sexta-feira, 5 de setembro de 2025

5197) Silvio Tendler, 1950-2025 (5.9.2025)



 
O cinema brasileiro perdeu hoje um diretor que dedicou sua vida inteira ao documentário e construiu com sua obra “uma sala por onde todo mundo tem que passar”, como dizia um amigo meu. 
 
Não conheço a maior parte da obra de Silvio Tendler, que é numerosa. Suas compilações sobre a história do Brasil, enfocando Juscelino Kubitschek, João Goulart, Milton Santos, Glauber Rocha, Josué de Castro, etc., são registros preciosos não apenas da nossa História mas da maneira de abordá-la. 
 
A maneira de abordá-la!  Quanta tinta tem sido gasta na tentativa de equacionar esse problema.   
 
Silvio, que não cheguei a conhecer pessoalmente, foi um dos entrevistados da série televisiva A Persistência da Memória de Paola Vieira (Canal Curta, 2023), em cujo roteiro colaborei. A série aborda o fenômeno “memória” de vários ângulos; um deles é a reconstrução da memória pessoal e coletiva através do cinema, especialmente do documentário. 
 
Aqui:
https://canalcurta.tv.br/series/a-persist%C3%AAncia-da-mem%C3%B3ria
 
Peço licença a minha diretora e à Luni Produções para transcrever aqui alguns trechos das respostas de Silvio, quando entrevistado em 2021. O cinema chamado de “documentário” é algo menos imparcial e menos objetivo do que vulgarmente se entende por aí afora. A palavra “documento” é uma palavra enganosa: sugere a existência de uma verdade que ninguém ousaria contestar, algo objetivo, invulnerável à crítica. Isso não existe. 




Cada “documentarista” cria sua própria verdade. É um documento? É, mas é como se uma pessoa pegasse um retângulo de papel e desenhasse ali uma carteira-de-identidade, desenhando a própria foto, a própria impressão digital, as próprias informações, e depois assinasse com sua própria assinatura. 
 
Dizia Silvio, a certa altura: 
 
São coisas que você vai guardando da infância, da adolescência... E aí, quando você vai fazer cinema, você vê com muito mais simpatia, então eu acho que esse desejo que a gente tem, de contar histórias, está profundamente ligado às lembranças da infância. Eu acho que memória é aquilo que a gente quer lembrar, né? Você tem também uma lembrança oculta que você não quer contar. Você sabe coisas de você que você não revela pra ninguém: é só tua memória oculta, a tua lembrança que você guarda só pra você mesmo, e se te perguntarem você vai negar de pés juntos até a morte – mas você sabe da existência daquela memória. Acho que memória é isso, memória é desejo. Eu olho muito do ponto de vista da história, a memória não como âncora, mas como bússola. 
 
A “pessoalidade” (o contrário de “impessoalidade”) que orienta o documentário é exemplificada por Silvio com uma memória de sua própria infância, memória criadora de um vínculo emocional que acabou, muitos anos depois, direcionando seu trabalho como cineasta. 
 
Eu fui fazer [um filme] usando JK por uma lembrança de infância. Eu tinha dez anos de idade, em 1960, estava no carro com meu pai ali no recém construído Aterro do Flamengo. No final, já, do governo JK, o Rio de Janeiro estava deixando de ser a capital, estava se transformando em [Estado da] Guanabara. E um dia nós estávamos indo para a Zona Sul vindo do centro, para casa, para Copacabana, e meu pai emparelhou com um carro (...) e eu olhei para o carro ao lado e era o JK, o Juscelino Kubitschek, aí eu olhei e abri a janela pra ver o Presidente. E ele me viu, viu que eu estava olhando pra ele, ele abriu a janela e deu aquele sorrisinho dele, e me cumprimentou com aquele aceno clássico. A criança nunca mais esquece isso, essa é a coisa que você nunca mais esquece. E isso está na raiz de um filme político, que é Os Anos JK (1980). 
 
Pode soar parecido com o narcisismo e o umbiguismo que hoje vigoram nas redes sociais, em que o Eu é sempre o centro de tudo. O Eu, no entanto, é o mais frágil dos centros. É “o centro que não consegue se sustentar”, no dizer do poeta Yeats. O que mais rapidamente desmorona no sumidouro da inexistência (ou no da insignificância, que é maior e mais fundo). Não importa: o Eu é tudo que cada um de nós possui, e no caso de quem faz algum tipo de arte é o ponto para onde convergem (para onde parecem convergir) todas as linhas do mundo.  



Um artista, e ainda mais um documentarista de cinema, tem uma percepção mais vasta do quanto a História é um oceano onde bóia o torrão de sal do Eu antes que se dissolva. E sabe o quanto são significativos, para as pessoas comuns, esses contatos de raspão com a História, com o mundo das Pessoas Importantes. O mundo dos “olimpianos”, como dizia Edgar Morin, aqueles de quem ouvimos falar diariamente, mas que sabemos existir num universo paralelo a que dificilmente teremos acesso. 
 
E tentamos compensar isso com esses momentos breves: o autógrafo do autor best-seller, a selfie com o astro pop.  Nesse momento, o fã anônimo se sente existir pela primeira vez no “mundo de verdade”, o mundo das pessoas famosas que aparecem na TV e nas revistas. 
 
Para uns, o mundo do Glamour. Para outros, o mundo do Poder. 
 
E a verdade é que no momento da filmagem (inclusive da entrevista filmada) e principalmente no momento da montagem (ou da “edição”, como está se dizendo agora) o Documentarista é um deus-pequenino manipulando as figuras históricas como se fossem action figures de seu jogo pessoal. 
 
O conceito de documentário tem fronteiras distantes, inquietantes, movediças; é uma espécie de “Área X” onde quem penetra volta transformado.  E essas fronteiras não são um marco de cimento no meio de uma imensa pradaria deserta. São como aquela fronteira Brasil/Uruguai bem no meio de uma cidade super movimentada, uma calçada fica num país e a calçada em frente já está no outro. 




Fazer documentário envolve uma porção de gente identificando material, preservando, restaurando, indexando, acessando, escolhendo, reeditando, reinterpretando, refazendo. Uma cadeia de pessoas que em geral trabalham silenciosamente, anonimamente, à revelia umas das outras, às vezes separadas por intervalos de milhares de quilômetros ou de dezenas de anos. 
 
Olha, esse trabalho é fundamental, essas pessoas apaixonadas por fotogramas, que adoram o cheiro de acetato, de ácido acético, né? São maravilhosas, né? Eu tenho o orgulho e a honra de ter começado talvez com o mais brilhante deles, que foi o Chico Moreira. Ele começou comigo no Anos JK, ele era um estudante de cinema da UFF e aí eu fui trabalhar na Embrafilme, dirigia um programa chamado “Coisas Nossas” e me deram o Chico como assistente. Aí, durante a realização desse programa, eu percebi que ele conhecia muito mais cinema do que eu, ele era um apaixonado por cinema, ele ia todas as noites ao cinema, conhecia todos os filmes, tinha uma coleção de lentes, coleção de revistas, etc. Aí quando eu comecei a fazer o som do JK, a colecionar aquele material na Cinemateca do MAM, o Cosme Alves Neto me convidou para organizar o arquivo do MAM e eu falei, “Cosme, não, eu vou botar na mão da pessoa que mais entende disso, não sou eu, é o Chico”. Aí o Cosme ficou chateado, achou que era mentira, que eu não estava querendo pegar o trabalho, mas o Chico aceitou e foi longe, continuou nessa carreira, fez curso no exterior, foi pra FIAF [Federação Internacional de Arquivos de Filmes] e tal...  Então eu acho que ele é o primeiro grande conservador do cinema brasileiro. Depois a Cinemateca Brasileira organizou isso também, se equipou, conseguiu equipamentos e profissionais muito bons, tem o João Sócrates, que hoje mora em Londres, que também organizou essas técnicas para você recuperar e preservar acervos... Você tinha em Curitiba o Valêncio Xavier, com essa gama de pessoas apaixonadas por cinema... Você tem a Myrna Brandão e o marido dela aqui no Rio de Janeiro, que também começaram a salvar filmes... A Alice Andrade, que salvou o acervo do Joaquim Pedro, você tem a Paloma Rocha que salvou o acervo do Glauber, e a Maria Hirszman que salvou o acervo do Leon, né?  
 
É uma conspiração de pessoas que habitam porões com ar condicionado e salas escuras. O documentário – e aqui penso no “documentário na mão de quem monta”, mais do que “na mão de quem filma” – sobrevive por essa guilda de gente para quem o cheiro de vinagre é carregado de poesia. 




Mal comparando, a montagem de documentários a partir de material de arquivo (material antigo, já existente, não filmado pelo mesmo diretor) é uma espécie de quebra-cabeças. No joguinho de quebra-cabeças, ou puzzle, temos que encaixar peças umas nas outras a partir de dois critérios: 1) As peças precisam se encaixar fisicamente (as curvas das bordas precisam coincidir com exatidão); 2) Depois de encaixadas, as peças precisam reproduzir um desenho, que o jogador vai descobrindo aos poucos (ou já vem proposto na própria caixa do brinquedo). 
 
No documentário, é preciso haver esse encaixe no corte, na passagem de uma imagem para a seguinte (por corte seco, fusão, escurecimento, etc.). Mas a figura que vai ser revelada no final é uma criação do documentarista. Não estava prevista em cada peça isolada. É como se as peças do puzzle estivessem todas em branco, e à medida que as encaixasse uma na outra ele fosse pintando um quadro. Uma Obra.  
 
Dizia Silvio, lembrando um ensaio famoso de Walter Benjamin: 
 
São duas questões diferentes: o excesso de informação, e a permanência. O Benjamin, quando escreveu A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica ele estava tirando a aura do cinema como objeto único. Hoje a coisa se inverteu. O cinema é objeto único, porque apesar de você ter inúmeras cópias, você não se dispersa na quantidade de informação que você recebe. Você assiste um filme inteiro, e o filme transmite uma idéia de começo, meio e fim. Você tem ali uma continuidade. Ao contrário do que há no “zap” e todas essas outras informações que circulam por todos os meios: elas são fragmentadas, elas são dispersas, então você recebe tanta massa de informação por dia que no final do dia você não lembra quem te mandou o quê... Essa informação se perde porque teu cérebro não tem a capacidade de armazenar toda essa informação que a gente recebe. Agora – o “objeto único” tem. Então, quando você quer falar de uma Era, você não cita um filmete que você recebeu por zap, que você não lembra nem onde ele está. Você cita um filme que você assistiu e que vai te falar daquele momento. 
 
O filme-pronto se salva porque tem começo, meio e fim. Tem um fio de pensamento costurando tudo, e é esse fio que o salva. Tem uma mente ordenadora por dentro de todos aqueles fragmentos. E o resto que fica fora do filme é apenas uma farofa de grãos de imagem. 



 
 
 
 




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