(texto em tamil)
As coisas que a gente não entende têm um poder estranho
sobre a nossa mente. Línguas estrangeiras, por exemplo. A experiência de ouvir
alguém falando coisas que a gente não entende é inesquecível, e devemos
agradecer ao cinema por nos proporcionar isso o tempo inteiro.
Me lembro da história do brasileiro rico que foi a Las Vegas
e lá foi apresentado a Frank Sinatra.
“Você conversou com Sinatra?!...” perguntaram os amigos,
na volta.
Ele: “Claro que sim”.
Os amigos: “E ele te falou o quê?”
Ele: “Não sei, estava sem aquelas letrinhas na barriga.”
Fazer as letrinhas-na-barriga ajuda a pagar os boletos de
muita gente por aqui – e é uma mediação necessária para o Grande Mistério. Porque
é mistério, sim, a fala que a gente não entende. Gosto quando estou vendo um
filme falado numa língua vagamente familiar como francês ou inglês, e de
repente aparece um personagem árabe ou turco que começa a dizer coisas com o
protagonista, num tom amistoso, ou furibundo, ou conspiratório, ou debochado,
ou impaciente...
A gente não sabe! Mas percebe a natureza das emoções que
estão por trás daquela algaravia. O que torna (a meu ver) a algaravia como uma
manifestação pura e direta de alguma divindade, de algum Poder que tem um
significado e um mistério que me serão inacessíveis para sempre.
“E línguas como que de fogo tornaram-se visíveis... e se assentaram
sobre a cabeça de cada um deles... e principiaram a falar em línguas
diferentes...”
Para mim, isto era um simples monólogo surrealista, numa
música de Gilberto Gil (“Objeto Semi-Identificado”, 1969), e só depois me
avisaram que era um trecho da Bíblia referente ao fenômeno de Pentecostes. E
seria este fenômeno a origem da expressão inglesa “speaking in tongues”,
“falando em línguas diferentes”, também encarado como um fenômeno
médico-psicológico em que uma pessoa entra numa espécie de transe, ou estado
alterado de consciência, e começa a pronunciar sons que podem ser interpretados
como uma língua estrangeira conhecida ou desconhecida.
Não devemos confundir isso com a capacidade de
auto-sugestão que nos induz a atribuir significados a sons ou imagens surgidos
aleatoriamente. Nada disso. Estou me referindo a coisas que têm significado
real, sim, como os hieróglifos egípcios, que durante séculos fascinaram a
humanidade – não somente pela beleza visual do seu traçado, mas pelo frisson de pensarmos que tudo aquilo
tinha um significado, e esse significado se perdeu.
A Pedra de Roseta resgatou esse significado, e de certa
forma a escrita egípcia se banalizou. O que era sagrado virou profano: qualquer
professor de Egípcio de algum colégio de segundo grau em Paris é capaz de
apontar o dedo e sair interpretando os baixo-relevos.
O que continua indecifrado, contudo, continua numinoso.
Continua carregado de presságios, enigmas, potencialidades indescritíveis.
Vemos a imagem de um texto escrito na língua tamil, e temos a angústia de estar
vendo algo e não saber se é uma prece
a Vishnu ou uma bula de remédio.
Em seu Curso de
Literatura Inglesa (São Paulo: Martins Fontes, 2006) Jorge Luís Borges
traça um retrato da época e do ambiente literário de onde brotou Samuel Taylor
Coleridge, um dos seus poetas românticos preferidos. E assim ele descreve o pai
do poeta, que era um pastor protestante no sul da Inglaterra:
O reverendo Coleridge foi pastor de um povoado rural e impressionava
muito seus ouvintes porque costumava intercalar em seus sermões o que chamava
“the immediate tongue to the Holy Ghost”, “a língua imediata do Espírito
Santo”. Quer dizer, longas passagens em hebraico, que seus rústicos paroquianos
não compreendiam, mas que veneravam ainda mais por isso mesmo. Quando o pai de
Coleridge morreu, seus paroquianos sentiram certo desprezo por seu sucessor,
porque ele não intercalava passagens ininteligíveis no idioma imediato do
Espírito Santo.
(pág. 186; trad. Eduardo
Brandão)
É tintim por tintim o mesmo episódio referido por
Guimarães Rosa no famoso trecho das “palavras que têm canto e plumagem”, em Sagarana:
E que a população do Calango-Frito não se edifica com os sermões do
novel pároco Padre Geraldo (“Ara, todo o mundo entende...”) e clama saudades
das lengas arengas do defunto Padre Jerônimo, “que tinham muito mais latim”...
(“São Marcos”)
Campinenses (e talvez os nordestinos em geral) devem se
lembram de que era costume dizer, quando não se entendia algo: “Estou na missa....”
Sinônimo de “estou voando”, de “não estou
entendendo patavina”. Pela simples razão de que eram assim as missas totalmente
em latim, antes do Concílio Vaticano II de 1962, que liberou o uso do português
nos ritos católicos, o que teve como consequência imediata um incremento na
compreensão e uma deflação na transcendência.
Um comentário:
Hoje se diz, em João Pessoa, estou como um boi na missa.
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