domingo, 1 de dezembro de 2019

4528) Guimarães Rosa: "As margens da alegria", "Os cimos" (1.12.2019)




(ilustração de Luís Jardim para a primeira edição, ed. José Olympio)

O livro Primeiras Estórias de Guimarães Rosa saiu em 1962, seis anos após o terremoto duplo que foi a publicação, em 1956, de Corpo de Baile e de Grande Sertão: Veredas. Foi uma mudança estilística importante do autor. Depois de dois livros gigantescos, seria difícil trazer algo de ainda mais peso. Ele optou por um volume de contos curtos, lapidados, sintéticos, como não tinha mostrado até então.

Primeiras Estórias tem uma estrutura interessante que se torna visível quando vemos que o primeiro conto (“As Margens da Alegria”) e o último (“Os Cimos”) formam praticamente uma unidade, e poderiam ter sido publicados como um texto só. O livro se abre com as aventuras do “Menino” – e se fecha com elas.

Como são 21 contos, o livro fica com uma estrutura espelhada, tornada óbvia pela presença de “O Espelho” como décimo-primeiro conto. Temos então dez histórias de um lado, dez histórias do outro, e “O Espelho”, simbolicamente, no meio.

Foi baseado nisto que o psicanalista M. D. Magno (ou “mdmagno”, como se assina) analisou o livro em seu Rosa Rosae (Rio: Aoutra, 1985). Ele vai mais longe, vendo esse espelhamento não apenas entre o primeiro e o último conto, mas em todos os demais, em parelhas simétricas: o segundo (“Famigerado”) e o penúltimo (“Tarantão, meu patrão”); o terceiro (“Soroco, sua mãe, sua filha”) e o antepenúltimo (“Substância”), e assim por diante.

Magno vê interessantes e claras simetrias nessas parelhas de contos.


“As margens da alegria” conta a viagem de um menino à fazenda de um tio, e introduz uma viagem de avião, como se o autor quisesse dizer: Sim, o Sertão continua a existir, e é contemporâneo da tecnologia. O menino embarca, paparicado, sentindo-se um principezinho:

Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. (...) as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas, chicles, à escolha. (...)

Pode parecer pouco, mas este conto inaugural introduz o avião, os “chicles” (sim, os chicletes já foram chamados assim), o jeep (assim mesmo, ainda em inglês). O Sertão de Rosa comporta tudo, convive com toda a extensão do real. Convive com a criação das cidades, porque o Tio é uma espécie de engenheiro ou administrador, que leva o menino em seus deslocamentos de supervisão.

A fazenda é ao mesmo tempo um canteiro de obras, porque “...a grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão”. Como o livro é de 1962, não custa imaginar que a tal cidade seria Brasília. (O conto não tem nenhuma referência geográfica explícita.)

Essa primeira viagem do Menino, no primeiro conto, é marcada pelo encontro com uma ave, um peru; uma impressão muito forte, que transborda através do vocabulário:

O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão – brusco, rijo – se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto – o peru para sempre. Belo, belo!

O peru acaba se tornando um arauto involuntário da morte, porque dias depois o menino tem notícias de que o peru foi imolado em função do “dia-de-anos do doutor”. Essa constatação da efemeridade das coisas (“soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru – aquele.”) é reforçada mais adiante quando o menino é levado para o canteiro de obras “aonde a grande cidade vai ser, o lago...” e presencia a cena de uma máquina, “a derrubadora” botando abaixo uma árvore, assim como quem não quer nada.

E mais que a efemeridade, ele constata o Rodízio das Criaturas – porque logo depois tem um peru novo no quintal, mesmo com ressalvas:

E – a nem espetaculosa surpresa – viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro.

É interessante ver os processos de criação verbal de Rosa nessas descrições dos perus: como é uma ave nova e inédita para o menino, sua descrição se baseia em intensos flashes visuais (formas e cores) e na tentativa de inventar um vocabulário à altura da novidade, inclusive com aliterações, quase onomatopéias.

É uma novidade atrás da outra, porque o menino se horroriza em ver que o peru novo ataca com ferocidade, às bicadas, “a cabeça degolada do primeiro, atirada ao monturo”. E nesse quadro Boschiano se encerra o primeiro conto, “As Margens da Alegria”.

No último conto do livro, “Os Cimos”, o menino retorna: “Outra era a vez. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade”. Fica muito clara a intenção de continuidade entre um conto e outro, e macacos me mordam se o manuscrito original não era um conto só que o Autor, por razões cabalísticas ou geométricas de seu foro íntimo, decidiu cortar ao meio e transformar em “bookends” para servir de capas aos demais.

Agora, o passeio do menino, que está crescendo e aprendendo, não é apenas “uma viagem inventada no feliz”: a mãe está doente e a família achou melhor tirá-lo de casa um pouco. E ele, já percebendo as ameaças da vida, imagina: “alguma coisa, maior que todas, podia, ia acontecer?”.

Neste conto há também a descoberta de uma ave, que agora é um tucano, “estapafrouxo, suspenso esplendentemente”, uma revelação animal simétrica à do peru no conto anterior.

As viagens do Menino produzem um ritual de perdas e resgates, coisa que são destruídas, substituídas, gerando um ritmo implacável, uma passagem do tempo que não se mede no relógio ou no calendário, mas na rapidez com que umas coisas deixam de existir e outras tomam o seu lugar.

A infância (um tema caro a Rosa, que nele melhor glosava) é essa constatação, acima de tudo, do Tempo e sua passagem:

A vida, mesmo, nunca parava. (“Cimos”)

O veloz nada. (“Cimos”)

Todas as coisas, surgidas do opaco (“Margens”)

Uma espécie de cinema de desconhecidos pensamentos. (“Cimos”)

Roa abre e fecha seu quarto livro com estes parênteses que, dentro da aventura de um Menino, englobam todas as outras experiências dos demais contos. Um Menino prévio a todos os grandes filosofismos, mas já enxergando com clareza: "Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica." (“Margens”).


(ilustração de Luís Jardim para a primeira edição, ed. José Olympio)













2 comentários:

Unknown disse...

olá amo este blog

Deus Carmo disse...

Seu blogue é muito bom. Foge totalmente da média encontrada na mídia. Peço, se possível, uma visita a meu meu blogue Noite em Paris, e ainda se possível, um comentário. Também me admira de você não ter monetizado seu blogue. Merece receber por tão bom trabalho.