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Perácio Fontenele, 66 anos, contabilista aposentado, baralhista, sinuqueiro, pegou cambaleante um táxi ao sair da Churrascaria Carne Ao Ponto, abancou-se no banco traseiro, deu o endereço, reclamou da arrancada brusca, ignorou as desculpas do motorista, ironizou a bonequinha pendurada no retrovisor, queixou-se do asfalto, queixou-se do trânsito, esculhambou com o país, chegou ao destino, reclamou do preço no taxímetro, entregou uma nota graúda, resmungou que guardasse o troco para comprar outro estofado para o banco, decidiu sair pelo lado direito, abriu a porta bruscamente, ouviu a cantada estridente dos pneus de uma van, que vinha à toda e arrancou a porta do táxi, jogando-a alguns metros à frente, onde ela atingiu com força e quebrou um braço de Josefina Silveira, 41 anos, que ia passando e não tinha culpa nenhuma dos problemas dele.
Celso Ibiapina, 23 anos, escritor brasileiro, participante de uma Feira do Livro na França por força do relativo sucesso de seu romance de estréia A Tribulação dos Incautos, recentemente traduzido em Paris, foi convidado com mais alguns colegas para um jantar en petit comité na residência de seu editor, em Montparnasse, atrasou-se devido a problemas idiomáticos com o metrô, depois com o táxi-em-desespero-de-causa, e quando chegou lá, afogueado, exultante, ébrio de glória precoce e de ansiedade acumulada, tocou à campainha, foi recebido com sorrisos corteses pela esposa grisalha do editor e conduzido a uma sala maior que o apartamento de seus pais no Catete, onde uma porção de rostos expectantes voltou-se para ele, pessoas elegantes, sofisticadas, perfumosas, de taças rubras em punho, e veio-lhe à mente a recomendação da mãe, Dona Dalva, “eles lá são educadíssimos, se comporte, cumprimente todo mundo na chegada e na saída”, e lá foi ele de poltrona em poltrona, dizendo gaiatamente em voz baixa “É bom suar”, e recebendo sorrisos formais em troca, de sofá em sofá, de mesura em mesura, até que uma moça linda, linda, branquinha, de sardas, lhe disse baixinho na mais brasileira das vozes, “está bom, gracinha, já é a terceira vez que você fala com todo mundo”.
Dona Vitorina, 61 anos, tia do atarantado Valtinho, 20 anos, universitário em estudos na capital, e o pobre rapaz teve de hospedar a tia por alguns dias em virtude de consultas médicas, e a tia nunca tinha ido a uma cidade grande, foi depositada no ônibus com mil recomendações, e recolhida por Valtinho que tentava mostrar-se adulto a cada passo, ligado no relatório que a tia faria à mãe mal regressasse, e logo no primeiro dia, sabedor da pobreza franciscana da geladeira de seu conjugado em Copacabana, levou a tia, que só tinha olhos para os prédios e as roupas de quem passava, para jantar no restaurante A-Kilo-Bom, bem na esquina, com bandejão variado e preços módicos, mostrou-lhe o longo balcão, explicou o sistema. Serviu-se rapidamente, sentou, pediu uma Coca, no começo não estranhou a demora, mas ao findar o bife com arroz espantou-se ao ver Dona Vitorina que se aproximava, equilibrando a custo um prato onde se misturavam cuidadosas porções de arroz, arroz integral, arroz à grega, arroz à piemontese, feijoada, salada de repolho, quibe, sushi, pernil, salsichas, asas de frango, pastelão, bruschetta, carré, costela, peito empanado, filé ao molho madeira e spaghetti à bolonhesa.
Herbert B. Wexford, 54 anos, arqueólogo, professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles, recebeu convite telefônico do reitor do Wilentz Institute, de Springfield, para proferir uma conferência sobre o tema de seu livro mais recente. Aceitou satisfeito, bem como a sugestão do reitor de que ele comprasse sua passagem aérea, na companhia e horário mais conveniente, e seria reembolsado ao receber o cachê. Isto tudo sucedeu nos anos 1990, naqueles tempos lentos e compassados pré-internet, pré-celular. No dia aprazado ele embarcou para Springfield, chegou às duas da tarde, mas ninguém estava a esperá-lo no aeroporto. Uma ida rápida à cabine telefônica o informou de que havia, sim, duas pessoas e o carro da reitoria, para levá-lo ao hotel. Mais demora, mais telefonemas, e quando o prof. Wexford, já desgastado, descreveu o local onde aguardava, na área de desembarque, o reitor perguntou, subitamente reticente: “Professor... o senhor viajou para Springfield, estado de Illinois, não é isso?...” Não, não era; ele estava em Springfield, Missouri.
Ladjane Rebouças, 25 anos, universitária, estava num restaurante caro com amigas, celebrando o noivado de uma delas, quando no meio da alacridade geral teve de repente uma idéia sensacional, que não chegou a ser revelada, porque no primeiro grito e no primeiro ímpeto ela abriu estabanadamente os braços, derrubando uma jarra de água de coco bem no colo da amiga Francinha, que pulou para trás num susto, com cadeira e tudo, esbarrando no garçom Severiano Filho, 58 anos, o qual transportava com mil cuidados quatro pratos fumegantes encaixados no braço esquerdo, fazendo-o derramar o banquete em cima da mesa onde quatro rapazes discutiam um empate futebolístico, o que desencadeou gritaria, palavrões e pulos para trás, enquanto outro garçom, Geraldino Souto, 44 anos, escorregava na já abundante poça de líquido e tombava de costas na direção oposta, fazendo virar a mesa onde um casal de gringos coreanos curtia sua primeira noite carioca, ficando os dois muito espantados enquanto o marido, Hong Jun-Bong, 38 anos, que conseguira milagrosamente salvar sua dose de uísque, tomava um gole e comentava com a esposa: “As coisas acontecem rápido, aqui.”
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