domingo, 21 de maio de 2023

4944) Perry Mason, o melhor advogado do mundo (21.5.2023)




O objetivo do romance policial detetivesco é apresentar um crime misterioso e mostrar o processo do descobrimento da verdade: quem matou, como matou, por quê matou.   
 
Perry Mason, criação de Erle Sanley Gardner (1889-1970), é o advogado-detetive. Certamente não é o primeiro desse tipo, mas é o que de forma mais consistente transformou o tribunal do júri, com sua platéia, no palco-de-teatro que ele sempre tendeu a ser.  Ali a verdade é revelada: sempre de forma melodramática e cheia de suspense, de surpresas, de reviravoltas. 
 
Se o palco de Hercule Poirot e Ellery Queen era a clássica cena final da “reunião dos suspeitos”, Gardner transpôs esse ritual revelatório para o tribunal do júri. E com o ingrediente adicional do conflito, porque Perry Mason não precisa apenas desmascarar o criminoso, mas impor sua narrativa, diante de uma platéia tensa e indecisa, sobre a narrativa de um promotor hostil (o eternamente desafortunado Hamilton Burger).



Gardner é um escritor formulaico. Ou seja: praticamente todos os livros obedecem a uma mesma estrutura, que o leitor conhece, e espera reencontrar. Ele é, contudo, um dos mais hábeis de todos os tempos, porque sua fórmula é larga e flexível, e ele sabia como recheá-la de situações rebuscadas, mas verossímeis.
 
Um detalhe bem típico da ficção formulaica é a repetição de um esquema nos títulos, para indicar ao leitor que são livros em série. Gardner adotou (não em todos os livros, claro) um esquema facilmente reconhecível, de intitular os livros “O Caso do…”, às vezes com repetição de iniciais: The Case of the Lucky Legs (1934), The Case of the Caretaker’s Cat (1935), The Case of the Dangerous Dowager (1937), The Case of the Haunted Husband (1941), The Case of the Drowning Duck (1942)…



(The Case of the Borrowed Brunette, 1946)
 
A fórmula básica de seus enredos é simples. Uma pessoa vem a Mason porque está sendo acusada (ou a ponto de sê-lo) de um crime. Mason acredita na sua inocência, e cai em campo para investigar o crime por conta própria. Seus ajudantes são sua secretária Della Street e o detetive particular Paul Drake, que tem um escritório vizinho ao seu. Mason dá instruções, distribui tarefas, recebe resultados, traça estratégias. 
 
Não há nesses livros os ingredientes sensacionalistas da pulp fiction policial da época. Lembro que ao ler O Caso dos Peixes Dourados me toquei de que era o primeiro livro (depois de dezenas) em que eu via Mason dar um soco num adversário e dar um beijo em Della Street. 


 
Os crimes que Mason investiga não têm a atmosfera gótica e sinistra dos livros de John Dickson Carr ou a complexidade barroca de Ellery Queen. São crimes comuns, praticados em situações comuns, e a façanha do detetive é descobrir a verdade deslindando um novelo de pistas falsas, pistas verdadeiras, mentiras, enganos, versões truncadas, ações inexplicáveis, desculpas implausíveis, gestos irrefletidos, erros de julgamento. 
 
No universo detetivesco de Perry Mason, chega-se à verdade fazendo um levantamento das ações das pessoas, e depois confrontando essas pessoas, no banco de testemunhas, com as próprias contradições. 



Mason é um detetive que usa a oratória como nenhum outro. Não no sentido da “frase bonita”, mas da torção das idéias; das ênfases premeditadas; das alusões veladas que deixam clara uma acusação sem que ninguém possa, tecnicamente, se queixar; das elipses propositais em que ele, sem acusar alguém, induz o júri a uma interpretação.  Sua estratégia é a da gradual imposição de um sentido forçando a platéia a reavaliar os fatos – mais ou menos como no famoso discurso de Marco Antonio no Julio César de Shakespeare. 
 
Gardner era capaz de tirar coelhos e mais coelhos de sua inesgotável cartola de situações. Seu método de trabalho, aliás, favorecia essas narrativas intensamente dialogadas. Em seu rancho, ele tinha secretárias com máquina de escrever, copiando os livros que ele ditava em voz alta. Ele usou longamente o ditafone, modelo de gravador das primeiras décadas do século 20 (gravação em cilindros). 



Na sua biografia The Case of Erle Stanley Gardner (New York: William Morrow, 1946), Alva Johnson compartilha algumas estatísticas do seu sucesso.
 
Seus romances de mistério, em todas as diferentes edições, das de dois dólares às de 25 centavos, tiveram um total de vendas de 4.547.922 livros em 1943, 4.903.685 em 1944 e de 6.104.000 em 1945. (...) Em 1932, ele ditou seu primeiro livro de Perry Mason O Caso das Garras de Veludo, em três dias e meio. (...) Depois, diminuiu esse ritmo para um livro por semana. Hoje (1946), ele desacelerou e produz cerca de um livro por mês. (trad. BT)


Um grande admirador de Perry Mason foi Raymond Chandler, seu colega na revista Black Mask, que no início da carreira se deu o trabalho de datilografar uma história inteira de Gardner, copiando-a, para entender melhor a dinâmica e a tensão de um tipo de narrativa tão envolvente. Anos depois, os dois tornaram-se amigos. Chandler escreveu a Gardner, numa carta de 1946: 
 
Quando um livro, qualquer tipo de livro, atinge uma certa intensidade de performance artística ele se torna literatura. Essa intensidade pode ser uma questão de estilo, situação, personagens, tom emocional, idéia, ou meia dúzia de outras coisas.  Pode ser também uma perfeição de controle sobre o movimento da história, semelhante ao controle que um grande arremessador de beisebol tem sobre a bola.  Para mim, é isto que você tem, mais do que qualquer outra coisa, e mais do que qualquer outra pessoa...  Cada página joga o gancho que nos puxa para a próxima. Eu considero isso uma forma de gênio.  Perry Mason é o detetive perfeito porque tem a abordagem intelectual da mente jurídica e ao mesmo tempo aquele desassossego do aventureiro que não consegue ficar quieto. (trad. BT) 
 
Recentemente, foi lançada uma série com o nome Perry Mason, até interessante, mas que não tem absolutamente nada do personagem original. É outro clima, outro estilo, outras pessoas. A série em si não é ruim, mas seria bem melhor se os personagens (que não têm nada a ver com os de Gardner) tivessem outros nomes. 


 

A série de TV Perry Mason (1957-1966, 271 episódios) foi um grande sucesso na sua época, com Raymond Burr no papel do advogado. Vi vários episódios dela; tem qualidades positivas de ritmo narrativo, bons atores, e roteiros com a tarefa ingrata de compactar em 50 minutos os enredos intrincados de romances de 250 páginas. No seriado, complexas discussões de seis ou oito páginas precisam ser resumidas em meia dúzia de falas. Tudo se torna muito rápido, e quebra uma das principais qualidades folhetinescas do original: o exasperante prolongamento das discussões em que Mason pega um suspeito no banco das testemunhas e arranca dele, gota por gota, as informações que já conhecia, mas que precisam ser reveladas ao juiz e ao público. 
 
O suspense dos livros de Erle Stanley Gardner requer esta condição: longas discussões e interrogatórios, uma escavação implacável das narrativas pessoais, até fazer aparecerem os fatos escondidos sob as palavras. 



O Brasil é o País dos Bacharéis. Somos uma cultura baseada na fala, na conversa, na oratória. Temos uma admiração instintiva por quem “fala bem”, por quem “escreve bonito”. E por quem (como se diz lá em Campina) “tem um papo de derrubar avião”, ou seja, uma conversa capaz de subjugar o impossível. 
 
Perry Mason é o herói da conversa, da argumentação muitas vezes falaciosa, cheia de armadilhas dialéticas, mas sempre com um objetivo: usar todas as armas da retórica para impor a sua “narrativa”. Um Sócrates do tribunal do júri, que, em vez de dizer o que pretende revelar, limita-se a formular as perguntas certas – e a fazer o criminoso, no banco das testemunhas, confessar seu crime. 



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