segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

5156) Eita, me esqueci (24.2.2025)

 

 
Minha irmã Clotilde é escritora hiperativa e médica aposentada. Se bem que médico nunca se aposenta, principalmente se tiver família. Vai num aniversário e logo encosta um sobrinho: “Tia, aproveitei e trouxe meus exames pra senhora dar uma olhada...”  
 
No presente caso, o consulente fui eu, porque ultimamente estava me dando uma bobeira preocupante, tipo parar diante da estante, numa prateleira específica, mão erguida, gesto parado no ar, e uma pergunta: “O que foi mesmo que eu vim buscar?”. As desistências da memória. 
 
Liguei pra ela, que mora em Natal (RN). 
 
-- Acho que estou com Alzheimer – anunciei, porque sou da escola jornalística “conclusões primeiro, explicações depois”. E há precedentes. Meu pai, que morreu com 86, passou seus últimos anos num limbo, cercado de desconhecidos que forcejavam para dar-lhe banho ou comida, e por âncoras de TV que nunca respondiam suas provocações. Só que naquela época o diagnóstico era: “Papai está esclerosado”. 
 
Enfim: não custa nada consultar um médico, principalmente quando é de graça. E ligo eu para o 084. 
 
Ela escutou os sintomas, e mandou “na lata”: 
 
-- Tenho boas e más notícias. A boa é que não é Alzheimer. A má é que é velhice, e não tem cura. Quando chegar na cozinha e não se lembrar do que foi fazer, beba água. 
 
É velhice, é um carro rodado, como o fusca de Zé Fernandes, que tinha mais de 600.000 km no velocímetro e ele dizia: “Meu carro já foi na Lua e voltou”. O cérebro se desgasta, os neurônios, as sinapses, as conexões. 
 
E tem um agravante. À medida que a gente vive mais, o organismo sofre o desgaste natural, mas o nosso universo mental não cessa de se ampliar, com novas vivências, novas tarefas, novas leituras, novas experiências. O prédio da Biblioteca encolhe, mas livros novos não param de chegar. 
 
Esquecer o nome de um escritor ou de um centroavante não é um problema dos mais sérios, o problema é esquecer a data de uma palestra ou a hora de tomar um remédio. Quando isso acontece (“eita, meu voo não é semana que vem, é hoje”) fico me sentindo como o personagem daquele conto: “Sábio Com Um Buraco Na Memória”, daquele escritor argentino – ele não... o outro... o altão... o que morava na França, gostava de jazz... está na ponta da língua. 
 
Por isso mesmo quero aproveitar cada momento de lucidez e de capacidade escriturária.  Há quem me pergunte por que escrevo tanto. Quando eu tinha trinta anos, pensava: “Serei lido daqui a mais trinta!”. De que me adianta continuar pensando assim agora? Escrevo pelo prazer de escrever, que é um prazer semelhante ao de ser capaz de subir sozinho uma escada de aeroporto ou rodoviária, mochila pesada às costas, sem a ajuda de ninguém. Vocês não sabem o quanto isto é prazeroso. 




Fiz um mergulho muitas vezes agradável, e muitíssimo útil, nesses incômodos assuntos quando colaborei numa série de TV dirigida por Paola Vieira (produção da Luni/Recife), para o Canal Curta, A Persistência da Memória. Perguntamos sobre “memória” a pessoas como Sidarta Ribeiro, Ailton Krenak, Mary Del Priore, Luiz Antonio Simas, Eliana Alves Cruz, Hernane Heffner (Cinemateca do MAM), Antonio Marinho, Aluf Alba (Arquivo Nacional), Karen Worcman (Museu da Pessoa), Paulo Lins, Sílvio Meira (Porto Digital)... 
 
Procurem aqui:
https://www.curtaon.com.br/series/serie.aspx?serieId=1327
 



Ter que assistir e editar dezenas de entrevistas de especialistas sobre o tema não melhorou minha capacidade mnemônica, mas me ajudou a aceitar a existência dos buracos, das bobeiras, dos “brancos”. A mente é uma rua de terra. Tem buracos? Paciência. Se a gente não pode passar ali a 120 por hora, como passava aos trinta anos, vai devagarinho, e segue em frente. Buraco de estrada também é chão. 
 
Quando me pedem entrevista, sempre prefiro fazer por escrito. Entre outras vantagens (poder responder na hora que preferir – de madrugada, por exemplo) existe a de poder consultar na estante ou no Google algum nome, título, data, seja lá o que for. 




Não quero ficar, ao vivo, numa TV ou rádio-por-telefone, como algum locutor esportivo idoso que diz: “Parte o Flamengo para o contra-ataque, defesa está aberta, Gerson estica para Bruno Henrique, ele disputa a bola com o zagueiro do Fluminense, o... o nosso amigo... o da camisa tricolor, o número 20 do tricolor das Laranjeiras, disputando a bola com o atacante rubronegro...” e enquanto ele lembra dos nomes a bola já foi gol e alguém já deu nova saída. 
 
O que atrapalha pra valer é esquecer de pagar o boleto no vencimento, esquecer de mandar a documentação, de assinar a autorização ou a carta de anuência, de cobrir a conta na véspera do débito automático, de comprar o remédio antes do fim da caixa... 
 
Atrapalha também, mas sem consequência graves, esquecer de responder as dezenas de emails ou zaps com perguntas, comentários, alôs, olás... Ou até responder duas vezes por esquecer que já tinha respondido (tomara que as duas respostas sejam parecidas). 
 
Tudo isto faz parte do varejo da memória, dos lembramentos e esquecimentos diários, miúdos, cotidianos. Temos que nos conformar com isto sem fazer um exagero em torno.  




Quando a gente tem 15 anos, esquece do dia da prova, esquece de devolver uma grana emprestada, esquece de botar a camisa pra lavar antes do jogo de domingo... É problema mental? Não, é fuzuê mental. A cabeça de um adolescente é um salão cheio de pessoas falando ao mesmo tempo. 
 
A cabeça de um velho é o mesmo salão, ampliado pelos muitos anos de vida. O velho, porém, descobriu o botão do volume. Quando fica muito alta a gritaria dos compromissos, dos trabalhos, dos lembretes, das agendas, das conversas pessoais, das discussões práticas... ele simplesmente abaixa o volume. Fica todo mundo mexendo a boca, e ele pode fechar os olhos em paz por meia hora. 
 
Só que não há botões individualizados – ou aumenta tudo, ou abaixa tudo. 




O que nos dizem os especialistas em memória é que esquecer é tão importante quanto lembrar, porque a capacidade de processamento do cérebro é finita (e, em muitos casos, declinante com a idade) e é mais útil poder manter um fluxo normal e incessante de idéias do que ficar sujeito a um “engarrafamento de trânsito” em que memórias irrelevantes ficam bloqueando o caminho de coisas mais urgentes ou mais significativas. 
 
O segredo de lidar com a memória é desapegar, priorizar, maximizar isto, minimizar aquilo, poder pegar uma transversal e continuar sabendo em que direção fica a via principal, saber administrar um combustível na-reserva sem rodeios inúteis... 
 
Como dizia Walter Franco: “O que é que faz com essa cabeça, irmão?... Saiba que ela explode... Olha que ela pode...”. 


https://www.youtube.com/watch?v=rXoLe-EBUgc



 
 












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