sexta-feira, 9 de maio de 2025

5177) Revendo "O Falcão Maltês" (9.5.2025)

 

 
O Falcão Maltês é uma obra que, por duas linhas de influência (livro de Dashiell Hammett em 1930, filme de John Huston em 1941), marcou todo o gênero da história de detetive hardboiled
 
Hardboiled é uma expressão norte-americana para descrever ovos cozidos durante muito tempo, e que ficam duros, sólidos. Penso eu que há nisto uma ironia sutil ao hábito sofisticado de comer ovos moles, pouco cozidos, como os ovos escalfados, ou “ovos pochê”. 
 
A expressão hardboiled me evoca aqueles ovos-cozidos de botequim, com casca colorida, daquele tipo que o cara pede quando está no balcão, tão bêbado que não consegue enunciar direito o pedido e apenas aponta com o dedo, naquele vitrinezinha horizontal, o prato cheio de ovos com casca cor-de-rosa ou amarela. 
 
O detetive hardboiled (um detetive particular, ou um policial com distintivo) é alguém que passa a sensação de dureza (=valentia, violência, brabeza), e também a percepção de algo ou alguém fervido, castigado, curtido pela vida. 
 
Dashiell Hammett (1894-1961) escreveu cinco romances e algumas dúzias de contos que recriaram o gênero. O Falcão Maltês, o mais conhecido, foi serializado na revista Black Mask, e saiu em formato de livro em 1930. 
 
Os próximos comentários estão cheios de spoilers, mas não há outra maneira de comentar uma narrativa que se baseia em reviravoltas, revelações, surpresas. 
 
O detetive Sam Spade investiga o assassinato do seu sócio, Miles Archer, contratado por uma bela loura para descobrir o paradeiro da irmã desaparecida. Surgem alguns gangsters com interesse no caso, e vê-se que não é o que parecia à primeira vista. Spade começa um xamego amoroso com a cliente, Brigid O’Shaughnessy, que está, tal como os gangsters, à procura de uma jóia valiosa: a estátua de um falcão, feita em Malta, cravejada de brilhantes. 
 
Sam Spade consegue se adiantar a todos, mesmo pressionado pela polícia e pelos gangsters. Ele recupera o Falcão Maltês, negocia com os bandidos, mas descobre que a estátua é falsificada, e entrega todos à polícia – inclusive sua paixão Brigid O’Shaughnessy, porque no toma-lá-dá-cá das investigações e interrogatórios ele descobre que foi Brigid quem matou, no início do livro, seu parceiro Miles Archer. 



(placa atual, numa rua de San Francisco)

 
O filme de John Huston é muito bom, e segue de pertíssimo a narrativa do livro; mas o modo de escrever de Hammett é único e irreproduzível. No filme, Sam Spade é interpretado por Humphrey Bogart, o protótipo do “galã feioso”; só que, comparado ao personagem do livro, Bogart é um Adônis. 
 
Eis como Hammett descreve a aparência física de Sam Spade: 
 
A mandíbula de Samuel Spade era longa e ossuda, seu queixo um V proeminente abaixo do V mais flexível de sua boca. Suas narinas se curvavam para trás formando um V ainda menor. Seus olhos cinza-amarelados eram horizontais. O tema do V era reproduzido pelas espessas sobrancelhas castanhas que se erguiam de duas rugas sobre o nariz quebrado, e o cabelo castanho-claro se projetava para diante por entre duas têmporas lisas, convergindo para a testa. Tinha a agradável aparência de um satanás louro. (...) (Cap. 1) 
 
Ele tirou o pijama. O aspecto liso e roliço dos seus braços, pernas e corpo, e a postura curvada dos seus ombros volumosos, tornavam seu corpo parecido com o de um urso. Um urso escanhoado: seu peito não tinha um pelo sequer, e a pele era fina e rosada. (Cap. 3) – trad. BT 
 
Há três mulheres na vida de Sam Spade durante esta narrativa. 


(Humphrey Bogart e Lee Patrick)
 

A primeira é sua secretária e resolvedora-de-problemas Effie Perine (interpretada no filme por Lee Patrick). Com ela, Spade mantém uma relação simpática de companheirismo, ajuda, um carinho sem pressão, sem paixão, sem cobrança excessiva além da cobrança de chefe e funcionária.  



(Bogart  e Gladys George, "Iva Archer") 

A segunda aparece menos – é Iva, a viúva de Miles Archer, com quem Spade tem um caso, e que tem a função de pedra-no-sapato desde a primeira cena. Um típico caso extraconjugal (da parte dela) do qual ele se arrepende o tempo inteiro. 




 
(Bogart  e Mary Astor, "Brigid O'Shaughnessy)

A terceira é Brigid O’Shaughnessy (Mary Astor), a suposta cliente que depois se torna amante e cúmplice na busca pelo Falcão Maltês. O filme de John Huston é bastante casto em cenas de sexo (era a época do chamado Código Hays, de muita censura no cinema), mas a história precisa deixar claro que Spade se apaixona por ela desde o início – ou desde que os dois passam uma noite juntos entre o fim do capítulo 9 e o começo do capítulo 10. 
 
O livro também não pode ter muitas ousadias em termos de sexo. Era 1930, afinal de contas, uma época em que Hammett precisava escrever coisas como: “O rapaz disse duas palavras, a primeira delas um verbo curto e gutural, e a segunda you.” Quem fazia uma literatura desse tipo mal poderia sonhar com as cachoeiras de fuck, fucking e fucker que são despejadas na dramaturgia de 2025. 
 
Depois da noite que Spade e Brigid passam juntos, ele escapole enquanto ela está adormecida, furta a chave do apartamento dela e vai fazer uma revista, em busca do Falcão Maltês. O modo como Hammett descreve a cena é de uma atenção sensorial e uma minúcia quase eróticas. 
 
    No apartamento da garota ele acendeu todas as luzes. Revistou o local de parede a parede. Seus olhos e seus grossos dedos moviam-se sem pressa aparente, sem hesitar, sem vacilar, sem voltar atrás, de um centímetro de sua área de atuação até o seguinte, experimentando, escrutinizando, testando tudo com a segurança de um especialista. Cada gaveta, armário, caixa, mala, baú, trancado ou destrancado, foi aberto, e seu conteúdo examinado com dedos e olhos. Cada peça de tecido foi apalpada pelas mãos em busca de saliências ocultas, enquanto os ouvidos ficavam alerta à espera de um estalido de papel sob a pressão dos dedos. Ele arrancou os lençóis da cama. Olhou embaixo dos tapetes e de cada peça da mobília. Puxou para baixo as persianas para ver se nada tinha sido enrolado e oculto ali. Debruçou-se na janela e olhou se não havia nada pendurado para fora. Enfiou um garfo em potes de pó e de creme na mesinha de toalete. Ergueu sprays e frascos para olhá-los de encontro à luz. Examinou os pratos e as panelas e a comida e os recipientes. Esvaziou a lixeira em cima de folhas de jornal abertas. Ergueu a tampa da descarga no banheiro, esvaziou a água, olhou para dentro. Examinou e testou as telas de metal sobre os ralos do banheiro, da pia de rosto, da pia da cozinha e da máquina de lavar. 
                Ele não achou o pássaro preto. 
(cap. 10, trad. BT)
 
O detetive passou uma noite com a mulher (que ele logo adiante estará chamando de “my own true love”), e agora a trata com essa desconfiança implacável, voluptuosa, profissional. Que lembra o verso famoso de Chico Buarque: “Desfruta do meu corpo como se meu corpo fosse a sua casa” (“O Meu Amor”). 



(Dashiell Hammett)

 
Existe um machismo subjacente a toda história de detetive. São histórias escritas por homens, publicadas por homens e lidas por homens. Só na segunda metade do século 20 as mulheres passaram a ter uma presença quantitativamente significativa nessas três atividades. (As exceções havia, é claro, e eram brilhantes.) 
 
Quando no fim da história Spade compreende que foi Brigid quem matou seu parceiro de agência (o detetive Miles Archer), tudo muda. 
 
Ela diz que o ama. Ele diz que talvez a ame também, mas explica para ela: 
 
Quando o parceiro de um homem é assassinado, supõe-se que ele tem de fazer alguma coisa a respeito. Não faz a menor diferença o que a gente achava dele. Ele era seu parceiro, e você tem que fazer alguma coisa. E acontece que a gente trabalha no ramo de detetives. Bem, quando alguém da nossa organização é assassinado, não é bom para nosso trabalho se o assassino escapar impune. É muito ruim mesmo. É ruim para todo mundo que é detetive. 
(diálogo do filme; trad. BT)
 
Os detetives têm essa solidariedade, uma mistura de espírito-de-corpo, camaradagem, sentimento militar de “band of brothers”. Isto, para Sam Spade, é mais precioso do que o eventual amor que ele venha a sentir por uma mulher. 
 
Num dos romances de Chandler, o detetive Marlowe vai para a cadeia por se recusar a responder sobre o paradeiro de um cliente acusado de crime. Marlowe passa oito ou dez dias deitado numa cela, fumando e olhando para o teto. Um policial tenta convencê-lo de que ele está sendo idiota, e Marlowe precisa chamá-lo para a real. “Todo mundo no meu círculo de atividade sabe que eu estou preso, e por quê. O que pensariam eles se eu entregasse meu cliente só para ser solto? Quantos clientes você acha que eu conseguiria depois disso?”. 
 
Philip Durham, um estudioso do romance hardboiled, vê essa ética dos detetives como um prolongamento do chamado “espírito de fronteira” dos desbravadores do Oeste norte-americano, onde as populações tinham que criar seus próprios códigos de conduta. O herói (diz ele) reúne estas características: “coragem, força física, indestrutibilidade, indiferença ao perigo e à morte, uma atitude cavalheiresca, celibato, uma certa medida de violência, e o senso de justiça.” 
 
Dashiell Hammett trabalhou alguns anos como detetive da Agência Pinkerton. Um dos seus superiores lá, James Wright, assim definia o código dos detetives: “Não engane seu cliente. Mantenha-se anônimo. Evite riscos físicos desnecessários. Seja objetivo. Não se envolva emocionalmente com um cliente. E nunca violente sua própria integridade.” 
 
Estes dois últimos itens eram os que Sam Spade devia ter em mente quando entregou Brigid O’Shaughnessy à polícia pelo assassinato de seu parceiro. Quando se descobre qoe o Falcão Maltês, causa de todas aquelas mortes, era uma cópia falsa, alguém pergunta a Sam Spade o que é afinal esse objeto. E ele responde: “É a matéria de que nossos sonhos são feitos.” 
 
Curiosamente, esta última frase (o último diálogo do filme) não vem do livro de Hammett. Consta que foi uma sugestão de Humphrey Bogart, reformulando uma frase de Shakespeare em A Tempestade: “Somos a matéria de que os sonhos são feitos, e as nossas vidas minúsculas estão envoltas pelo sono.” 



(O Falcão Maltês)
 
 
 
 
 





Nenhum comentário: