(ilustração de Luís Jardim para a primeira edição, ed. José Olympio)
O livro Primeiras Estórias de Guimarães Rosa saiu em 1962, seis anos após o terremoto duplo que foi a publicação, em 1956, de Corpo de Baile e de Grande Sertão: Veredas. Foi uma mudança estilística importante do autor. Depois de dois livros gigantescos, seria difícil trazer algo de ainda mais peso. Ele optou por um volume de contos curtos, lapidados, sintéticos, como não tinha mostrado até então.
Primeiras Estórias
tem uma estrutura interessante que se torna visível quando vemos que o primeiro
conto (“As Margens da Alegria”) e o último (“Os Cimos”) formam praticamente uma
unidade, e poderiam ter sido publicados como um texto só. O livro se abre com
as aventuras do “Menino” – e se fecha com elas.
Como são 21 contos, o livro fica com uma estrutura
espelhada, tornada óbvia pela presença de “O Espelho” como décimo-primeiro
conto. Temos então dez histórias de um lado, dez histórias do outro, e “O
Espelho”, simbolicamente, no meio.
Foi baseado nisto que o psicanalista M. D. Magno (ou
“mdmagno”, como se assina) analisou o livro em seu Rosa Rosae (Rio: Aoutra, 1985). Ele vai mais longe, vendo esse
espelhamento não apenas entre o primeiro e o último conto, mas em todos os
demais, em parelhas simétricas: o segundo (“Famigerado”) e o penúltimo
(“Tarantão, meu patrão”); o terceiro (“Soroco, sua mãe, sua filha”) e o
antepenúltimo (“Substância”), e assim por diante.
Magno vê interessantes e claras simetrias nessas parelhas
de contos.
“As margens da alegria” conta a viagem de um menino à
fazenda de um tio, e introduz uma viagem de avião, como se o autor quisesse
dizer: Sim, o Sertão continua a existir, e é contemporâneo da tecnologia. O
menino embarca, paparicado, sentindo-se um principezinho:
Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele.
(...) as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas,
chicles, à escolha. (...)
Pode parecer pouco, mas este conto inaugural introduz o
avião, os “chicles” (sim, os chicletes já foram chamados assim), o jeep (assim mesmo, ainda em inglês). O
Sertão de Rosa comporta tudo, convive com toda a extensão do real. Convive com
a criação das cidades, porque o Tio é uma espécie de engenheiro ou
administrador, que leva o menino em seus deslocamentos de supervisão.
A fazenda é ao mesmo tempo um canteiro de obras, porque “...a grande cidade apenas começava a
fazer-se, num semi-ermo, no chapadão”. Como o livro é de 1962, não custa
imaginar que a tal cidade seria Brasília. (O conto não tem nenhuma referência
geográfica explícita.)
Essa primeira viagem do Menino, no primeiro conto, é
marcada pelo encontro com uma ave, um peru; uma impressão muito forte, que
transborda através do vocabulário:
O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração.
Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão –
brusco, rijo – se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas
rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e
ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de
verdes metais em azul-e-preto – o peru para sempre. Belo, belo!
O peru acaba se tornando um arauto involuntário da morte,
porque dias depois o menino tem notícias de que o peru foi imolado em função do
“dia-de-anos do doutor”. Essa
constatação da efemeridade das coisas (“soubesse
que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru – aquele.”) é
reforçada mais adiante quando o menino é levado para o canteiro de obras “aonde a grande cidade vai ser, o lago...”
e presencia a cena de uma máquina, “a
derrubadora” botando abaixo uma árvore, assim como quem não quer nada.
E mais que a efemeridade, ele constata o Rodízio das
Criaturas – porque logo depois tem um peru novo no quintal, mesmo com
ressalvas:
E – a nem espetaculosa surpresa – viu-o, suave inesperado: o peru, ali
estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a
arrecauda, a escova, o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o
recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro.
É interessante ver os processos de criação verbal de Rosa
nessas descrições dos perus: como é uma ave nova e inédita para o menino, sua
descrição se baseia em intensos flashes visuais (formas e cores) e na tentativa
de inventar um vocabulário à altura da novidade, inclusive com aliterações,
quase onomatopéias.
É uma novidade atrás da outra, porque o menino se
horroriza em ver que o peru novo ataca com ferocidade, às bicadas, “a cabeça degolada do primeiro, atirada ao
monturo”. E nesse quadro Boschiano se encerra o primeiro conto, “As Margens
da Alegria”.
No último conto do livro, “Os Cimos”, o menino retorna: “Outra era a vez. De sorte que de novo o
Menino viajava para o lugar onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade”.
Fica muito clara a intenção de continuidade entre um conto e outro, e macacos
me mordam se o manuscrito original não era um conto só que o Autor, por razões
cabalísticas ou geométricas de seu foro íntimo, decidiu cortar ao meio e
transformar em “bookends” para servir
de capas aos demais.
Agora, o passeio do menino, que está crescendo e
aprendendo, não é apenas “uma viagem inventada no feliz”: a mãe está doente e a
família achou melhor tirá-lo de casa um pouco. E ele, já percebendo as ameaças
da vida, imagina: “alguma coisa, maior
que todas, podia, ia acontecer?”.
Neste conto há também a descoberta de uma ave, que agora
é um tucano, “estapafrouxo, suspenso
esplendentemente”, uma revelação animal simétrica à do peru no conto
anterior.
As viagens do Menino produzem um ritual de perdas e
resgates, coisa que são destruídas, substituídas, gerando um ritmo implacável,
uma passagem do tempo que não se mede no relógio ou no calendário, mas na
rapidez com que umas coisas deixam de existir e outras tomam o seu lugar.
A infância (um tema caro a Rosa, que nele melhor glosava)
é essa constatação, acima de tudo, do Tempo e sua passagem:
A vida, mesmo, nunca parava. (“Cimos”)
O veloz nada. (“Cimos”)
Todas as coisas, surgidas do opaco (“Margens”)
Uma espécie de cinema de desconhecidos pensamentos. (“Cimos”)
Roa abre e fecha seu quarto livro com estes parênteses
que, dentro da aventura de um Menino, englobam todas as outras experiências dos
demais contos. Um Menino prévio a todos os grandes filosofismos, mas já
enxergando com clareza: "Seu
pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica." (“Margens”).
(ilustração de Luís Jardim para a primeira edição, ed. José Olympio)
2 comentários:
olá amo este blog
Seu blogue é muito bom. Foge totalmente da média encontrada na mídia. Peço, se possível, uma visita a meu meu blogue Noite em Paris, e ainda se possível, um comentário. Também me admira de você não ter monetizado seu blogue. Merece receber por tão bom trabalho.
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