O objetivo do romance policial detetivesco é apresentar
um crime misterioso e mostrar o processo do descobrimento da verdade: quem
matou, como matou, por quê matou.
Perry Mason, criação de Erle Sanley Gardner (1889-1970),
é o advogado-detetive. Certamente não é o primeiro desse tipo, mas é o que de
forma mais consistente transformou o tribunal do júri, com sua platéia, no
palco-de-teatro que ele sempre tendeu a ser. Ali a
verdade é revelada: sempre de forma melodramática e cheia de suspense, de
surpresas, de reviravoltas.
Se o palco de Hercule Poirot e Ellery Queen era a
clássica cena final da “reunião dos suspeitos”, Gardner transpôs esse ritual
revelatório para o tribunal do júri. E com o ingrediente adicional do conflito,
porque Perry Mason não precisa apenas desmascarar o criminoso, mas impor sua
narrativa, diante de uma platéia tensa e indecisa, sobre a narrativa de um
promotor hostil (o eternamente desafortunado Hamilton Burger).
Gardner é um escritor formulaico. Ou seja: praticamente
todos os livros obedecem a uma mesma estrutura, que o leitor conhece, e espera
reencontrar. Ele é, contudo, um dos mais hábeis de todos os tempos, porque sua
fórmula é larga e flexível, e ele sabia como recheá-la de situações rebuscadas,
mas verossímeis.
Um detalhe bem típico da ficção formulaica é a repetição
de um esquema nos títulos, para indicar ao leitor que são livros em série. Gardner
adotou (não em todos os livros, claro) um esquema facilmente reconhecível, de
intitular os livros “O Caso do…”, às vezes com repetição de iniciais: The Case of the Lucky Legs (1934), The Case of the Caretaker’s Cat (1935), The Case of the Dangerous Dowager (1937),
The Case of the Haunted Husband (1941),
The Case of the Drowning Duck (1942)…
(The Case
of the Borrowed Brunette, 1946)
A fórmula básica de seus enredos é simples. Uma pessoa
vem a Mason porque está sendo acusada (ou a ponto de sê-lo) de um crime. Mason
acredita na sua inocência, e cai em campo para investigar o crime por conta
própria. Seus ajudantes são sua secretária Della Street e o detetive particular
Paul Drake, que tem um escritório vizinho ao seu. Mason dá instruções, distribui
tarefas, recebe resultados, traça estratégias.
Não há nesses livros os ingredientes sensacionalistas da pulp fiction policial da época. Lembro
que ao ler O Caso dos Peixes Dourados
me toquei de que era o primeiro livro (depois de dezenas) em que eu via Mason
dar um soco num adversário e dar um beijo em Della Street.
Os crimes que Mason investiga não têm a atmosfera gótica
e sinistra dos livros de John Dickson Carr ou a complexidade barroca de Ellery
Queen. São crimes comuns, praticados em situações comuns, e a façanha do
detetive é descobrir a verdade deslindando um novelo de pistas falsas, pistas
verdadeiras, mentiras, enganos, versões truncadas, ações inexplicáveis,
desculpas implausíveis, gestos irrefletidos, erros de julgamento.
No universo detetivesco de Perry Mason, chega-se à
verdade fazendo um levantamento das ações das pessoas, e depois confrontando
essas pessoas, no banco de testemunhas, com as próprias contradições.
Mason é um detetive que usa a oratória como nenhum outro.
Não no sentido da “frase bonita”, mas da torção das idéias; das ênfases
premeditadas; das alusões veladas que deixam clara uma acusação sem que ninguém
possa, tecnicamente, se queixar; das elipses propositais em que ele, sem acusar
alguém, induz o júri a uma interpretação.
Sua estratégia é a da gradual imposição de um sentido forçando a platéia
a reavaliar os fatos – mais ou menos como no famoso discurso de Marco Antonio
no Julio César de Shakespeare.
Gardner era capaz de tirar coelhos e mais coelhos de sua
inesgotável cartola de situações. Seu método de trabalho, aliás, favorecia
essas narrativas intensamente dialogadas. Em seu rancho, ele tinha secretárias
com máquina de escrever, copiando os livros que ele ditava em voz alta. Ele usou
longamente o ditafone, modelo de gravador das primeiras décadas do século 20
(gravação em cilindros).
Na sua biografia The
Case of Erle Stanley Gardner (New York: William Morrow, 1946), Alva Johnson
compartilha algumas estatísticas do seu sucesso.
Seus romances de mistério, em todas as diferentes edições, das de dois
dólares às de 25 centavos, tiveram um total de vendas de 4.547.922 livros em 1943,
4.903.685 em 1944 e de 6.104.000 em 1945. (...) Em 1932, ele ditou seu primeiro
livro de Perry Mason O Caso das Garras de Veludo, em três dias e meio.
(...) Depois, diminuiu esse ritmo para um livro por semana. Hoje (1946), ele
desacelerou e produz cerca de um livro por mês. (trad. BT)
Um grande admirador de Perry Mason foi Raymond Chandler, seu
colega na revista Black Mask, que no
início da carreira se deu o trabalho de datilografar uma história inteira de
Gardner, copiando-a, para entender melhor a dinâmica e a tensão de um tipo de
narrativa tão envolvente. Anos depois, os dois tornaram-se amigos. Chandler
escreveu a Gardner, numa carta de 1946:
Quando um
livro, qualquer tipo de livro, atinge uma certa intensidade de performance
artística ele se torna literatura. Essa intensidade pode ser uma questão de
estilo, situação, personagens, tom emocional, idéia, ou meia dúzia de outras
coisas. Pode ser também uma perfeição de
controle sobre o movimento da história, semelhante ao controle que um grande
arremessador de beisebol tem sobre a bola.
Para mim, é isto que você tem, mais do que qualquer outra coisa, e mais
do que qualquer outra pessoa... Cada
página joga o gancho que nos puxa para a próxima. Eu considero isso uma forma
de gênio. Perry Mason é o detetive
perfeito porque tem a abordagem intelectual da mente jurídica e ao mesmo tempo
aquele desassossego do aventureiro que não consegue ficar quieto. (trad. BT)
Recentemente, foi lançada uma série com o nome Perry Mason, até interessante, mas que
não tem absolutamente nada do personagem original. É outro clima, outro estilo,
outras pessoas. A série em si não é ruim, mas seria bem melhor se os
personagens (que não têm nada a ver com os de Gardner) tivessem outros nomes.
A série de TV Perry
Mason (1957-1966, 271 episódios) foi um grande sucesso na sua época, com
Raymond Burr no papel do advogado. Vi vários episódios dela; tem qualidades
positivas de ritmo narrativo, bons atores, e roteiros com a tarefa ingrata de
compactar em 50 minutos os enredos intrincados de romances de 250 páginas. No
seriado, complexas discussões de seis ou oito páginas precisam ser resumidas em
meia dúzia de falas. Tudo se torna muito rápido, e quebra uma das principais
qualidades folhetinescas do original: o exasperante prolongamento das
discussões em que Mason pega um suspeito no banco das testemunhas e arranca
dele, gota por gota, as informações que já conhecia, mas que precisam ser
reveladas ao juiz e ao público.
O suspense dos livros de Erle Stanley Gardner requer esta
condição: longas discussões e interrogatórios, uma escavação implacável das
narrativas pessoais, até fazer aparecerem os fatos escondidos sob as palavras.
O Brasil é o País dos Bacharéis. Somos uma cultura
baseada na fala, na conversa, na oratória. Temos uma admiração instintiva por
quem “fala bem”, por quem “escreve bonito”. E por quem (como se diz lá em
Campina) “tem um papo de derrubar avião”, ou seja, uma conversa capaz de
subjugar o impossível.
Perry Mason é o herói da conversa, da argumentação muitas
vezes falaciosa, cheia de armadilhas dialéticas, mas sempre com um objetivo: usar
todas as armas da retórica para impor a sua “narrativa”. Um Sócrates do
tribunal do júri, que, em vez de dizer o que pretende revelar, limita-se a formular
as perguntas certas – e a fazer o criminoso, no banco das testemunhas,
confessar seu crime.
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