(Roberto Bolaño)
A literatura de Roberto Bolaño (1953-2003) tem uma
aparente facilidade, porque sua escolha de palavras, de frases, de formato de
discurso, é sempre a escolha visando à solução mais fluida, mais imediatamente
legível. Numa entrevista à televisão (no YouTube) ele afirma que seus livros têm
600 páginas mas teoricamente poderiam ser lidos de uma só “estirada”. Não é
exagero.
Essa opção faz, sem dúvida, muita gente desdenhar do seu
estilo, porque é sempre forte no meio literário a corrente que privilegia a
frase trabalhada, a palavra surpreendente, o discurso que de tão alusivo chega
a ser enigmático. Ou seja, a prosa de Guimarães Rosa, de Osman Lins, Nélida
Piñon, Carlos Emílio Corrêa Lima.
Isaac Asimov criou uma dualidade famosa: a prosa-vidraça
(que é transparente, discreta, quase invisível) e a prosa-vitral (colorida, decorativa,
que vale por si mesma, e não pelo que está além de si). Bolaño tem uma
prosa-vidraça, das que parecem mostrar a ação da história sem interferir sobre
ela. (Sabemos que é a prosa quem cria essa “ação”; mas no instante da leitura a
ação flui tão cristalinamente que esquecemos esta verdade básica.)
Estou terminando a leitura da coletânea de contos Llamadas telefónicas (1997), em que o
chileno recorre o tempo inteiro a essa prosa que para alguns é meramente denotativa,
jornalística, pouco poética, usando palavras comuns e parecendo mais descrever
do que recriar, transfigurar.
No plano do vocábulo e da frase a literatura de Bolaño é
o contrário da que Guimarães Rosa defendia. Rosa queria uma briga permanente com
a palavra, recusando o termo habitual e tentando interferir nele, ou então
substituí-lo por um equivalente capaz de produzir estranhamento ou surpresa.
No entanto, essa prosa invisível, nos contos do chileno,
está a serviço de uma complexa dramaturgia de personagens e situações. Com
linhas simples, ele produz um desenho complexo. Estruturas barrocas, onde se
cruzam e se interferem os destinos e as motivações dos seus personagens. A
complexidade de Bolaño não está na frase, está um degrau mais acima.
A ficção de Bolaño pode ser vista como (entre outras
coisas) uma coreografia dos fluxos individuais dos personagens. É no plano dos
personagens (não no plano do vocábulo) que Bolaño desafia a atenção e a memória
do leitor, e libera sua imaginação. Ele é desses autores capazes de “tirar da
cartola”, dezenas, centenas, talvez milhares de figurantes, cada qual com
rosto, biografia, alma, personalidade, idiossincrasias e mistérios. Durante
algumas linhas ou algumas páginas serão protagonistas dos episódios mais
variados – coisas que estão acontecendo na história em si, ou que alguém meramente
conta para outra pessoa no ônibus, num passeio, numa chamada telefônica.
Episódios que podem ser trágicos, engraçados, violentos,
patéticos, emotivos, enigmáticos, sórdidos... É uma exuberância barroca de
situações, algumas banais, outras excêntricas, algumas beirando o surrealismo.
Todas verossímeis, toda dolorosamente reais no mundo em que a história
acontece.
Bolaño tem um olhar empático para contemplar a comédia
humana. Constrói seus personagens com traços rápidos e precisos, revelando um lado
essencial de seu método: uma curiosidade atenta e lúcida pelas pessoas de carne
e osso, seus sentimentos, crenças, expectativas. Uma empatia que não dispensa a
visão crítica, o humor e mesmo o sarcasmo, onde ele se aplica. Uma vivência de
pele curtida. O autor viajou muito, e conheceu vários países sem muito dinheiro
no bolso, o que tem sempre seu lado educativo. Sua experiência internacional
não é a de um jovem europeu fazendo sua “grand tour” de acesso à vida adulta; é
a de um auto-exilado que sobrevive como pode, trabalha no que aparecer, e se
diverte em qualquer brecha que surgir.
Essa enorme “legibilidade” do texto de Bolaño não se
perde quando ele injeta maior dose de projeção subjetiva, como se dá com a narração,
na primeira pessoa, do conto “Joanna Silvestri”, a história de uma atriz pornô
e sua paixão por um colega de membro desmedido; ou em “Detetives”, o conto
só-diálogo entre dois policiais comentando o reencontro com um ex-colega de
esquerda, agora preso na cadeia (um episódio da juventude do próprio autor, que
fugiu da prisão no Chile ajudado por um ex-colega de escola).
Bolaño escreveu A
Literatura Nazista nas Américas (1996), onde conta as biografias fictícias
de escritores de direita, dos matizes mais variados, e em muitos casos consegue
retratar de maneira não-hostil, mas analítica, esses autores, que podem ser
fascistas cruéis, e às vezes são meros desorientados, carreiristas,
oportunistas sem talento, que querem apenas “aproveitar a maré” e se refugiar à
sombra do poder.
Comentado aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2013/02/3113-literatura-nazista-1922013.html
Ele não nega sua simpatia aos medíocres como “Henri Simon
Leprince” (em Llamadas Telefónicas),
um escritor francês de terceira categoria que arrisca a vida, nos anos da
Resistência Francesa, para salvar a vida de escritores melhores do que ele, que não dão muita atenção a esse
indivíduo “modesto e repugnante”.
(Bolaño jovem)
Bolaño é da minha geração: era três anos mais novo do que
eu. São muitas as infuências que se compartilha quando se tem a mesma idade e
os mesmos gostos. Seus personagens leem Borges, Albert Camus, Lovecraft, William
Carlos Williams; assistem filmes de Antonioni e de John Carpenter. Leem a mesma
ficção científica que eu li (Fritz Leiber, Philip K. Dick, Ursula LeGuin) – e o
autor dedicou a este aspecto um livro inteiro, O Espírito da Ficção Científica (2016):
https://mundofantasmo.blogspot.com/2017/04/4228-roberto-bolano-e-ficcao-cientifica.html
Seus personagens cometem erros, tomam decisões
irracionais, acreditam em miragens, brigam por bobagens, mas são o tempo
inteiro homens e mulheres verossímeis, consistentes, além de imprevisíveis.
Bolaño, o narrador, o mamulengueiro desse imenso cortejo
de criaturinhas, é às vezes um pouco como o Tony do conto “Vida de Anne Moore”:
Tony jamais se irritava, jamais discutia, como se considerasse
absolutamente inútil forçar outra pessoa a compartilhar seu ponto de vista, como
se acreditasse que todas as pessoas estão extraviadas e que é muito pretensioso
um extraviado tentar ensinar a outro a melhor maneira de achar o caminho. Um
caminho que não apenas ninguém conhece, mas que provavelmente não existe.
Muitos destes contos têm como protagonista direto ou
subentendido o poeta Arturo Belano, alter-ego do autor, um dos protagonistas de
Os Detetives Selvagens (1998). Muitos
dos seus personagens são escritores: profissionais, amadores, famosos, obscuros.
Muitos escrevem diários privados, poemas que ninguém lê, romances que ficam
pela metade. Curiosamente, os personagens-escritores de Bolaño não são pretexto
para longas teorias estilísticas ou discussões existenciais sobre o “fazer
literário”. Detetives Selvagens tem
como figuras centrais dois anarquistas de vanguarda, Belano e Ulises Lima;
durante o livro inteiro não vemos os poemas escritos por eles. Vemos somente a
vida, a miragem, a busca, a juventude que não volta, o caminho que talvez não
exista.
3 comentários:
Poxa, que texto precioso hein! Estou aqui em Bangladesh, do outro lado do mundo, um brasileiro de 60 anos que foi contratado para tocar piano num hotel 5 estrelas, e a internet me faz esse favor de esbarrar o cotovelo nesse texto. Claro que li, e surpreendentemente adorei, porque não é sempre que a gente encontra num único texto os nomes de quem a gente gosta. Muito obrigado ao refinado autor!
Grato pela leitura e pelas palavras, Farlley. Um pianista brasileiro tocando num hotel em Bangladesh é, evidentemente, um conto de Bolaño. Sinta-se personagem! abs
Maravilha de texto, Bráulio. Obg por compartilhar.
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