https://canalcurta.tv.br/series/a-persist%C3%AAncia-da-mem%C3%B3ria
Cada “documentarista” cria sua própria verdade. É um
documento? É, mas é como se uma pessoa pegasse um retângulo de papel e
desenhasse ali uma carteira-de-identidade, desenhando a própria foto, a própria
impressão digital, as próprias informações, e depois assinasse com sua própria
assinatura.
Dizia Silvio, a certa altura:
São coisas que você vai guardando da infância, da adolescência... E aí, quando você vai fazer cinema, você vê com muito mais simpatia, então eu acho que esse desejo que a gente tem, de contar histórias, está profundamente ligado às lembranças da infância. Eu acho que memória é aquilo que a gente quer lembrar, né? Você tem também uma lembrança oculta que você não quer contar. Você sabe coisas de você que você não revela pra ninguém: é só tua memória oculta, a tua lembrança que você guarda só pra você mesmo, e se te perguntarem você vai negar de pés juntos até a morte – mas você sabe da existência daquela memória. Acho que memória é isso, memória é desejo. Eu olho muito do ponto de vista da história, a memória não como âncora, mas como bússola.
A “pessoalidade” (o contrário de “impessoalidade”) que orienta o documentário é exemplificada por Silvio com uma memória de sua própria infância, memória criadora de um vínculo emocional que acabou, muitos anos depois, direcionando seu trabalho como cineasta.
Eu fui fazer [um filme] usando JK por uma lembrança de infância. Eu tinha dez anos de idade, em 1960, estava no carro com meu pai ali no recém construído Aterro do Flamengo. No final, já, do governo JK, o Rio de Janeiro estava deixando de ser a capital, estava se transformando em [Estado da] Guanabara. E um dia nós estávamos indo para a Zona Sul vindo do centro, para casa, para Copacabana, e meu pai emparelhou com um carro (...) e eu olhei para o carro ao lado e era o JK, o Juscelino Kubitschek, aí eu olhei e abri a janela pra ver o Presidente. E ele me viu, viu que eu estava olhando pra ele, ele abriu a janela e deu aquele sorrisinho dele, e me cumprimentou com aquele aceno clássico. A criança nunca mais esquece isso, essa é a coisa que você nunca mais esquece. E isso está na raiz de um filme político, que é Os Anos JK (1980).
Olha, esse trabalho é fundamental, essas pessoas apaixonadas por fotogramas, que adoram o cheiro de acetato, de ácido acético, né? São maravilhosas, né? Eu tenho o orgulho e a honra de ter começado talvez com o mais brilhante deles, que foi o Chico Moreira. Ele começou comigo no Anos JK, ele era um estudante de cinema da UFF e aí eu fui trabalhar na Embrafilme, dirigia um programa chamado “Coisas Nossas” e me deram o Chico como assistente. Aí, durante a realização desse programa, eu percebi que ele conhecia muito mais cinema do que eu, ele era um apaixonado por cinema, ele ia todas as noites ao cinema, conhecia todos os filmes, tinha uma coleção de lentes, coleção de revistas, etc. Aí quando eu comecei a fazer o som do JK, a colecionar aquele material na Cinemateca do MAM, o Cosme Alves Neto me convidou para organizar o arquivo do MAM e eu falei, “Cosme, não, eu vou botar na mão da pessoa que mais entende disso, não sou eu, é o Chico”. Aí o Cosme ficou chateado, achou que era mentira, que eu não estava querendo pegar o trabalho, mas o Chico aceitou e foi longe, continuou nessa carreira, fez curso no exterior, foi pra FIAF [Federação Internacional de Arquivos de Filmes] e tal... Então eu acho que ele é o primeiro grande conservador do cinema brasileiro. Depois a Cinemateca Brasileira organizou isso também, se equipou, conseguiu equipamentos e profissionais muito bons, tem o João Sócrates, que hoje mora em Londres, que também organizou essas técnicas para você recuperar e preservar acervos... Você tinha em Curitiba o Valêncio Xavier, com essa gama de pessoas apaixonadas por cinema... Você tem a Myrna Brandão e o marido dela aqui no Rio de Janeiro, que também começaram a salvar filmes... A Alice Andrade, que salvou o acervo do Joaquim Pedro, você tem a Paloma Rocha que salvou o acervo do Glauber, e a Maria Hirszman que salvou o acervo do Leon, né?
É uma conspiração de pessoas que habitam porões com ar condicionado e salas escuras. O documentário – e aqui penso no “documentário na mão de quem monta”, mais do que “na mão de quem filma” – sobrevive por essa guilda de gente para quem o cheiro de vinagre é carregado de poesia.
São duas questões diferentes: o excesso de informação, e a permanência. O Benjamin, quando escreveu A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica ele estava tirando a aura do cinema como objeto único. Hoje a coisa se inverteu. O cinema é objeto único, porque apesar de você ter inúmeras cópias, você não se dispersa na quantidade de informação que você recebe. Você assiste um filme inteiro, e o filme transmite uma idéia de começo, meio e fim. Você tem ali uma continuidade. Ao contrário do que há no “zap” e todas essas outras informações que circulam por todos os meios: elas são fragmentadas, elas são dispersas, então você recebe tanta massa de informação por dia que no final do dia você não lembra quem te mandou o quê... Essa informação se perde porque teu cérebro não tem a capacidade de armazenar toda essa informação que a gente recebe. Agora – o “objeto único” tem. Então, quando você quer falar de uma Era, você não cita um filmete que você recebeu por zap, que você não lembra nem onde ele está. Você cita um filme que você assistiu e que vai te falar daquele momento.
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