segunda-feira, 15 de abril de 2024

5052) Papai está falando sozinho (15.4.2024)

 

Era uma turma alegre, estávamos conversando na mesa de um bar, cedinho da noite. De repente, um celular sobre a mesa acendeu e vibrou. Um dos meus amigos atendeu, foi até a porta em busca de melhor sinal. Voltou apressado, jogou na mesa duas ou três notas amassadas, sem nem olhar, como fazem os americanos nos filmes. “Já vai?”, perguntei. E ele, afastando-se, por cima do ombro: “Papai caiu.”
 
Na vida dos adultos jovens surge muitas vezes esse período que pode ser chamado “a Era de Dâmocles”. (Dâmocles era aquele grego que mandava botar uma espada pendurada sobre a cabeça dos convidados.)  A espada pode cair a qualquer instante. “Papai” leva uma queda, se machuca um pouco ou nem tanto, precisa ser levado não sei onde, recebe cuidados, curativos, admoestações. E tudo volta ao normal.
 
Até o dia em que noutro bar, noutra festa, noutra reunião de trabalho, brota a mensagem seguinte: “Papai caiu de novo”.
 
É a vida, não é mesmo? Porque uma coisa é cuidar de um bruguelo ou de uma pirraia de fraldas, que bambeia e desaba por cima da quina mais próxima, abre o bué, mas com meia hora de panacéias e carinhos nem se lembra do acontecido. E outra coisa é cuidar de um latagão ou de uma matrona cuja mente tem sempre metade da idade do corpo, e quer continuar a conviver com escadas, chuveiros, prateleiras de cima.
 
Existe outro momento, contudo, também digno de atenção, e este às vezes vem antes.
 
“Papai está falando sozinho.”
 
Eu já vivi isto, muita gente por aí deve ter vivido o mesmo. Muitíssimo frequente nos aposentados e nas pessoas que trabalham em casa. A gente passa no corredor e ouve vozes no quarto de dormir. Vozes no plural? Não, apenas uma, mas dirigindo-se a um suposto interlocutor.
 
– Mas quem diabo mexeu nesse armário... eu sempre deixo essa camisa pendurada do lado esquerdo, quem foi que botou lá na outra ponta?
 
A gente bota a cabeça na porta:
 
– Tudo bem aí?...
 
– Não tem nada bem. Toda vez que eu vou na padaria alguém entra no quarto e tira minha roupa do lugar.
 
Outras vezes o passante-no-corredor arrisca uma olhada e vê o sujeito sentado na escrivaninha, rabiscando apressadamente numas folhas de papel e murmurando coisas como:
 
– Mas é claro... perdi foi meu tempo... essa porra não podia dar certo nunca desse jeito.. tu é burro, meu camarada, tu é muito burro.
 
– Papai?... Tá falando com quem?
 
– Com o imbecil que lhe botou no mundo.
 
Este caso clínico tem um lado-reverso dos mais interessantes, porque existem (em igual proporção) mulheres que falam sozinhas, mas ninguém repara – porque em geral são as mamães, as donas de casa que passam o dia entregues a tarefas domésticas, arrumando, espanando, aspirando, dobrando, limpando, lavando, cozinhando... E falando em voz alta, em altos brados, como num filme italiano.
 
Essas tarefas exigem que ela seja quase onipresente, num segundo está à beira do fogão experimentando um caldo na pontinha de uma colher-de-pau, e dois segundos depois está limpando o banheiro, cuja descarga nem terminou de jorrar e ei-la forrando a cama de casal e entucando as beiras do lençol embaixo do colchão.
 
Como ela está ao mesmo tempo em todos os lugares, está sempre falando, e quem está na sala imagina que ela fala com quem está no terraço, quem está no terraço imagina que é com alguém no corredor, e por aí vai.
 
– Eu não sei de que adianta a pessoa ter meia dúzia de pessoas dentro de casa, porque são cinco pra desarrumar e uma escrava sozinha pra botar as coisas nos cantos... Custa nada botar de volta de onde tirou? Custa, porque esticar o braço é trabalhoso, e eu tenho que vir esticar o meu. A criatura come um pão, mas cadê que ajunta o farelo e joga fora? Não, eu tenho que largar o leite derramando e vir varrer o farelo dela. O outro termina o almoço e acha que faz um grande favor botando o prato na pia, mas não tem nem energia pra derramar no lixo a metade que não comeu...
 
– Mamãe?... Tá falando com quem?...
 
– Com as minhas vizinhas, as almas do Purgatório.
 
É um sintoma generalizado nas pessoas da terceira idade, e acho que aqui chegamos a um detalhe crucial. Por que os jovens não falam sozinhos, e os velhos sim? Creio que em parte é porque os jovens têm medo de serem vistos como doidos, incapazes, ou (mais modernamente) drogados.
 
Todo jovem cultiva a obsessão e o trauma da normalidade externa. Por dentro, o rapaz quer ser Sylvester Stallone ou Ney Matogrosso, não importa: por fora ele sabe que precisa se parecer com rapaz-de-propaganda-de-banco, porque se não vai acionar gatilhos. E a mocinha sente-se no fundo uma Salomé ou uma Rosa Luxemburgo, também não importa: tudo que se exige dela é que seja normal, e depois case.
 
Velhice é outra coisa. Quando um cara entra no terço final da existência, ele percebe pela primeira vez que pode se parecer com ele mesmo. Que o mundo não dá um vintém pelas opiniões dele, e muito menos pelo comportamento. Um jovem sente-se de certo modo responsável pelo mundo. Mesmo sabendo que a tarefa é dantesca, ele respira fundo e procura estar à altura, como um pai de trigêmeos. A velhice começa depois que ele percebe que em vez de tapinhas nas costas o mundo preferiu lhe dar um pé na bunda.
 
No Nordeste existe um comparativo muito a propósito: “Fulano está mais perdido do que cachorro que caiu da mudança”. A mudança é o mundo: virou esquinas, pegou atalhos, furou semáforos, acelerou, deu banda, rompeu pela contramão... e cada sujeito de 60 anos ficou sentado zonzo na poeira, pensando:
 
 – Agora danou-se, mesmo que o pé pudesse pisar direito eu não ia alcançar mais nunca.
 
– Falando com quem, papai?...
 
A enorme sensação de desobrigamento e alívio se traduz num senso lúdico do momento, e um detalhe importante é o retorno prazeroso de um tipo especial de cisão psíquica. Em momentos assim, o sujeito é capaz de simplesmente ser, e este é o Eu no. 1; é capaz de se observar, e quem observa é um Eu no. 2; e é capaz de comentar o que observa com um interlocutor suposto, que podemos chamar de Eu no. 3, embora geralmente, para efeitos estilísticos assuma a figura dos “amigos imaginários” que a pessoa tinha na infância.
 
Sei que parece delirante, e proponho agora um argumento mais pragmático. Todo professor e professora sabe que quando os nossos pirralhinhos repetem uma lição em voz alta aprendem e memorizam melhor do que quando fazem apenas a “leitura silenciosa”. Por que? Ora, porque a memória não passa de uma rede de conexões entre os neurônios, e produzimos milhões delas por dia. A maioria se dissipa após o uso. Dissimam-se mais lentamente quando envolvem diferentes partes do corpo.
 
Quando lemos um conjunto de informações, isto envolve apenas o olho e o cérebro, e nossa memorização repousa nas conexões entre estes dois. Porém quando repetimos em voz alta precisamos usar a garganta, as cordas vocais, a língua, etc., sem falar no fato de que o ouvido também está registrando tudo. Em vez de uma ou duas redes de sinais, temos uma dúzia. É mais difícil de se dissipar.
 
Quando uma pessoa está resolvendo mentalmente um problema, ela na verdade está produzindo algun minúsculos “euzinhos”, cada qual dando uma opinião. Todos são ele, todos representam modos-de-ver dele próprio, mas precisam deliberar.
 
O cara vai viajar, está fazendo a mala. E falando sozinho.
 
– Caramba, é uma semana só, não vou precisar de tantas calças... vou com uma, e vai outra na mala. E esse casaco aqui está ocupando metade do espaço, melhor ir vestido... Mas vestido com ele, num calor desse?  Ora, tanto faz, Uber tem ar condicionado, aeroporto também, avião... Vai, vai vestido. Danado é caber esse sapato... Não, não preciso de dois pares. Vai o que vai no pé e acabou-se.
 
– Papai?... Tudo bem aí?
 
E nem vou me referir ao fato de que indivíduos que escrevem literatura, que escrevem para teatro ou cinema precisam sentir (com a boca, a língua, os lábios, as cordas vocais) como essas frases vão ser fisicamente pronunciadas. Diálogo imaginado em silêncio está sujeito a mil armadilhas. A gente só percebe que está jogando um travalíngua no colo da atriz quando pronuncia ele em voz alta, a tempo de ser corrigido.
 
“ – Saia daqui, Dr. Axel. Imediatamente. Não convoquei esta reunião para que o senhor venha se beneficiar de privilégios hierárquicos”. Privilégios hierárquicos?! Quem diabo no mundo fala desse jeito, caramba!?  “Não lhe chamei para esta reunião para que o senhor venha passar na minha cara a posição que ocupa...” Menos pior. Sei não...
 
– Falando sozinho de novo, papai?...
 
Ele vai responder, enfarruscado:
 
– Tenho é que falar sozinho mesmo, porque preciso de um interlocutor à altura.
 
Não liguem – é mera bazófia, mera jactância. Ele está, como um rádio-astrônomo, tentando fazer contato com uma forma de vida inteligente no fundo do silêncio cósmico de si mesmo. É uma inteligência, viva, confusa, brilhante, inquieta, com quem ele conversou a vida inteira, mas que agora está se afastando com as galáxias, demora cada vez mais para responder... Mas... é a vida!  Quem somos nós para reclamar da expansão do universo?
 
 


[ voz que fala na cabeça ]
 
 
 
 







Um comentário:

Sheilla disse...

Bráulio, escuto minha filha com três transtornos psíquicos falar por ela e responder com outra voz , a solidão é imensa e cria as condições para mais transtornos de agressividade e etc. Como ser antipsiquiatria antimanicomialista com isso ? Ninguém compartulha nem a filha . São casos que passam para o jurídico! Falar só é bom . Mas responder com outra voz assusta! É indecifrável como a loucura do outro afugenta a todos, família, amigos de infância etc. Não se conta com ninguém! Pagando até pode ser, clínicas boa as são caras e nem sempre seguras. Mas é a melhor opção. Quanto a idade avançada que seja com saúde e distância dos "ajudantes".