida e pela companhia de amigos, acabam gastando mais do que podiam ou deviam. Mas qual é o problema, quando se tem um pai, quando se tem vinte anos?

1696) Brasil 4x1 Alemanha (19.8.2008)



(Cristiane)

A imprensa vinha chamando esse jogo pelas semi-finais do torneio olímpico de futebol feminino de “uma final antecipada”. É pena que não tenha sido, porque, não sei não, mesmo que a Seleção Brasileira ganhe o ouro na próxima partida dificilmente fará um jogo tão emocionante, e terá uma vitória tão indiscutível quanto a desta goleada sobre o time campeão do mundo. Brasil e Alemanha tinham caído no mesmo grupo na fase classificatória. Não vi o jogo de estréia das duas, que ficou empatado em 0x0. O Brasil nunca tinha vencido a Alemanha. Este jogo, pelo desenho que teve, pelo modo como começou, foi mudando e acabou, é um jogo histórico.

Faz tempo que eu não via um sufoco tão grande quanto o que a seleção alemã deu na nossa a partir do momento em que a juíza fez “pí”. Partiram para cima da gente com aquela saúde de camponesas da Baviera, aquela disciplina de infantaria prussiana e aquela frieza de atrizes do Berliner Ensemble. Fizeram um gol, quase fazem outros, e marcavam as brasileiras num esquema de três por uma, que não nos dava tempo nem de respirar. Antes dos 30 minutos de jogo, peguei umas cinco vezes no controle remoto para desligar a TV e ir dormir de novo, porque vi a catástrofe se formando.

Aí vieram os dois lances decisivos. Marta deu uma voadora numa alemã e não foi expulsa. E faltando poucos minutos para acabar o primeiro tempo veio o gol de Formiga. Perdêssemos Marta, e perdêssemos aquele gol, o jogo teria sido outro. Mas parece que o risco de expulsão da craque acendeu o juízo do time inteiro, e, como o Destino nos deu uma segunda chance, as meninas decidiram fazer o melhor uso dela. Foram pra cima e empataram o jogo.

No segundo tempo, as alemãs tentaram repetir o sufoco inicial do primeiro tempo, e aí o Brasil liquidou a partida com dois contra-ataques, em que Marta entregou um gol a Cristiane, e depois ela própria fez o seu, numa arrancada antológica, cercada por duas zagueiras, e dando um toquezinho de lado quando a goleira fechou o ângulo. Não vejo, no atual Campeonato Brasileiro masculino, nenhum atacante, nenhum, que eu consiga imaginar fazendo um gol assim. Não há.

Pra-terminar-de-completar, Cris (que aqui pra nós é a mais bonita do time) pegou uma bola no lado esquerdo da intermediária e passou pelo meio de três adversárias numa espécie de salto quântico: num instante estava aqui, no instante seguinte estavam ela e a bola cinco metros adiante. Invadiu a área pelo lado direito e tocou mansinho na saída da goleira. E comemorou dando aquela rebolada de quem diz: “Gostou?...”

Acho que o excesso de pressão que a Alemanha botou no início desgastou suas jogadoras. Enquanto as brasileiras se viram sufocadas, cercadas, atropeladas quando pegavam na bola, a Alemanha mandou no jogo. Quando elas cansaram e nos deram espaço, o Brasil sobrou. Qualquer seleção no mundo (vejam a de Camarões contra a Seleção masculina, dias atrás) sabe que se deixar o brasileiro jogar, está perdido.

1695) Os cinco contos de Brás Cubas (17.8.2008)



(Reginaldo Farias em Brás Cubas)

Num artigo recente referi-me aos cinco contos que Brás Cubas, no romance de Machado de Assis, encontra na Praia de Botafogo e guarda no Banco. Como não me dei o trabalho de reler o livro todo, limitando-me a consultar esse capítulo, escrevi: “Se não me equivoco ainda lá estão, pois no resto do livro não se fala mais nisso”. Bem se diz que mais depressa se pega um jornalista em erro do que um mentiroso coxo; porque me surgiu a previdente leitora Hildete Nepomuceno para me aplicar um corretivo em regra. Cito:

“No capítulo LXX de M. P. de Brás Cubas: ‘Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, os cinco contos achados em Botafogo, como um pão para a velhice.’ No capítulo CXLII, há um bilhete de Virgília: ‘Dona Plácida está mal. Peço-lhe o favor de fazer alguma coisa por ela.’ Mas eu tinha-lhe deixado os cinco contos da praia de Botafogo.’ Capítulo CXLIII: ‘...sentia-me aborrecido, incomodado, com o pedido de Virgília. Tinha dado a D. Plácida cinco contos de reis; duvido que ninguém fosse mais generoso do que eu, nem tanto.’ Capítulo CXLV: ‘...Quanto aos cinco contos, não vale a pena dizer que um carteiro da vizinhança fingiu-se enamorado de D Plácida, logrou espertar-lhe os sentidos, ou a vaidade, e casou com ela; no fim de alguns meses inventou um negócio, vendeu as apólices e fugiu com o dinheiro.”

De fato. Caso o leitor não recorde, D. Plácida, entre as viúvas gordas e patuscas de Machado, é a que alcovita o adultério entre Virgília e Brás Cubas na casinha da Gamboa. É tocante que Brás Cubas – o vaidoso, egoísta, o cínico Brás Cubas – destinasse esse dinheiro para ser um amparo, na velhice, para aquela mulher simplória que foi medianeira de seus amores na juventude.

Recapitulemos. Quando jovem, Brás Cubas pretendia ser deputado e casar com Virgília. Candidatura e noiva foram-lhe arrebatadas por Lobo Neves. Ao se reencontrarem anos depois, Virgília está ainda mais bela, e ele decide tomá-la do marido, como vingança. (No capítulo XXVI, Brás Cubas diz que nasceu para ser “urso”, o que no linguajar de hoje tem justamente esta conotação.) Ao achar na rua uma “meia dobra” de ouro perdida por alguém, ele a embolsa, dizendo, “É minha!”. Seus direitos sobre a moeda não são maiores que seus direitos sobre Virgília.

Mas Brás devolve a moeda, num gesto altruísta e meio absurdo: manda-a para a polícia, para que procure seu verdadeiro dono! Conta obter com isto o entusiasmo do Destino, e recebê-la de volta, muitas vezes multiplicada. Dias depois acha cinco contos na praia. Também não são dele, mas ficam sendo, e ele os deposita no Banco. E agora vejo para que servirão esses cinco mil contos. Para gratificar no fim da vida a Dona Plácida, sem cuja casa e sem cujo amadrinhamento seus amores com Virgília não teriam prosperado. A “meia dobra” de ouro é a conquista de Virgília; os cinco contos são os anos de adultério feliz. São moedas de câmbio paritário, na contabilidade final de Brás Cubas.

1694) Plágios e variantes (16.8.2008)



(Malba Tahan)

Em 1948, o Ellery Queen’s Mystery Magazine publicou um conto do francês Maurice Level, “L’Encaisseur” (1920), sob o título “The Debt Collector”. Nele, um tal Ravenot, cobrador de um banco, é um funcionário honestíssimo e exemplar. Um dia, depois de executar várias dívidas vultosas, desaparece com 200 mil francos. Hospeda-se sob nome falso num hotel de subúrbio, vai até o escritório de um advogado e lhe entrega um envelope lacrado (com o dinheiro dentro) dizendo tratar-se de documentos de família. Anuncia que está indo para uma viagem, voltará dentro de alguns anos, e o envelope deve ser-lhe entregue sem qualquer identificação, bastando que ele diga chamar-se Henri Duverger.

O plano de Ravenot é simples. No dia seguinte ele se entrega à polícia, confessa o roubo, e diz que por sua vez foi assaltado, ficando sem o dinheiro. Ravenot tem 35 anos. Como tem bons antecedentes, pega cinco anos de prisão. Sai de lá com quarenta de idade e 200 mil francos para se estabelecer na vida. O problema é que quando está se encaminhando para o escritório do advogado, começa a fantasiar mentalmente como será sua chegada, sua entrada, o diálogo, até o momento em que diz: “Eu sou... eu sou...” E aí dá-lhe um branco. Ele não lembra mais o nome falso que usou.

Ravenot passa alguns dias em crise. Uma noite, desce até o rio Sena para molhar o rosto na água fria, e reavivar a memória. Escorrega, cai na água, e ao ser arrastado pela correnteza, começa a gritar em desespero: “Socorro! Meu nome é Duverger! Socorro!” Mas os Contos de Moral e Exemplo não perdoam, e ele afunda nas água do Sena.

É um conto minúsculo e perfeito, e o editor Ellery Queen o considera “provavelmente uma das histórias mais plagiadas da literatura moderna”. A tentação de reescrever uma história assim é quase irresistível. Queen diz ter ouvido em programas de rádio dos EUA pelo menos duas versões do conto de Level, sem menção ao nome do autor, e uma terceira versão, também radiofônica, num programa de rádio-teatro de primeira linha, em que o nome secreto é mudado de “Duverger” para “Heart’s Desire”.

Nosso Malba Tahan também fez sua variante. Um peregrino que vai a Meca confia todas as suas riquezas à guarda de um ulemá (espécie de juiz muçulmano), para lhe serem devolvidas na volta mediante uma senha, uma simples frase. Na volta de Meca é assaltado, vendido como escravo, e passa anos sofrendo tantas provações que quando regressa seu rosto está mudado, os cabelos embranquecidos, e ele não lembra mais qual foi a senha que deixou para reaver seus pertences. Sofre com isto durante meses, passando fome, vagando pela cidade sem um tostão, até que não resiste mais e vai ao ulemá. Quando começa a explicar o que aconteceu, o ulemá lhe diz: “Fique tranqüilo, já o reconheci por causa desse tique nervoso que você tem”. O final de Malba Tahan é menos trágico; mas é mais engenhoso, mais irônico, mais satisfatório.

1693) A síndrome de Truman (15.8.2008)




No filme O Show de Truman, de Peter Weir, Jim Carey é um rapaz que pensa viver uma vida normal, mas é o personagem de um gigantesco e caríssimo “reality show”. Desde bebê, Truman Burbank vem sendo criado por uma “família” de atores, num cenário montado pela emissora de TV que fatura com seu programa 24 horas no ar. Primeiro, numa casa, depois com uma creche, escola, rua, bairro, finalmente uma cidade cenográfica inteira, mantida no interior de uma cúpula, povoada em tempo integral por atores e figurantes que fingem viver uma vida normal. 

A vida de Truman é acompanhada pelo mundo inteiro, graças aos milhares de câmaras instaladas em todos os pontos que ele freqüenta na cidade. É The Biggest Brother.

Não há quem não se comova com a crise por que passa Truman quando começa a perceber toda a encenação à sua volta. Como não ficaríamos, se soubéssemos que nossa vida inteira foi roteirizada por alguém, e que nossa esposa, nossos parentes, nossos amigos, são atores pagos para executarem um script, fazendo-nos crer que o mundo em que vivemos é real, e não uma cidade cenográfica? E que o mundo inteiro nos assiste, até quando vamos ao banheiro?

Pois este é o drama de alguns pacientes dos médicos Joel e Ian Gold, de Montreal. Todos são homens brancos, de 25 a 34 anos de idade, a maioria com nível universitário. No hospital canadense, eles confessaram aos psiquiatras o terror que sentiram ao perceberem a verdade.  

“Minha família e todos os meus conhecidos” disse um deles “são atores cumprindo um roteiro, uma encenação cujo único propósito é me transformar no centro das atenções do mundo inteiro”. Diz outro, um veterano do exército: “Eu percebi que era, e sou, o foco de atenção de milhões e milhões de pessoas”. (Veja mais em: http://tinyurl.com/ydbrx6ph).

Todos nós vivemos momentos mal explicados, em que erros de continuidade parecem ocorrer de um dia para o outro. Ficamos murmurando: “Engraçado, eu poderia jurar que...” 

Em outros momentos, parece que todo mundo (inclusive pessoas que não se conhecem entre si) querem nos induzir a proceder dessa ou daquela maneira; como se todos tivessem combinado um script em que somos um protagonista a ser influenciado. 

O Dr. Ian Gold lembra que “o desejo de fama é uma forma de mania de grandeza, e o medo de estar tendo sua vida minuciosamente vigiada pode levar à paranóia”. Diz também que “os novos meios de comunicação estão abrindo novos espaços sociais, e eles podem estar interagindo com nossos processos psicológicos”.

Todo delírio mental toma formas oferecidas pela sociedade. Na Idade Média as pessoas imaginavam que eram raptadas por demônios; hoje em dia, afirmam que foram abduzidas por extraterrestres. 

A mente individual fornece as tensões, as pulsões, a força irrefreável dos desejos e anti-desejos reprimidos; e a cultura onde vive essa pessoa fornece os enredos, os cenários e os personagens.






1692) “Amélie Poulain” (14.8.2008)




Se um dia eu fizer uma lista com Os Dez Filmes Mais Felizes do Cinema, este aqui aparecerá com certeza. Ainda não sei quais seriam os outros nove, e talvez não existam, mas este simpático e inteligente filme de Jean-Pierre Jeunet pode preencher sozinho a lista. 

Minha admiração por Jeunet surgiu nos dois filmes bizarros, surrealistas, cruéis, grotescos, que ele dirigiu com Marc Caro: Delicatessen (1991) e O Ladrão de Sonhos (1995). Filmes com estética de história-em-quadrinhos francesas, criatividade visual do cinema de animação do Leste Europeu, alguns elementos da ficção científica dos anos 1960 e um senso de invenção visual incessante, barroco.

Qualidades que estão em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), que Jeunet dirigiu sozinho, mas com a mesma verve visual e narrativa. Uma fotografia de cores estouradas recriando uma Paris de desenho animado, irreal, encantadora. Uma edição frenética, mas que sabe puxar as rédeas nos momentos certos, variando de ritmo com dinâmica segura. 

Um roteiro de imaginação incansável, cheio de pequenos achados que parecem desnecessários mas são o tempero ideal para uma história que poderia ser bobinha e banal. E atores que parecem com gente, dando ao filme, que é um conto de fadas, um lado terra-a-terra que acaba sendo bem-vindo e evitando que ele fique água-com-açúcar.

Enquanto os dois primeiros filmes de Jeunet tinham sido sombrios e cruéis, este aqui é uma fábula de bons sentimentos, contando a história de uma moça tímida e solitária que um belo dia resolve fazer felizes outras pessoas. 

A história não se dilui em sentimentalismo, até porque algumas das tentativas de Amélie dão com os burros nágua, como o romance que ela tenta armar entre a moça da tabacaria e o ex-namorado da garçonete do café onde trabalha. Mas suas demais aventuras são cheias de charme e de imaginação.

Uma personagem de Delicatessen, para tentar se matar, inventa mecanismos complicados tipo Rube Goldberg – uma porta que se abre, libera um peso, que aciona uma alavanca, que afasta uma vela, que queima um cordão, que derruba outro peso, que puxa outro cordão, que aciona um gatilho... 

Essa mesma mecânica de dezenas de efeitos complicados para cumprir uma função simples está por trás das maquinações de Amélie para descobrir quem é o homem misterioso que se faz fotografar nas cabines da estação ferroviária, e com isso atrair um rapaz que coleciona fotos rasgadas nessas cabines, pelo qual ela se apaixonou.

O roteiro é tão cheio de detalhes que somente ao ver o filme agora pela terceira vez percebi a função de vários deles. É uma dessas narrativas em que a gente não pode piscar o olho. Não porque seja de ação vertiginosa, como nos filmes dos X-Men; pelo contrário, a ação dos personagens é miúda, compassada, e ocorre numa Paris artificial que lembra a dos musicais da Metro. 

É a riqueza de detalhes (e o coração da protagonista) que faz do filme uma experiência de incessante prazer.