A revista online “Prosa Verso e Arte” reproduz um
depoimento de Jorge Luís Borges sobre a obra de Franz Kafka e a influência que
ela teve sobre sua própria obra.
Já escrevi por aqui que Borges pode não ter sido o maior
escritor de sua época, mas é possível que seja o maior leitor do século 20. Suas qualidades como escritor brotam da
maneira atenta, erudita mas descontraída, questionadora mas empática, com que
ele lê os livros alheios, principalmente os clássicos. Com seus contemporâneos
ele costumava ser ranheta, desdenhoso, hiper-exigente, às vezes ressentido –
como o provam as anotações de Bioy Casares em seu quase cúbico Borges, 2006.
Borges observa um aspecto importante na obra de Kafka, a
sua simplicidade com a linguagem. Diz ele que esbarrou na obra desse
desconhecido autor tcheco quando estava estudando alemão, e descobriu que com
um dicionário alemão-inglês dava conta de ler aqueles contos surpreendentes. As
palavras eram palavras comuns. As situações é que eram fantásticas.
Borges diz:
O fato de que Kafka escrevia de maneira tão simples me chamou a
atenção, já que eu mesmo podia entendê-lo, apesar de o movimento impressionista,
tão importante nessa época, ter sido marcado, em geral, pelo barroco, que
jogava com as infinitas possibilidades do idioma alemão. (...) Eu traduzi
o livro de contos cujo primeiro título é ‘A Transformação’ e nunca soube por
que todos decidiram chamá-lo de ‘A Metamorfose’. É um disparate, eu não sei
quem teve a ideia de traduzir assim essa palavra do mais simples alemão. Quando
trabalhei com a obra, o editor insistiu em deixá-la como está porque já era
famosa e se vinculava a Kafka.
De fato, “metamorfose” é uma versão meio erudita de
“transformação” (Verwandlung). Para
mim, que não sei quase nada de alemão, não faz diferença. Mas para algum leitor há de fazer, e esta é
uma das muitas cascas de banana à espera de um tradutor apressado, como todos
nós acabamos sendo mais cedo ou mais tarde.
Em qualquer idioma existem essas classes de sinônimos que
eu, para meu consumo interno, chamo de “sinônimos plebeus” e “sinônimos chiques”.
São palavras que querem dizer basicamente a mesma coisa, mas o fato de um
personagem preferir uma delas à outra implica numa pequena sutileza psicológica
que está sendo indicada ao leitor.
Por exemplo, se você vai a uma repartição ou um
consultório, a recepcionista geralmente lhe pede para “aguardar” um pouco, e
não para “esperar”. “Esperar” é um verbo comum, rasteiro, um verbo de sandália
havaiana, qualquer brocoió usa. Mas “aguardar” é uma versão sapato-de-verniz da
mesma idéia, e é por isso que as recepcionistas recebem instruções para falar
assim – mesmo que o cliente esteja de bermuda e havaiana. É para mostrar que naquele ambiente fala-se um português
diferenciado.
Secretárias dos escritórios de todo o Brasil não mandam
uma carta, elas enviam uma carta. Elas
não pedem, elas gostariam de solicitar.
Elas não pagam, elas efetuam o pagamento.
Esse tipo de linguagem de coque-amarrado acabou abrindo caminho, em décadas
recentes (ah, como é divertido comparar décadas!) para o gerundismo, a mania de
dizer que “nós vamos estar enviando”, etc.
Voltando a Kafka... Ou melhor, continuando nele – porque um
dos temas centrais na obra de Kafka era a burocracia, a impessoalidade, a falta
de empatia, a senoçãozice das pessoas dotadas de um minúsculo poder de decisão
numa instância burocrática lá na esquina da Rua de São Nunca com a Avenida Já
Era.
(desenhos de Kafka)
As pessoas em livros como O Processo, O Castelo e
outros comportam-se muitas vezes como esses burocratinhas-do-birô-da-frente
capazes de passar uma tarde inteira a dois metros de distância do Suplicante
que espera debruçado no balcão e nem sequer erguem os olhos para ele, para não
ter que perguntar: “O senhor deseja alguma coisa?...”
Borges faz uma outra observação, que não vou deixar
passar em branco de jeito nenhum.
E quando Kafka faz referências é profético. O homem que está
aprisionado por uma ordem, o homem contra o Estado, esse foi um de seus temas
preferidos.
Kafka escreveu contra o Estado mas contra muito mais do
que isto: escreveu contra a Hidra da qual o Estado é apenas uma das muitas
cabeças, e nem por ser a maior (e já começa a não sê-lo) é a única visível.
Kafka escreveu contra o poder das Organizações, dos Sistemas interligados de
forças manipuladoras (e depredadoras) da Natureza física e da linguagem.
Críticos mais politizados do que eu diriam que o autor de
Na Colônia Penal escreveu contra o
complexo Industrial-Militar-Político-Financeiro-Tecnológico-Jurídico que, à
força de uma proliferação de avatares neo-liberais e bilionários, tomou conta
do mundo no século 20 e provavelmente asfixiará até a morte os Estados-Nações
que o pariram.
Os Estados-Nações, no tempo de Kafka (ele morreu em 1924)
ainda podiam ser vistos como Saturnos que devoravam os próprios filhos. Hoje, por
não terem evoluído e se adaptado, são dinossauros decadentes, fagocitados pelas
forças cegas e famintas das Corporações. Essas Corporações que cada Estado
nacional incentivou, subvencionou, legalizou, protegeu, indenizou, sancionou,
isentou e absolveu até o momento de pousar o pescoço no cepo para o machado.
(Cyberpunk 2077)
Neste aspecto, os legítimos sucessores da ficção de Kafka
não são os parafraseadores de Kafka no mainstream,
mas os cyberpunk da ficção científica (William Gibson, Bruce Sterling, Neal
Stephenson, etc.) e os cultores do que James Wood chamou de “realismo
histérico” (Don DeLillo, David Foster Wallace, etc.).
Julio Cortázar, que afirma nem ser tão influenciado assim
pelo autor tcheco, admite:
Acho que a máquina do horror tem no campo do romance dois exemplos
extraordinários. Um deles é O Processo, de Kafka. (...) Neste livro
surge o caso do destino que vai se cumprindo inexoravelmente, passo a passo,
sem que jamais se saiba a última linha, sem que se chegue jamais a saber quais
eram as motivações que determinaram esse destino. Muitas vezes pensei, lendo
esses casos típicos de desaparecidos e torturados na Argentina, que eles
viveram exatamente O Processo de Kafka, porque em muitos casos eles
foram detidos só por serem parentes de gente que tinha atuação política (eles
mesmos não tinham atuação política, ou tinham de maneira muito parcial), e
foram torturados, presos e muitos, executados. Essas pessoas, em cada etapa do
seu destino, devem ter se perguntado quem era o responsável, de onde vinha
aquele acúmulo de desgraças, e não puderam saber nunca, porque a única coisa
que puderam conhecer foram seus torturadores, seus executores. Que, por sua
vez, tampouco sabiam quem eram os chefes...
(Omar Prego, O Fascínio das Palavras, José Olympio, 1991,
trad. Eric Nepomuceno)
O outro exemplo de Cortázar justapõe ao de Kafka é,
previsivelmente, o 1984 de George
Orwell.
Mas Kafka não bateu na América Latina apenas como o
anunciador da “máquina do horror”. Borges (no depoimento citado acima) lembra
que Kafka desejou queimar seus escritos, e o descreve como “...esse sonhador que não quis que seus sonhos fossem conhecidos”. É
uma avaliação próxima à de J. G. Ballard, que dizia em 1986, comentando uma
antologia de sonhos:
O típico sonho REM tem a estrutura narrativa linear de uma narrativa
verbal; primeiro isto, depois isso, depois aquilo, onde os vários
istos-e-aquilos têm alguma conexão temática perceptível entre si. Em outras
palavras: a velha arte de contar histórias, com seu apelo imemorial e acesso
imediato aos grandes mitos e lendas que pavimentam o solo de nossa psique
individual. Nos domínios do sonho, Kafka é um autor contemporâneo, e
atualizadíssimo. Não existe metaficcção pós-moderna nem espaço para o “nouveau
roman” na hospedaria da noite.
(A User’s
Guide to the Millenium – Essays and Reviews, New York, Picador, 1996; trad.
BT)
Essa liberdade onírica seduziu também Gabriel Garcia Márquez,
que lembra seus tempos de jornalista jovem e sem um vintém:
Um dos meus companheiros de quarto era Domingos Manuel Vega, um
estudante de medicina que já era meu amigo desde Sucre e que compartilhava
comigo a voracidade da leitura. (...) (Ele) chegou uma noite com três livros que acabava de comprar e me ofereceu
um ao acaso, para ajudar-me a dormir. Desta vez, porém, deu-se o contrário:
nunca mais tornei a dormir com a placidez de antes. O livro era “A Metamorfose”
de Franz Kafka. (...)Eram livros misteriosos, cujos desfiladeiros não eram
apenas diferentes, como muitas vezes eram contrários a tudo que eu conhecia até
então. Não era necessário demonstrar os fatos, bastava que o autor os tivesse
escrito para que tudo fosse verdade, sem mais provas do que o poder do seu
talento e a autoridade de sua voz.
(Vivir para contarla, Bogotá, Norma, 2002; trad. BT)
2 comentários:
"Não existe metaficcção pós-moderna nem espaçompara o “nouveau roman” na hospedaria da noite."
Perdão, não entendi.
Anônimo: Em 1o. lugar, havia um erro de digitação ("espaçompara"), que já corrigi. "Metaficção" é a ficção que reflete sobre si própria, como um livro onde os personagens afirmam que são personagens de livro, onde o autor comenta que não sabe o que vai escrever em seguida... Uma porção de recursos do chamado "pós-modernismo", uma tendência muito forte na literatura das décadas mais recentes. O "nouveau roman" foi um movimento literário francês onde se tentou "quebrar" a narrativa clássica tradicional, a que todos nós estamos acostumados -- usando, para isto, um excesso de objetividade, de meras descrições, ausência de enredo, ausência de psicologia. Ballard quer dizer que Kafka conta histórias como se contava em 1800, nas hospedarias, à noite, diante da lareira, pessoas compartilhando narrativas reais ou inventadas -- ou seja, sem nenhum esforço de ser vanguardista, de revolucionar as técnicas narrativas, entregando-se ao prazer de contar uma simples história, mesmo uma história bizarra ou absurda como as de Kafka.
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