O melhor livro sobre o trocadilho é o clássico de Sigmund
Freud Os Chistes e a Sua Relação Com o
Inconsciente (1905). A tradução “chiste” me parece seguir o modelo espanhol;
conheci esse livro numa tradução espanhola, e tenho agora o volume VIII da
Edição Standard da Ed. Imago, tradução de Margarida Salomão.
No prefácio desse volume, discute-se a tradução do termo
original alemão (“der Witz”). Ele deu em inglês “wit” e “joke”, mas grande parte
dos exemplos freudianos, sem deixarem de ser “piadas”, “chistes”, “gracejos”, são principalmente trocadilhos, termo que em inglês é “pun”. (Evidentemente,
nenhum brasileiro habituado a soltar um trocadilho deixou passar impune essa
palavrinha sugestiva.)
Resumindo: todo trocadilho é um chiste, mas nem todo
chiste é em forma de trocadilho.
Tenho a doença do trocadilho; pertenço a uma irmandade
informal de viciados, onde posso incluir sem medo Marcus Vilar, André Aguiar,
José Araripe, Henrique Rodrigues, Fraga, e outros calemburistas de reputação
duvidosa. O trocadilho é um sintoma neurótico, no sentido de que o indivíduo
dotado dessa capacidade sente uma compulsão irresistível de trocadilhar tudo
que lhe apareça pela frente, e, pior, de dizer em voz alta cada trocadilho que
lhe ocorre.
É difícil, ao viciado, não armar um trocadilho quando as
palavras se articulam e se oferecem ao seu ouvido; e é praticamente impossível
não dizê-lo. Nenhum trocadilhista autêntico cala um trocadilho que lhe ocorra
em público.
Vou teorizar um pouquinho sobre esta arte, usando um
exemplo autobiográfico. Eu teria uns dezoito anos; na casa dos meus pais, vi
uma maçã numa fruteira e fui pegá-la para comer. Minha mãe, que já tinha
examinado a fruta antes, avisou que ela estava com uma metade podre. “Não tem
problema,” disse eu, “eu jogo fora a metade má e como a metade sã.”
É um bom trocadilho, e é por coisas assim (não porque
leio Freud) que sou tido por inteligente na família. Mas esta pequena façanha
tem características que o trocadilho ideal em geral apresenta:
1) foi um improviso, uma resposta instantânea a uma
situação não planejada;
2) houve uma notável economia de meios, ou seja, não
precisou de nenhum raciocínio complicado, nem fez alusão a algum elemento
externo ao fato em si;
3) a intenção da resposta foi instantaneamente
compreensível, sem precisar de explicações posteriores. (Piada explicada é
piada perdida.)
Darei como contra-exemplo uma graça contada por Ariano
Suassuna, que também manifestava pendor por esse traquejo. Ariano, aliás, eu
coloco no rol dos trocadilhistas clássicos, ao lado de Guimarães Rosa, Paulo
Leminski, François Rabelais, Millôr Fernandes, Emílio de Menezes, James Joyce,
Lewis Carroll e John Lennon.
Foi no tempo em que Ariano era jovem. Ele vinha andando na
rua, numa tarde ensolarada e abafada do verão recifense. Um amigo se aproximou,
os dois trocaram algumas frases, e o amigo disse:
– Olhe, Ariano, eu admiro muito você. Um sujeito íntegro,
intelectualmente firme.
– Muito obrigado – disse Ariano.
– Você é uma pessoa admirável, uma pessoa íntegra. Eu
diria mesmo: uma pessoa una.
– É mesmo? – disse Ariano, já com alguma coisa coçando
atrás da orelha.
– E ainda mais nesse calor! – exclamou o amigo, erguendo
a mão de encontro à luz do sol. – Esse calor terrível, que faz a gente
suar. E aí... suas, una?...
Ariano fazia um muxoxo de incredulidade e comentava:
“Veja bem, o sujeito faz um arrodeio desse tamanho, traz uns assuntos que não
têm nenhuma relação, somente pra fazer um trocadilho vagabundo como esse.”
É a contraprova do primeiro exemplo! Porque claramente
não foi improvisado (foi pensado em casa e trazido para a rua), precisou
introduzir dois temas não relacionados (integridade pessoal, e calor) e mesmo
não precisando de explicação adicional fica bem claro que para juntar essas
duas palavrinhas o sujeito precisou dar o equivalente a uma volta no quarteirão.
Isso é o chamado “trocadilho infame”. E agora vou propor
a segunda parte da minha teoria: se o trocadilho é uma arte, o trocadilho infame
é uma anti-arte, uma paródia de si mesma, uma versão grotesca do Belo e uma
versão disparatada da Sabedoria. Ou seja: é Arte também.
Um trocadilho bem–feito nos leva a guardar alguns
segundos de silêncio e depois dizer um palavrão admirativo ou um elogio ao
geniozinho que o fez. Um trocadilho infame faz o grupo inteiro gargalhar ao
mesmo tempo, dar tapa na perna, tapa na barriga, fazer munganga de arrancar os
cabelos ou de cortar o próprio pescoço; provoca crises lacrimais de hilaridade
e – em suma – reforça a boa-vontade entre os seres humanos, e consequentemente contribui
para a Paz Universal.
Pertence ao domínio do trocadilho infame a famosa “charada
trocadilhesca”, tão dependente da deformação sonora dos vocábulos que não tem
cristão no mundo que adivinhe a resposta. Meu exemplo preferido: “O animal na
torre da igreja encontra-se doente. Duas e duas.” (Resposta: tatu / sino).
Ou esta clássica: “Sofre de gagueira o filho do Couto.
Não é ele, é o outro. Duas e três.” (Sacadura Cabral).
O trocadilho infame só presta se for uma forçação de
barra, um pino quadrado enfiado à força num buraco redondo (ou vice-versa), algo
tão desnecessariamente complicado quanto aqueles mecanismos rubegoldberguianos
em que dezesseis objetos diferentes são conectados uns aos outros para acender
um interruptor de parede.
(Ilustração: Rube Goldberg)
O trocadilho é uma Arte porque implica num mínimo de
esforço para obter um máximo de efeito. O trocadilho infame é uma anti-arte
porque implica num máximo de esforço para obter um mínimo de efeito. (E
portanto, pelas leis do Humor, é uma Arte também.)
(Este texto foi motivado por uma postagem de Alex Antunes
no Facebook, onde ele dizia: “Se um baiano tem abdome negativo, ele é chamado
de 'meu rei côncavo'?)
Um comentário:
CLAP, CLAP, CLAP!
Acho que se não fossem os trocadilhos infames, os trocadilhistas principiantes não chegariam a evoluir hehe.
Aliás, há uma imensa lacuna de um livrão com uma coletânea nacional das maravilhas criadas por tantos trocadilhistas famosos e menos conhecidos.
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