sábado, 27 de julho de 2024

5086) A verdade dos fatos e a verdade dos sentimentos (27.7.2024)





Ted Chiang, autor de tantos textos brilhantes de ficção científica, tem no livro Expiração (Intrínseca, 2021, trad. BT) o conto “A verdade dos fatos, a verdade dos sentimentos”, em que ele descreve dois mundos paralelos e suas peculiares relações com a memória. 

 

O primeiro é um futuro próximo em que as pessoas dispõem de super-aplicativos de memorização, implantados na mente. 

 

No segundo, narra-se o choque da chegada dos brancos europeus a uma tribo indígena, com seus conceitos revolucionários, entre eles o de que uma coisa só é verdadeira se for reproduzida sempre do mesmo modo.  

 

No que podemos chamar “Narrativa A”, a história futurista, foi inventado um sistema chamado “Remem”, que permite gravar e indexar memórias de tudo que uma pessoa vivencia. Chamam a isso “bio-logs” – uma espécie de diário áudio-visual com ações, conversas, cenas que a pessoa presenciou ou de que participou. Como se cada cérebro tivesse uma câmara-com-gravador permanentemente ligada. 

 

São aquelas engenhocas maravilhosas da FC. Já pensou?!  Poder gravar tudo, acessar tudo, consultar tudo?! 

 

Milhões de pessoas, algumas da minha idade, mas em geral mais jovens do que eu, vêm mantendo bio-logs, diários biográficos de suas vidas, há anos e anos, usando câmeras pessoais que capturam continuamente vídeos de seu dia a dia. As pessoas consultam esses diários por uma grande variedade de motivos, desde o desejo de reviver seus momentos favoritos até descobrir a causa de alguma reação alérgica. (...) 

 

O Remem monitora as conversas buscando referências a eventos passados, e exibe vídeos desses eventos no canto inferior esquerdo do seu campo visual. Se você diz a alguém “lembra-se daquele casamento em que você dançou a conga?”, Remem exibe o vídeo. Se a pessoa com quem você está conversando menciona “a última vez em que fomos juntos à praia”, o Remem exibe o vídeo. E ele não funciona apenas quando se está conversando com alguém: o Remem também monitora as suas subvocalizações. Se você lê as palavras “o primeiro restaurante chinês onde você jantou”, suas cordas vocais se movem como se você estivesse lendo em voz alta, e o Remem exibe o respectivo vídeo. (pág. 222-223)

               

Parece uma beleza, inclusive porque nos permite esclarecer dúvidas, disputas, esquecimentos... O narrador, porém, percebe logo que em termos de convivência, isso pode estragar a vida. 

 

Casais, por exemplo. A todo instante ficam recorrendo aos bio-logs para determinar quem tem razão numa briga. E o narrador expõe todo o sofrimento que tem na sua relação com a filha adulta, por causa de “quem disse o quê, e como, e quando”. 

 

E ele se pergunta:

 

Era este o limite onde a busca da verdade deixava de ser uma virtude intrínseca. Quando as únicas pessoas afetadas mantêm uma relação pessoal uma com a outra, há prioridades mais importantes, e essa busca detetivesca pela verdade pode se tornar perigosa. É mesmo importante saber de quem foi a idéia daquelas férias que se revelaram desastrosas? É mesmo necessário saber, num casal, qual dos dois é mais relapso em cumprir tarefas? Eu não era um especialista em casamento, mas sabia o que os conselheiros matrimoniais geralmente dizem: apontar culpas não é a resposta. Em vez disto, as duas pessoas precisam ter em mente os sentimentos uma da outra, e encarar em conjunto os seus problemas. (pág. 229) 

 

A outra narrativa, a Narrativa B, é ambientada num vilarejo da Tivlândia (uma região da Nigéria), que recebe as primeiras investidas dos missionários europeus. Os personagens principais são o garoto Jijingi, de treze anos, o ancião Sabe, chefe tribal, e o missionário Moseby. Este último surge aos olhos dos nativos como um personagem meio cômico, por ser desajeitado, pouco atlético; mas aos poucos vai revelando recursos que fascinam Jijingi, principalmente o uso dos livros e dos papéis escritos.

 

O garoto entende a função daquilo e tempo depois está aprendendo a ler e escrever.

 

Foi somente muitas aulas depois que Jijingi finalmente entendeu onde devia deixar os espaços vazios, e o que Moseby queria dizer quando falava em “palavra”. Não se pode saber, ouvindo, onde uma palavra começa e onde acaba. Os sons que uma pessoa faz quando fala são contínuos e sem separações, como o couro da perna de um bode; mas as palavras eram como os ossos por dentro da carne, e o espaço entre elas eram as juntas onde é preciso cortar quando se quer separá-las em pedaços. Deixando espaços ao escrever, Moseby estava tornando visíveis os ossos daquilo que falava. (pág. 233)




Ted Chiang pratica a famosa “prosa vidraça” elogiada por Isaac Asimov, a prosa transparente, com pouco enfeite, cristalina, precisa. E isso é necessário porque ele é um dos autores cujo pensamento tem ao mesmo tempo ousadia e clareza.

 

Como se viu na sua coletânea anterior História de Sua Vida e Outros Contos (Ed. Intrínseca, 2016, trad. Edmundo Barreiros), cada história parte de uma inesperada premissa fantástica, exaustivamente pensada e cuidadosamente desenvolvida. Ele é um escritor de FC hard, não porque carregue nas informações tecnológicas, mas porque obedece com mestria ao método científico.

 

Enquanto isto, os personagens da Narrativa A estão às voltas com o excesso de lembranças que o software Remem descarrega em suas relações pessoais. 

 

Todo tipo de relação se baseia na capacidade de esquecer e perdoar. Minha filha Nicole sempre teve uma personalidade forte: rebelde quando criança, abertamente desafiadora depois que cresceu. Ela e eu tivemos discussões furiosas durante sua adolescência, discussões que depois fomos capazes de deixar para trás, e agora temos uma relação bastante boa. Se tivéssemos o Remem, ainda estaríamos nos falando? (pág. 236) 

 

E na Narrativa B, o jovem africano Jijingi começa a ter pequenas decepções com a arte da palavra escrita, que já domina, quando vê a transcrição datilografada de uma das histórias tradicionais da tribo, contada por Kokwa, o melhor narrador do vilarejo.

 

A versão escrita da história produziu-lhe uma decepção que ele não esperava. Jijingi lembrava muito bem que quando começou a entender o que era a escrita, imaginara que ela lhe proporcionaria a visão de uma história sendo contada, tão vividamente como se estivesse ali. Mas a escrita não era assim. Quando Kokwa contava a história, ele não usava somente as palavras: usava o som de sua voz, os movimentos das mãos, a luz que brilhava em seus olhos. Ele contava a história com o corpo inteiro, e as pessoas a absorviam da mesma maneira. Nada daquilo era transportado para o papel: ali só era possível registrar palavras. E ler somente as palavras produzia apenas uma sombra da experiência de ouvir Kokwa em pessoa, como se alguém estivesse lambendo uma panela onde foi cozinhada a okra, ao invés de comer a okra propriamente dita. (pág. 239)

 

O conto prossegue até o fim fazendo esse paralelo entre duas histórias de ambientação muito diversa, mas com um só tema: Quais as modificações trazidas por novas tecnologias de preservação da memória (a palavra escrita, o software “Remem”)?  




Chiang mostra como a memória constrói ao mesmo tempo a percepção do Eu e a percepção do mundo; e a memória não é fixa nem imutável, pelo contrário – são inúmeros os casos em que a reinterpretação de um fato passado produz uma reviravolta completa em nossas atitudes do presente. 

 

E afinal, o que é a verdade?  A lembrança dos fatos que registramos, ou a lembrança das emoções que sentimos? 

 

A certa altura, o vilarejo africano se envolve numa disputa étnica. Surge uma dúvida sobre o clã a que eles pertencem, pois apareceram versões conflitantes sobre fatos de muitos anos atrás. Jijingi e o missionário discutem, cada um sem entender direito os conceitos do outro.

 

– Mas se Umem e Anongo prestassem juramento também, isso garantiria que eles também diriam precisamente o que aconteceu. Anongo só foi capaz de mentir porque não prestou juramento.

– Anongo não mentiu – dsse Jijingi. – Ele disse o que considerava certo, tal como Umem fez.

– Mas o que Anongo disse não era o mesmo que a testemunha disse.

– Mas isto não quer dizer que ele estivesse mentindo. – Então, Jijingi lembrou algo a respeito da língua dos europeus, e entendeu a confusão de Moseby. – Nossa língua tem duas palavras diferentes para o que na língua de vocês quer dizer “verdadeiro”. Existe o que é certo, mimi, e o que é exato, vough. Numa disputa, os envolvidos dizem o que consideram certo; eles falam mimi. As testemunhas, no entanto, juram dizer exatamente o que aconteceu; eles falam vough. Quando Sabe escuta o relato do que aconteceu ele pode decidir qual a ação que será mimi para todo mundo. Mas se os envolvidos não falam vough, isto não é considerado uma mentira, desde que eles falem mimi.

Moseby, visivelmente, desaprovava isto.

– Na terra de onde eu venho, todo mundo que depõe numa corte tem que jurar que vai falar vough, inclusive os querelantes. (pág. 250-251)

 

O que é a verdade? Nossa verdade pessoal está sempre carregada de emoção, sentimento, vontade, desejo, recusa. A memória pessoal não é objetiva nem imparcial. Lembramos as coisas do jeito que nos parece certo, principalmente no que precisa de interpretação. “Ele reagiu de forma muito agressiva.” “Ela age com indiferença.” “As pessoas aqui me tratam de maneira distante.”  “Fiz tudo que era necessário.”

 

Os psicólogos fazem uma distinção entre memória semântica – o conhecimento de fatos gerais – e memória episódica – a lembrança de experiências pessoais. Estamos usando complementos tecnológicos para a memória semântica desde a invenção da escrita: primeiro livros, depois as ferramentas de busca. Por outro lado, historicamente temos resistido ao emprego desses auxílios no que diz respeito à memória episódica; são muito poucas as pessoas que mantêm diários pessoais ou álbuns de fotos, comparadas às que possuem livros. (pág. 243)

 

E o personagem de Ted Chiang, checando memórias afetivas de infância com sua família, comenta:

 

Ao discutir o papel da verdade numa autobiografia, o crítico Roy Pascal escreveu: “De um lado existe a verdade dos fatos, e do outro a verdade dos sentimentos do autor, e a área em que as duas coincidem não pode ser indicada por antecipação por nenhuma autoridade externa”. Nossas lembranças são autobiografias privadas, e aquela tarde com a minha avó aparece com destaque na minha “autobiografia” devido aos sentimentos que estão associados a ela. E se uma filmagem me revelasse que o sorriso de minha avó era de fato um sorriso artificial, que na verdade ela estava aborrecida porque sua costura não estava saindo bem? O que é importante para mim nessa lembrança é a felicidade que está associada a ela, e eu jamais quereria colocá-la em risco. (pág. 245)



 

 

 

 



Um comentário:

Ítalo M. R. Guedes disse...

Que texto incrível. Apenas uma dúvida, por que a palavra "okra" (quiabo) não foi traduzida?