quinta-feira, 9 de outubro de 2025

5202) A Zona crepuscular (9.10.2025)

 


(Annihilation, de Alex Garland, baseado na obra de Jeff Vandermeer)


 
A ficção científica tem, por um lado, uma liberdade imaginativa sem limites. Claro que por outro lado existe o compromisso com a Ciência, mesmo quando é apenas da boca para fora. 
 
A Ciência serve de bússola. Aponta para a realidade do mundo material. E por isso é útil, mesmo quando estamos falando de coisas impossíveis neste mundo – viagens no tempo, viagens mais rápidas que a luz, teleporte de seres vivos que chegam vivos (e idênticos, e lúcidos!...) do lado oposto... 
 
A Ciência, na FC, serve como o Norte magnético apontado pela bússola. Não quer dizer que o navegador tenha que viajar para o Norte. Ele precisa apenas saber em que direção fica. 
 
Se o autor consegue se situar nas quatro direções dessa rosa-dos-ventos ou desse eixo-cartesiano, ele é livre para imaginar o que bem entender. É literatura.
 
Quem dá as coordenadas na FC é a imaginação, não a Ciência. E se muitas vezes uma parece contradizer a outra, tanto melhor: é essa tensão que acumula energia mental no escritor e o leva a ser mais engenhoso, mais ardiloso, mais convincente. 
 
Quando não parece haver nada mais para inventar, a FC tira da cartola uma imagem surpreendente. A Encyclopedia of Science Fiction registra (https://sf-encyclopedia.com/entry/cliches) uma imagem “da FC de fins do século 20, e que não poderia ter sido prevista”: espaçonaves em forma de árvore!  O verbete dá exemplos de Stephen Baxter, Larry Niven, Dan Simmons – este em Hyperion, recentemente traduzido no Brasil pela Ed. Aleph. 
 
Outra imagem recorrente é a Zona. 




Não a Rua das Vitrines em Amsterdam, se bem que esta mereceria uma versão FC, por que não?  Eu me refiro à Zona, que todos nós conhecemos, do filme Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979), e do romance Roadside Picnic (1972, Arkady e Bóris Strugatski; no Brasil, Piquenique na Estrada, Ed. Aleph). 
 
É um local onde aparentemente houve um pouso e permanência de extraterrestres. Depois que foram embora, deixaram para trás uma grande quantidade de objetos incompreensíveis, e graves distorções no espaço-tempo. Uma espécie de Chernobyl ultra-dimensional, cheia de armadilhas invisíveis e perigosas. (O romance dos Strugatsky é anterior ao desastre de Chernobyl, mas pode ter se inspirado em outro, mais antigo.) 
 
Os stalkers são sujeitos ousados que aprendem a se deslocar naquela zona perigosa, e o fazem para trazer de lá objetos, souvenirs, que vendem bastante caro. E às vezes servem de guia (como num safari) para pessoas que querem curtir a aventura de entrar na Zona Proibida. 
 
Sobre algum possível simbolismo do filme, Tarkovsky declarou: 
 
A Zona não simboliza nada, não mais do que qualquer outra coisa que aparece em meus filmes. A Zona é uma zona qualquer, é a vida, e quando um homem a atravessa ele pode ser destruído ou pode chegar intacto do lado oposto. 
(IMDB, trad. BT)
 
Uma versão recente desse ambiente é a “Área X” imaginada por Jeff Vandermeer em sua série de romances Annihilation, Authority, Acceptance (todos 2014) e Absolution (2024). Os três primeiros saíram no Brasil pela Ed. Intrínseca, com tradução minha. 


 
A Área X de Vandermeer fica, aparentemente, na região de mangues e pântanos da Flórida. Alguma coisa ocorreu ali, e deixou essa área cercada por uma espécie de campo de força invisível que a bloqueia nos dois sentidos. O Exército descobre uma passagem, e começa a mandar destacamentos de soldados e cientistas para investigar. Ali dentro ocorrem estranhas mutações biológicas. Há um farol abandonado, e um poço que desce (com escadaria em espiral) terra adentro, como uma torre invertida. Quem emerge da Área X volta amnésico, e morre de câncer pouco depois. 
 
Vandermeer explora de maneira brilhante nos três primeiros livros (ainda não li o quarto) esses acontecimentos bizarros, deixando claro que o Farol é o ponto crucial de tudo, e sugerindo que alguns personagens foram “copiados” e transportados para outro ponto do espaço. 


 

E agora estou encerrando a leitura de Nova Swing (2007), romance de M. John Harrison ambientado num planeta distante, nas proximidades de uma zona misteriosa do espaço denominada “o Território Kefahuchi” (“the Kefahuchi Tract”), onde por alguma razão as leis da física não funcionam. A premissa do livro é que um fragmento desse Território caiu no planeta, em cima de uma cidade à beira-mar chamada Saudade. 
 
Sim, “Saudade” mesmo, em português. Harrison explica o significado da palavra (e nas notas do final do livro agradece a dica a “Luis Rodrigues”). 
 
Saudade é uma mistura de cidade de policial noir e cidade futurista, mistura que rapidamente se tornou clichê depois de filmes como Blade Runner (1982) e livros como Neuromancer  (1984).  Em casos assim, a originalidade, se houver, tem que vir nos detalhes e no espírito. Felizmente, Harrison é bom nas duas coisas. 
 
Vic Serotonin é um stalker que conduz pessoas em visitas à Zona, ou ao “site”, que ocupa uma parte considerável da cidade, entrando pelo mar adentro. A Zona é protegida por cercas e vigiada pela polícia, mas sempre é possível encontrar uma brecha. Esse conceito dramatúrgico vem sendo desenvolvido de maneira coerente por estes autores (Strugatski, Tarkovsky, Harrison, Vandermeer), em que cada um pede emprestados detalhes dos demais e os reutiliza, como se todos estivessem se referindo a um só lugar. 



 
No livro de Harrison, acontece de vez em quando uma invasão de gatos, uma proliferação inexplicável; na obra de Vandermeer, são coelhos. 
 
Chuva, sol, vento, luz – esses efeitos surgem de forma desencontrada em todas essas zonas. Como se o espaço tivesse se estilhaçado e cada fragmento pertencesse a um instante diferente do tempo. 
 
M. John Harrison assim se refere à Zona de Saudade, citando a “auréola” (uma espécie de halo intermediário que a rodeia, mas não propriamente um campo-de-força intransponível): 
 
Não havia auréola nenhuma, afinal; havia ali apenas a mais delgada das películas entre diferentes estados de coisas. Você de repente penetrava na pior parte daquilo, sem se dar conta. 
(p. 149)
 
Não importa o que acontecesse, as sombras eram projetadas em ângulos absurdos para a época do ano, como se a geografia estivesse se lembrando de alguma coisa coisa. 
(p. 164)
 
Saudade é uma cidade à beira-mar e ao mesmo tempo um espaçoporto. É outro clichê nostálgico da FC. As histórias de viagens espaciais herdaram algumas figuras dramatúrgicas das velhas histórias de marinheiros e navios. Um deles é o ambiente meio lumpen de um cais do porto, fervilhante de vagabundos, desempregados, descuidistas, misturados a marujos calejados e competentes que não se destacam na multidão. 
 
Uma viagem ao espaço é um equivalente literário de uma viagem ao oceano. Pelo menos três romances de Samuel R. Delany começam com um capitão de espaçonave perambulando no cais-do-espaçoporto e recrutando “no olho” uma tripulação heterogênea: Empire Star (1966), Babel-17 (1966) e Nova (1968). 
 
Saudade, como todo espaçoporto, está impregnada dessa nostalgia pelo espaço. 
 
“Alguns viajantes marítimos,” ela havia escrito, “nunca conseguem re-adaptar suas pernas ao solo firme. Desembarcam no cais, mas daí em diante caminham no solo com a dificuldade de quem tenta caminhar sobre um colchão.Sentar quieto é pior ainda, ou tentar adormecer. Quando andam, pelo menos os sintomas diminuem”. 
(p. 143)
 
Há uma correspondência poética entre essa Zona proibida, composta de estilhaços do espaçotempo, e a cidade em si. Ali, as pessoas andam em Cadillacs da década de 1950, fumam cachimbo, escutam jazz ou tango (ou “New Nuevo Tango”) no bar. Mas há uma pessoa com braço prostético cheio de telas e painéis de comunicação; a engenharia genética pode redesenhar um corpo à vontade do cliente, que pode ser transformado numa réplica de Albert Einstein ou de Audrey Hepburn. 
 
Fora da Zona (ou melhor: no entorno da Zona) o tempo parece também ter se fraturado e recomposto, só que agora com cacos de cultura, memória, hábitos... Os resíduos de uma História terrestre que todos eles conhecem vagamente de ouvido, como nós de hoje conhecemos coisas tipo “Idade Média” ou “Antiguidade”. 
 
John Clute, um dos meus críticos favoritos de FC, diz, ao comentar o livro: 
 
A palavra em português “saudade” implica numa nostalgia romântica, e uma aspiração sonhadora de que aquilo que foi perdido possa ser recuperado novamente; a diferença deste sentimento para com termos como desideratum ou Sehnsucht reside precisamente nessa pungente persistência da esperança. 
 
É curioso este comentário final. Alguém, famosamente, já definiu saudade como “vontade de ver de novo”, mas nem sempre essa aspiração é satisfeita. Não há como não lembrar a sextilha igualmente famosa de Severino Pinto do Monteiro: 
 
Essa palavra saudade
conheço desde criança...
Mas a saudade do ausente
não é saudade, é lembrança;
saudade só é saudade
quando morre a esperança.
 


 
 
 
 





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