4750) "Os Salteadores Mascarados" (3.10.2021)
No mundo da Arte (e, numa esfera mais milionária e
plebéia, no mundo da cultura pop) existe um fenômeno curioso e recorrente em
que o efeito precede a causa, e de certo modo acaba sendo a causa da causa.
Por exemplo: alguém escreve uma resenha ou um ensaio
crítico a respeito de um livro que não existe. O ensaio torna-se tão conhecido
que cedo ou tarde alguém tem a idéia de escrever esse livro imaginário, e ele
acaba sendo publicado. O efeito (a crítica) precedeu a causa (o livro),
invertendo a ordem natural dos fatos.
Isso pode ser feito com diferentes propósitos. Pode ser
um recurso ficcional, como a famosa “pegadinha” de Jorge Luís Borges, que
introduziu num livro de ensaios críticos (Historia
de la Eternidad, 1936) uma resenha de um livro chamado “A Aproximação a
Almotásim”. O livro não existia, mas o resumo e os comentários de Borges eram
(são ainda) tão interessantes que Adolfo Bioy Casares encomendou o livro a uma
livraria de Londres.
Pode ser um recurso ficcional que ao longo do tempo vai
ganhando mais peso, mais dimensões, até que sua existência torna-se uma
obrigação. H. P. Lovecraft inventou em seus contos de terror o Necronomicon, uma espécie de “escritura
sagrada do Mal”, de autoria de um árabe louco.
Claro que a legião de fãs lovecraftianos acabou
produzindo diferentes versões desse obscuro grimório maligno.
Ou seja: alguém anuncia que uma obra qualquer existe, e depois
alguém se apressa em trazer essa obra à existência.
Não foi outra coisa que fez o editor John W. Campbell, da
revista Astounding Science Fiction nos
idos dos anos 1950. Um leitor da revista mandou uma carta brincalhona afirmando
ter recebido um exemplar da revista “vindo do futuro”, e listando os
respectivos contos e autores. Campbell levou a brincadeira ao pé da letra e
encomendou desses autores os contos com os mesmos títulos. A revista foi
publicada, na data “prevista” na carta do leitor.
A verdade é que quando uma ficção ou uma reportagem
inventam a existência de uma obra imaginária haverá sempre aquele leitor
criativo capaz de se deter sobre essa idéia e tentar desenvolvê-la, na base do
“se esse livro existisse mesmo, como seria?”.
Basta um título, uma sinopse, cotações de alguns trechos,
descrição resumida de alguns personagens e episódios... Tudo serve a esse
leitor criativo como um mote a ser glosado. Borges não foi o criador do
subgênero “Livros Imaginários”, mas soube desenvolver tão bem suas implicações
que esses argumentos passaram a ser qualificados como “borgianos”.
Em “Pierre Menard, autor do Quixote”, ele alude a um
crítico literário cujo projeto fantasioso é escrever um livro idêntico ao Dom Quixote de Cervantes, baseando-se
apenas na lembrança que guardava do livro original, lido há muitos anos. Essa
sensação tentadora do “livro potencial” é a mesma que experimentamos ao ouvir a
descrição sugestiva, surpreendente, estimulante, inspiradora, de uma obra que
não existe.
Uma das pegadinhas mais interessantes da música popular é
a que deu origem à banda imaginária “The Masked Marauders” (Os Salteadores
Mascarados), cuja existência foi anunciada num número de 1969 da revista
roqueira Rolling Stone, que na época
tinha Greil Marcus como editor.
Marcus publicou, por curtição, uma nota anunciando o lançamento
de uma super-banda que estaria gravando sob esse pseudônimo. A banda seria
formada por Mick Jagger, Bob Dylan, e três dos Beatles, com exceção de Ringo
Starr. Observe-se que nessa época todos esses artistas estavam num dos “picos”
de sua produção e criatividade. Um disco juntando os cinco seria algo para
bater vários recordes comerciais, mesmo que a qualidade artística não viesse a
ser grande coisa.
Os artistas não poderiam aparecer com seus próprios nomes
por motivos de contrato, mas poderiam (teoricamente) ser reconhecidos pela voz,
pelo estilo de compor, de tocar, etc.
Houve uma discussão tão grande nos meios roqueiros da
época que os autores do hoax
decidiram levar a brincadeira adiante, e contrataram um grupo de músicos para
compor e gravar as canções cujos títulos tinham sido anunciados na matéria.
Aqui, um artigo que resume a encrenca inteira:
https://www.snopes.com/fact-check/unmasked-marauders/
Super-bandas desse tipo eram uma possibilidade na época,
sendo o exemplo mais famoso o grupo Crosby, Stills, Nash & Young, que
juntou de forma inesquecível quatro pesos-pesados do folk-rock e produziu
alguns dos melhores discos desse sub-gênero.
E alguns anos depois, Bob Dylan e George Harrison (dois
dos alegados “Marauders”) uniram-se a Tom Petty, Roy Orbison e Jeff Lyne para
formar, sob pseudônimo, a competente banda dos Travelling Wilburys, que lançou
três álbuns. As canções eram um material bastante razoável – se levarmos em
conta que para quem carregava nas costas o peso dos respectivos currículos
aquilo não passava de uma quantaladeirice, uma curtição, sem a menor obrigação
de ser sério, apenas o gosto de curtir por curtir.
Seria interessante se descobríssemos, em alguma obscura
banda de componentes desconhecidos, a presença real de alguns nomes de peso da
música pop, “testando a temperatura da água” e vendo se o público seria capaz
de percebê-los sob aquele disfarce.
Em 2007, Joshua Bell, um violinista consagrado, foi tocar
sem qualquer propaganda numa estação de metrô de Washington, vestido com
simplicidade. Um maestro e amigo previu que no máximo cem pessoas parariam para
escutá-lo. Pelo que registrou a imprensa, das 1.097 pessoas que passaram por
ele somente 27 “pingaram” algum trocado na caixa do violino, e apenas 7 se detiveram
durante algum tempo para escutá-lo.
E a famosona J. K. Rowling, a criadora de Harry Potter, a
mulher que já vendeu 500 milhões de livros, tem também suas crises de
auto-estima. Não foi por outro motivo que publicou um romance policial com o
pseudônimo de Robert Galbraith. A tiragem inicial do romance, The Cuckoo’s Calling, foi de 1.500
cópias, das quais foram vendidas cerca de 500. Quando por fim foi revelado que
era ela a autora, a coisa deslanchou e a editora mandou fazer mais 140 mil
cópias, por via das dúvidas.
Aqui, o disco completo dos Masked Marauders:
Um comentário:
Braulio, e o contrário? E se alguém escreve um livro que prevê certos acontecimentos narrados no livro e isso faz com que se tornem realidade?
Algo assim foi planejado e produzido pelo escritor Barbosa Lessa (1929-2002, compositor, criador de Negrinho do Pastoreio, folclorista parceiro de Paixão Cortes, publicitário e ex-secretário de cultura do RS). Em 1978 ele lançou o livro de contos Rodeio de Ventos, dentro de uma coleção em parceria da RBS/Editora Globo.
Só tomei conhecimento do livro ao receber – de surpresa, entregue em casa – um exemplar. Junto, escrito à mão, um bilhete do meu amigo Barbosa: dizia apenas para eu ler o conto A Origem da Palavra Gaúcho à página tal. E o conto nada mais era que a descrição de um encontro entre alguns escritores, jornalistas, artistas e folcloristas (todos nominados) na casa do autor. Também dava a data, o cardápio e a roda de conversa e os temas discutidos por cada um. A mim, cabia acrescentar humor à reunião.
E assim, direto das páginas para o endereço do Barbosa e da dona Nilza, transcorreu a noite mo bairro Bonfim de Porto Alegre, recheada de causos, comida e risos. De resto, além da discussão sobre a origem da palavra gaúcho, houve música, trovas, até a noitada se encerrar na hora aprazada. Tudo conforme o conto original.
Desnecessário falar no encantamento reinante durante todo o evento, mas falo: graças à hospitalidade do casal anfitrião, nos sentimos todos maravilhados. Inesquecível termos dado vida, linha por linha, a um roteiro ficcional.
(Neste link, uma dúzia de crônicas de Barbosa Lessa: https://www.extraclasse.org.br/tag/barbosa-lessa-colunista)
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