O filme de Walter Salles Jr. é um filme sobre a memória,
o apagamento, o esquecimento, etc., porque afinal de contas trata-se da
adaptação do livro em que Marcelo Rubens Paiva conta como se deu o sumiço do
seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva, em 1971, por obra e graça da ditadura
militar.
Marcelo, aliás, surgiu com outro livro de memórias, Feliz Ano Velho, em que narrava um pouco
dessa história mas, principalmente, o período que se seguiu ao acidente que o
deixou tetraplégico. O livro é excelente, foi um best-seller da década de 1980, é um livro formador para minha
geração – e aí tenho que fazer uma traquinagem nas contas numéricas, porque
Marcelo Rubens Paiva, apesar de mais novo do que eu, publicou primeiro, e seu
livro fez parte das minhas “leituras formadoras”.
Não é só memória, no entanto, ou melhor, é isso – e tudo
o mais que está enganchado nisso, emaranhado, grudado, acumulado, fazendo parte
disso.
A cabeça de quem escreve é uma mistura de xadrez, tômbola,
e biscoito-da-sorte. Um pensamento desencadeia algumas reações imprevisíveis,
associações de idéias ou de imagens, e a gente escreve, como quem copia um
ditado, sem ter tempo de enxergar quem está ditando.
Isto talvez ajude a explicar uma palavra aleatória que usei
no primeiro parágrafo deste texto. Comecei pensando em ir noutra direção, mas
agora vou pegar essa transversal, depois volto à avenida.
A palavra é “sumiço”, uma palavra que uso rarissimamente,
e que só aparece no meu vocabulário quando pretendo me referir ao livro do francês
Georges Perec La Disparition (1969),
frequentemente citado neste blog.
É o famoso “romance onde não aparece a letra E”. O livro foi
publicado em inglês como A Void, em
italiano como La Scomparsa e no
Brasil, em tradução de Zéfere, como O
Sumiço (Ed. Autêntica, 2015).
O livro conta o desaparecimento de um indivíduo chamado
Anton Voyl e a busca desesperada de seus amigos para localizá-lo. Aos poucos,
um dos significados da história vai se esclarecendo: Voyl significa “voyelle”, (“vogal”). O livro acontece
em um mundo de onde a letra “E” desapareceu e todo o resto das coisas que
existem teve que se desarrumar e arrumar de novo, se reorganizar, se
recombinar, para preencher aquela ausência.
O livro tem muitas outras coisas, mas para o presente
caso serve como ilustração. Quando se subtrai algo essencial ao idioma, à fala,
à vida, à conversa humana (à literatura...), e essa subtração é irreversível,
não tem jeito a dar. O mundo inteiro tem que se arrumar de novo para preencher
aquela ausência, aquela desaparição, aquele vazio, aquele sumiço.
E mais: sem ter plena consciência do que aconteceu –
sabe-se apenas que tudo agora é assim e talvez tenha sido sempre assim. O mais
cruel de um sumiço é quando todo mundo precisa se acostumar a essa ausência e acaba
mesmo pensando que “é, foi sempre assim, está tudo normal, não sumiu nada nem
ninguém”.
Daí (voltando à avenida principal) a importância da
história central contada em Ainda Estou
Aqui.
Não li o livro de Marcelo Rubens Paiva e não sei os
contextos em que a frase do título aparece. Quando soube do filme e todo o
fuzuê que ele gerou em torno de si (milhões de ingressos, indicações ao Oscar,
etc.) compreendi que essa frase era uma frase-símbolo de Eunice Paiva, a
viúva-sem-ser, a mulher que passou décadas infernizando a vida dos militares,
da polícia, do sistema judiciário, da imprensa, como quem diz: “Não, não fui embora, ainda estou aqui. Olha
eu aqui de novo. Vim reclamar outra vez. Vim bater na porta outra vez. Tem
resposta? Tem explicação pra mim? Tem justificativa? Alguém pode me contar de
verdade o que aconteceu? Alguém pode me fazer a fineza de dizer o que aconteceu
com meu marido?.
A interpretação de Fernanda Torres é excelente e merece todo
o reconhecimento que tem obtido. Não pude deixar de lembrar dela em Terra Estrangeira, meu filme favorito na
obra de Walter. Duas personagens, dois mundos tão distantes e parecidos.
Por outro lado, gostei muito de Selton Mello como Rubens
Paiva, com uma semelhança notável com o personagem. Bonachão, tranquilo,
sorridente, sério, firme, ele ocupa a primeira meia hora de filme (mais ou
menos), construindo uma presença maciça sem esforço. Selton Mello é um dos
atores mais descontraídos que há, larga as falas como se estivesse improvisando
tudo, naquele mesmo instante.
E é essa presença tão carismática que é subtraída ao
filme a partir da chegada dos policiais da repressão, e sua partida para o
quartel. Aliás, uns policiais extremamente plausíveis para quem viveu aquela
época. Não são soldados com farda do Exército e cabelo à escovinha. Não. É
aquele contingente dos lumpen-repressores, cabeludos, barbudos, desconfortáveis.
O tipo do executor pegado-no-laço para fazer trabalhos sujos e depois sumir.
Perguntado sobre sua ocupação, um deles diz: “Sou
especialista em parapsicologia”. Gente com alguma escolaridade, mas sem planos
além da sobrevivência, gente sem ideologia além de leituras ao acaso e meia
dúzia de preconceitos herdados sem refletir. Gente facilmente cooptável por
qualquer tipo de regime, em troca de algum salário e – principalmente – em troca
do Poder de amedrontar outras pessoas.
Depois que Rubens Paiva desaparece, quebra-se aquela felicidade
familiar que orbitava em torno dele. (E aí não é preciso dizer que todo passado
é utópico para quem escolhe recordá-lo assim. Por que não posso achar que algum
dia já fui feliz?!...)
E nesse momento o título do filme muda da origem e de
tom. Não é mais Eunice quem fala. É como se fosse o marido e o pai dizendo, do
outro lado de sabe-se-lá-que-abismo: “Ainda
estou aqui. Ainda estou com vocês, pelo menos enquanto vocês lembrarem de mim.
Continuem falando em mim, para que eu continue a estar com quem não esqueceu”.
E a luta da família fica não somente como uma luta pela
Justiça, mas uma luta pela Presença, pela continuação daquela presença que para
eles era preciosa.
Uma presença que vaza, de fora para dentro, mesmo em
imagens onde o personagem não aparece. Eunice é conduzida encapuzada pelos
corredores escuros do quartel, e ouve os faxineiros derramando baldes de água
no chão do corredor e esfregando o piso com rodos. Esfregando o que? Sangue, mas de quem?
Na hora da mudança forçada para São Paulo, uma das filhas
some, e a mãe vai encontrá=la sozinha, na areia da praia, olhando em despedida
o mar de Ipanema. Sim, é um adeus a Ipanema, por alguém que provavelmente gostaria
de jamais ir embora de Ipanema. Mas é a presença do pai no mar, vazando para
dentro da cena. Será que foi neste mar que jogaram meu pai?
Também muito se falou da reconstituição “de época” do
filme, e imagino o trabalhão que deu compor aquelas ruas, fachadas de lojas,
móveis, automóveis, roupas, detalhe de arquitetura. Vim ao Rio de Janeiro pela
primeira vez em 1970, já cineclubista e universitário, olhos arregalados para
aquilo tudo, sem imaginar que viveria aqui mais da metade da minha vida. Existe
algo de aconchegante na visão daqueles fuscas, daquelas camionetes, daqueles
cabelos. O mundo já foi assim.
Por outro lado, o “clima de época” se solidifica em outro
tipo de cena. As cenas dos olhares de esguelha quando passa um caminhão de
soldados, quando se percebe uma blitz lá adiante, quando a TV anuncia mais um
atentado, quando os amigos se reúnem num apartamento para trocar novidades em
voz baixa.
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.
(Carlos Drummond, “Nosso Tempo”,
A Rosa do Povo)
Tempos que nunca passarão de todo, infelizmente, porque
não há utopia alguma no horizonte futuro do radar.
Vendo o filme de Walter Salles me veio à mente um filme
iraniano recente, A Semente do Figo
Sagrado (Mohammad Rasoulof, 2024). Ali se vê também a imagem de uma mãe e
uma filha, encapuzadas, sendo levadas pelos corredores sem luz de uma prisão
estatal, para interrogatório. É também uma tragédia familiar, mas de outra
natureza. O pai é juiz, recebe uma promoção no Tribunal Revolucionário de
Teerã, e a família dá um pulo bacana em estilo de vida, moradia, roupas, etc.
Só que aos poucos a mãe e as filhas ficam sabendo que,
para isto, o marido aceitou assinar sentenças de morte (contra os inimigos do
regime) sem sequer examinar os autos. A filha precipita a tragédia final ao
trazer às escondidas para dentro de casa uma amiga, “estudante subversiva”,
ferida durante uma manifestação. E o pai descobre.
Cada família infeliz é infeliz à sua maneira, dizia um
escritor. Só que nem toda família a quem sobrevém uma tragédia é necessariamente
uma família infeliz. Uma tragédia que não pode ser revertida precisa ser
assimilada. A família tem um milhão de coisas práticas para resolver, tem uma
memória para salvar, tem uma Presença para manter junto a si. A imprensa quer
uma foto, mas precisa (ah, imprensa) de uma foto triste. Eunice diz: “Sorriam”.
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