sexta-feira, 12 de outubro de 2018

4393) Conselhos de um craque do Galo (12.10.2018)





(foto: Julia Pontes)

Duvido que mesmo o pessoal de Campina Grande que tem a minha idade, que conviveu comigo alguns anos de glória do Galo do São José, lembre de um camisa 10 chamado Belame, um cara moreno, magro, alto. Um meia armador ofensivo, no sentido Sócrates do termo, no sentido Araponga do termo, no sentido Assis Paraíba do termo.

Belame jogou poucos anos porque fazia faculdade. Largou a bola, ganhou dinheiro, virou um eterno sócio e torcedor alvinegro.  A “vida de bola” não era o forte dele, embora a bola fosse.

Virou Belame do Pandeiro, por causa de um grupo de batucada que tem até hoje com uns amigos sabadeiros e dominicais. Bom percussionista, diz que é “mil vezes melhor com o pandeiro do que com a bola. E além disso o pandeiro não empata de beber”.

Belame é de Campina, nascido no Catolé. Um pouco mais velho do que eu. Tem voz razoável, sabe muito samba antigo, sabe forrós obscuros de Zito Borborema ou Manezinho Silva, sabe uns boleros do tempo bom. Seus ídolos: Trio Nordestino, Demônios da Garoa, o Jorge Ben da primeira fase.

Belame sempre foi articulado, lia bastante. Hoje, avô de netos, forte e sadio, gosta de sentar de frente para o mundão escancarado e filosofar um pouco. Para ele qualquer esquina de beco pode virar um Corcovado aberto.

Meses atrás estive em Campina e fui visitá-lo numa tarde tranquila, e botamos pra beber e filosofar. Era um entardecer de domingo, ali perto da subida da Manoel Tavares para o Alto Branco. Uma rua lateral onde mora uma filha dele, e onde às vezes ele chama algum da gente para almoçar, tocar um pouco e trocar idéias. Eu levei o violão, a gente ficou curtindo e apostando repertório.

A rua era de calçamento, com uma calçadinhas estreitas e limpas, crianças de bicicleta. A gente estava do lado de fora da casa, junto do meio fio, uma mesinha, duas cadeiras, uma cerveja no obus de isopor, um prato de guloseimas sanguinolentas. Dali do alto avistávamos a vastidão do céu da Borborema, como se o sertão longínquo estivesse se incendiando, e ficamos roendo as unhas pelo futuro do Brasil.

– E agora, Belame? – perguntei, meditativo e cheio de respostas.

Ele serviu os copos até esvaziar a garrafa, ergueu para a janela pedindo outra e anunciou:

– Vou lhe explicar o mundo como é. Teve uma vez, anos 60 eu acho, uma decisão no Maracanã, Fluminense e não sei quem. Final de campeonato. Empate, não se usava pênalti pra decidir, e por incrível que pareça foi no cara ou coroa.

– Isso mesmo – disse eu.

– O capitão do Fluminense era Pinheiro, um xerifão alto, de bigode. Batia pênalti com uma violência que parecia um uruguaio. Era chamado o Rei do Pênalti.

A netinha chegou trazendo a cerveja nova, ele serviu os copos, bebeu, limpou a espuma.

– Mas nesse tempo não se decidia título no pênalti – continuou ele. – Era na moeda: o juiz, os bandeiras, os dois capitães, num círculo, e os dois times e um monte de babão no círculo em volta. Ah, sim, os repórteres de pista. O que hoje chamam de trepidantes.

– Certo.

– Quando estavam se encaminhando pro centro do campo, Pinheiro chamou o pessoal do Fluminense, deu uma instrução. Foram para o meio. Ele pediu cara, o outro aceitou coroa, o juiz jogou pra cima, e quando a moeda começou a descer piruetando ele disparou num berreiro, rapaz, e o time todo ao mesmo tempo, um berreiro ensurdecedor, esbarrando, derrubando todo mundo, o time pulando aos berros de “É campeão! É campeão!” ou sei lá como era o grito daquele tempo.

– E a moeda, tinha dado o quê?

– Ninguém viu a moeda até hoje. O que valeu foi aquilo. O juiz não era besta de mandar voltar, a foguetaria cobrindo no centro, uma nuvem de pó-de-arroz no Maracanã que se avistava em Niterói.

– Muita cara de pau – disse eu.

– Pois bem, isso é que as pessoas chamam de Narrativa. O futebol é cheio dessas coisas. Já vi muita bola, no derradeiro minuto, ser jogada para dentro do gol e o zagueiro devolver de cabeça.  O juiz nessa hora pode marcar o que bem quiser, porque certeza mesmo ninguém tem.

– Mas o outro time protesta, né?

– Jogador protesta até minuto de silêncio. Mas isso é um exemplo do que eu chamo O Olho Ponderado. Guarde essa expressão. Significa um olho que tem um peso maior, um valor maior que o de outros olhares.

– O olho de quem tem o Poder.

– Isso. Dentro de campo, o olho do juiz tem esse peso. É o poder e é o risco, é a autoridade dele e é a vulnerabilidade dele: o olho dele, o olho que fornece a decisão. Não importa se aquela bola entrou ou não. Importa o que ele disser. É a Narrativa.

– Eu queria ser guarda-noturno e não queria ser juiz de futebol.

Ele deu um gole silencioso, concordando. Pegou o maço de cigarro, pensou, desistiu, largou de novo, voltou a falar.

– Voltando a Pinheiro no cara ou coroa: Pinheiro foi foda. Figurativamente ele passou o juiz, a imprensa, as autoridades no rodo, não deixou nada. Nada. Desmoralizou todo mundo. Rebatou a Narrativa da mão do pobre do juiz, tu entendesse?

– Tem uma história de boxe que eu acho muito boa – disse eu. – Uma daquelas lutas da porra de Mike Tyson com Evander Hollyfield.

– Eu era o maior fã de Myke Tyson – disse ele. – Teve três lutas que a gente foi ver. Uma foi no antigo Miúra, outra no bar de Dermeval no Tambor, e outra numa churrascaria véia que não existe mais... Pois toda vez, quando a gente ainda estava se arrumando nas cadeiras e pedindo a primeira, a luta acabava.

– Nesse dia – disse eu – Hollyfield deu uma surra histórica em Tyson. Depois da luta, Tyson e a equipe dele estavam indo juntos pra sala de imprensa, pra dar a entrevista. Tyson falou : “Vou dizer assim: eu sabia que ia acabar com ele”. Aí o técnico dele disse: “É melhor não chegar lá falando muita merda não, cara. Tu perdesse a luta.” Ele estava tão zonzo que ainda não tinha entendido direito.

– Essa é demais – disse ele com uma risada. – Ele ainda estava na Narrativa de antes.

– Era um fenômeno. E nessa época, data vênia o nobre colega me permitir, eu criei um conceito.

– Fique à vontade – disse ele, desta vez acendendo e baforando um cigarro. – A rua é pública.

– Isso é uma coisa que tem na literatura. Eu chamo O Começo Mike Tyson. É a partir da primeira frase, num livro, você já cair matando, não deixar o leitor respirar. Uma página, uma e meia, duas... Depois a linguagem pode ir desacelerando, o passo vai no ritmo que convier. Mas o começo é algo como o que Mike Tyson fazia naqueles dois ou três minutos quando o gongo fazia “pléinn!...”. Às vezes a gente consegue fazer isso num conto.

– É verdade. Na batucada, mesma coisa. A gente vai tocar numa manhã-de-sol num clube grande, num lugar aberto com quase mil pessoas... Abre o show pisando levinho? Nãããão! Você entra fudendo, com uma música bem alta, pra encerrar qualquer assunto e fazer todo mundo parar a conversa, encher o copo e virar a cadeira pro palco.

– Boa.

– Começo Mike Tyson. Tá valendo. Pois o que Pinheiro fez, voltando ao fio da meada, foi um final Mike Tyson. A Narrativa não é o que aconteceu. Também não é o que a gente pensa que aconteceu. A Narrativa é a versão de quem passa o trator por cima de todo mundo e diz: Essa porra vai ser contada assim.

Eu bebi, meditei um pouco. Bebida não serve pro sujeito ficar bêbado, serve pro sujeito ocupar a boca e dar tempo de pensar melhor numa resposta.

– E agora, Belame? – perguntei, pondo o copo na mesa. – Tudo indica que a gente perdeu a Narrativa. Faz o quê, agora?

Ele deu mais um gole, pegou o violão, que estava deitado em cima duma cadeira próxima, formou uns acordes distraídos enquanto olhava o céu. E o crepúsculo afogueando uma beirada inteira de Campina.

– Poeta, o futebol me ensinou que vitória de domingo se comemora no domingo, porque quarta-feira tem jogo. E a derrota de domingo mesma coisa: se chora no domingo, porque quarta tem jogo.

– Dá um sol menor aí – disse eu.

Ele fez um sol, ré, sol. E a gente emburacou num Nelson Ned dos velhos tempos: “Pois tudo passa, tudo paaaassarááá... E nada fica, nada fiiiiicarááá...








5 comentários:

Rita disse...

É, perdemos essa. E que beleza de texto. Eu morei no Catolé. Nessa época, minha amiga mais querida morava no Alto Branco. Senti até o cheiro desse final de tarde aí. Sigamos.

Unknown disse...

Campina Grande foi escorrendo, feito areia de ampulheta, pelos meus dedos, e está enevoada pra mim. Lembro do bairro, Catolé, mas não onde fica. Nem sei se ainda tem este nome. As ruas do Centro não lembro o nome de quase nenhuma. Maciel Pinheiro. Do Alto Branco, só a Estelita Cruz, onde morei, alguns anos, até voltar de vez pro Recife.Esse jogador do 13, o pandeirista, não lembro se cheguei a ver. Lembro do goleiro Valdemar, de Tomires, Antonino, Braga, Miruca. Tudo também, há tempos, em meio à névoa.

Braulio Tavares disse...

"Belame" é um personagem inventado, para não envolver pessoas reais. Todo o resto é literariamente verdadeiro.

Unknown disse...

O problema é que a quarta-feira está a quatro anos de distância. Aí dói mais.

Braulio Tavares disse...

Quatro anos passa rapidinho. A vida é uma torneira toda aberta.