quinta-feira, 18 de abril de 2024

5053) Drummond: "Outubro 1930" (18.4.2024)




Entre os poemas do livro de estréia de Carlos Drummond (Alguma Poesia, 1930), este longo poema parece se destacar de todos os demais, e ao mesmo tempo permanecer invisível. Certamente estou “comendo mosca” estes anos todos, mas de tantas análises e críticas que já li sobre a poesia de Drummond lembro de pouquíssimas menções a “Outubro 1930”. 
 
É um poema um tanto longo, embora distante de ser um dos mais longos de Drummond. É um dos mais longos deste livro, contudo, e sua principal característica é a sua forma heterogênea, aparentemente desconjuntada. Uma estrutura quebrada, feita (propositalmente) de pedaços que parecem apenas se justapor uns aos outros, sem se encaixar com justeza. 



De propósito, é claro. O mês de outubro de 1930 foi o mês da famosa “Revolução de 30” que derrubou o governo de Washington Luís e levou Getúlio Vargas a passar 15 anos no poder. (Depois ele voltou, mas é outra história). A gota dágua, o fato desencadeador desse conflito militar foi o assassinato do “presidente” (governador) da Paraíba, João Pessoa, morto pelo seu desafeto João Dantas em 26 de julho. 
 
Estes fatos se articulam de maneira especial com a obra de Drummond, nesse tempo um poeta inédito de 28 anos (que ele completaria em 31 de outubro). 
 
Na “Cronologia” que figura em sua Obra Completa da Ed. Aguilar (1967), lê-se, no item referente a esse ano: 
 
Auxiliar de gabinete de Cristiano Machado, Secretário do Interior, ao irromper a Revolução de Outubro, que transforma aquela paragem burocrática em centro de operações militares; passa a oficial-de-gabinete, quando seu amigo Gustavo Capanema substitui Cristiano Machado. 
 
Drummond pegou em armas, no conflito? Certamente que não. O poema fala nas mortes, nos soldados, nas trocas de tiros, mas as imagens autobiográficas provavelmente são trechos assim: 
 
(...)
De 5 em 5 minutos um ciclista trazia ao Estado-Maior um feixe de telegramas contendo, comprimida, a trepidação dos setores. O radiotelegrafista ora triste ora alegre empunhava um papel que era a vitória ou a derrota. Nós descansávamos, jogados sobre poltronas, e abríamos para as notícias olhos que não viam. olhos que perguntavam. Às 3 da madrugada, pontualmente, recomeçava o tiroteio. 
 
É a rotina dos que, distantes das trincheiras, se encarregam das comunicações. Alguém já disse (nesse contexto bem século 20) que, na guerra, um telegrama na hora certa vale tanto quanto uma bala no lugar certo, e é verdade.  Drummond é o “funcionário deitado” a que ele próprio se refere; e seu poema, mesmo com as habituais ironias de jovem irreverente, tem o tom de quem está dentro dos acontecimentos, e não apenas observando-o de fora. 



(Recife, 1930)
 

Há um trecho especialmente real e tocante, um desses “flashes” que dispensam teorizações e mostram a crueza da guerra, como um Gif-animado em que vemos a mesma cena brutal, sem som, repetindo-se indefinidamente: 
 
Olha a negra, olha a negra,
a negra fugindo
com a trouxa de roupa,
olha a bala na negra,
olha a negra no chão
e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis.
 
Morte gratuita, no meio da rua, que pelo menos a mim traz à lembrança uma cena famosa do cinema, a morte da personagem de Anna Magnani em Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini. 
 
Aqui, a cena:
https://www.youtube.com/watch?v=FNnSUpm7CgM
 
Além do estado de guerra, emerge do poema um sopro de alerta histórico e geográfico, a sensação de “um Brasil se fazendo”, um país sendo consertado na-marra por quem se impacientou com sua situação até há pouco. Surge aqui, talvez pela primeira vez, uma imagem recorrente nos primeiros livros de Drummond: a enumeração de nomes de lugares, nomes talvez exóticos, de localidades remotas, mas que se somam uns aos outros e pressionam o poeta, como que dizendo: “Nós também somos Brasil.” 
 
A esta hora no Recife,
em Guaxupé, Turvo, Jaguara,
Itararé,
Baixo Guandu,
Igarapava,
Chiador,
homens estão se matando
com as necessárias cautelas.  
 
São os nomes que chegam nos telegramas. A guerra civil torna-se uma forma curiosa de irmanação patriótica, em que o poeta sente-se confusamente unido às pessoas desses lugares, de alguns dos quais certamente nunca ouvira falar antes da chegada dos telegramas de campanha. 
 
O poema tem um registro irregular, onde a agulha salta da angústia para a ironia, da compaixão para o desinteresse, e se encerra com um sentimento arraigado no poeta, uma mistura de ceticismo e resignação: 
 
Deus vela o sono e o sonho dos brasileiros.
Mas eles acordam e brigam de novo.
 
Fiquei sabendo que este poema apareceu apenas a partir da 2ª. edição do livro, e só então sua presença se encaixou no meu entendimento, porque me parece (não tenho informações mais precisas) que Alguma Poesia teve sua primeira edição antes do conflito armado. A “Cronologia” da Aguilar registra assim: 
 
1930.  Publica Alguma Poesia (500 exemplares), sob o selo imaginário de Edições Pindorama, criado por Eduardo Frieiro. A edição é facilitada pela Imprensa Oficial do Estado, mediante desconto na folha de vencimentos do funcionário. Amigos oferecem-lhe um jantar comemorativo, em que é saudado por Milton Campos. 
 
Do ponto de vista da técnica, o mais interessante deste poema é que ele, sozinho, inaugura na obra de Drummond um formato fragmentado a que o poeta iria recorrer várias vezes no futuro. Não se trata apenas de um poema longo (Drummond gosta de poemas longos), mas de um poema heterogêneo, composto de partes que do ponto de vista formal têm pouca relação entre si. 
 
“Outubro 1930” mostra, alternadamente, estrofes em verso e trechos em prosa. O verso não obedece a métrica fixa, mas reitera em cada linha uma extensão regular – é verso com intenção de verso, para maior contraste com o trecho seguinte, uma série de frases em prosa que parecem querer rebentar a camisa-de-força do verso para comunicar de forma instantânea a urgência dos acontecimentos. 
 
Esse tipo de estrutura heterogênea, misturada, irregular, tem a ver com uma certa concepção do poema que podemos talvez chamar de “cubista”, lembrando o costume de artistas como Pablo Picasso ou Georges Braque de colar, sobre a pintura a óleo, fragmentos meio aleatórios de folhas de jornal, fotografias, papéis de embrulho, provas tipográficas...  


(Picasso, Garrafa de Vieux Marc, Copo, Violão e Jornal, 1913)

 
Era uma pintura invadida e interferida por fragmentos indisciplinados do mundo moderno, “ruídos” que irrompem no interior da estrutura pacífica, milenar, da pintura clássica. Aqui, dá-se o mesmo com a poesia, cuja estrutura é forçada a assimilar a prosa não-poética do mesmo jeito que a sociedade era forçada a assimilar a guerra civil. 
 
Drummond continuou, ao longo da vida, a explorar esses poemas longos em que se misturam, como em colagens cubistas, poesia metrificada, prosa, poesia livre, trechos de diálogo, transcrições de documentos reais ou fictícios... 

Há bons exemplos da riqueza de recursos desse método em poemas como “O voo sobre as igrejas” (Brejo das Almas), “Nosso tempo” e “América” (A Rosa do Povo), “Os bens e o sangue” (Claro Enigma), “A um hotel em demolição” (A Vida Passada a Limpo) e certamente muitos outros. 



 




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