terça-feira, 9 de outubro de 2018

4392) Dicas de Jeanette Winterson (9.10.2018)



Jeanette Winterson, autora britânica bastante respeitada, põe à disposição dos pretendentes a autores, como nós, esta lista de tarefas, de dever de casa, ou de koans do i-Ching. O convite e a publicação foram do jornal The Guardian.

  1. Turn up for work. Discipline allows creative freedom. No discipline equals no freedom.
A tradução disso é: Vá ao trabalho. O “turn up” aí é um pouco no sentido de comparecer numa hora e local combinados. Disciplina, em arte, significa haver um consenso em torno de certos tipos de ordem, como a existência de notas musicais (e toda a matemática resultante), sem a qual talvez só existissem cacofonias sem sentido. Disciplina é haver um instrumento, linhas delimitando o chão, um cronômetro, um placar, uma bola, algum esforço físico-mental para encarar. A liberdade só se consegue através da disciplina. E a disciplina pessoal (trabalhar todo dia) ajuda a compreender isto.

  1. Never stop when you are stuck. You may not be able to solve the problem, but turn aside and write something else. Do not stop altogether.
Nunca pare, quando der uma travada. Talvez não dê para resolver aquele problema, ali, na hora, mas guarde aquilo e vá fazer outra coisa. Não pare de vez. Muitas vezes a gente chega a um impasse na narrativa de um conto e tem que parar. Tem que pensar, porque digamos que seja uma decisão de plot fundamental, e você vai ter que escolher prevendo todo o resultante. Precisa de tempo.
Muito bem: você salva tudo (se não salvou até esta altura, sinto muito, você é um amador) e vai fazer algo diferente. Tem que ter sempre não digo um plano B criativo, mas vários planos A. Você fechar a aba do conto, e se vê com três ou quatro arquivos de textos (um artigo, outro conto, uma resenha, uma palestra) abertos ao mesmo tempo. Você vira um trem transdimensional, porque quando empaca num Universo basta mudar de canal para a outra janela e pegar outro trilho igualmente interessante. A menos que tenha algo mais interessante para fazer, não desperdice esse jorro final de combustível.

  1. Love what you do.
Virou meio que um chavão entre jogadores de futebol dizer algo na linha de “Eu sou um privilegiado, ou um sortudo, ou um ungido, por ganhar uma fortuna... pra fazer a coisa que mais gosto!”.
É bastante compreensível, mas eu já conheci grandes artistas que diziam: “Faço pra ganhar a vida, mas prazer não me dá nenhum”. Eu até dou um desconto, acho que dizem isso mais por ranzinzice cultivada do que por desprazer real. São grandes artistas, pouco importa que sejam velhos ranhetas, complicados, que reclamam de tudo e de todos. Eles não amam o que fazem? Talvez não amem, mas não importa, o que importa é que alguma outra razão, que não esta, os leva a escrever, e é pelo que escrevem que somos gratos.
Você pode até ter a literatura como segunda fonte de recursos, ou terceira, mas procure tê-la como a primeira em termos de importância pessoal. Escrever por obrigação, só quando houver dinheiro bom envolvido.
Uma vez, eu tinha 30 e poucos anos, conversei com um roteirista mais velho, no intervalo de algum trabalho, num bar de esquina. “Quando tempo,” eu perguntei, “o cara leva até poder impor o que quer escrever, a história que ele quer contar?”.  Ele disse: “Quando você conseguir me telegrafe, estou tentando até hoje.” Ame o que você faz, principalmente se você tiver mesmo que fazer.

  1. Be honest with yourself. If you are no good, accept it. If the work you are ­doing is no good, accept it.
Todas as pessoas que eu conheci afirmavam estar sendo 100% honestas consigo mesmas. As únicas pessoas com dúvidas íntimas que eu conheci foi através do romance, do cinematógrafo e de outras diversões de quermesse.
Ela diz: seja honesto, com força. Se você não presta pra nada, entenda, e assuma. Se esse trabalho que você está fazendo não vale porra nenhuma, aceite, e assuma.
Isso torna você um grande escritor, pergunta-se? Não, mas como dizia o meme, haverá um panaca a menos no mundo.
Se seu trabalho é uma merda, talvez você esteja escutando a sereia errada. Digamos: você não é jogador de xadrez, é saxofonista. Ou: seu negócio não é escrever fantasia, é criar em publicidade. Ou então: seu negócio não é ser jogador, mas você pode ser roupeiro do seu time do coração. Quem sabe se o problema de todo mundo não é que deviam estar tentando (e conseguindo) fazer outra coisa? Mas alguém lhes botou na cabeça que teria de ser na literatura. Não tem. Sem querer ser bairrista, mas a literatura é para quem vê nela sua primeira prioridade. Talvez tudo (tudo que vale a pena) seja assim.

  1. Don’t hold on to poor work. If it was bad when it went in the drawer it will be just as bad when it comes out.
Aí está um ponto em que não poderíamos divergir mais. Eu guardo tudo, e o que não guardei foi porque não pude. O pior dos poemas tem uma linha genial. Trinta e cinco anos depois você está de caneta em punho precisando exprimir uma determinada coisa e pensa: “Oxente, eu já falei isso, e foi assim-assim, e eita, deu certinho agora.”  Será exagero chamar isso de improviso?
O que Winterson quer dizer é talvez: Não perca tempo. Vá cuidar de alguma coisa com mais futuro. Escreva outro conto. Produza outro filme, com outras pessoas. Ensaie outro espetáculo, um bem diferente. Isso é um conselho típico do autor bem energético. Outros sentem de maneira diferente, não são tão entusiasmados assim. Escrever lhes custa um esforço maior do que à maioria. Vivem “com o combustível na reserva”. Na hora de trabalhar, foco total – e só no que vale a pena. É como alguém que tem direito a 40 minutos de caminhada ao sol por dia, e sabe que precisa aproveitá-los bem.

  1. Take no notice of anyone you don’t respect.
Um autor não deve botar no papel ninguém que ele não respeite, personagem nenhum a quem ele não esteja disposto a conceder sono, suor e álgebras.
Muitos anos atrás um ator profissional me disse: “Não tem coisa mais chata do que um papel onde você toda noite troca de roupa, sai da sua casa, vai para o teatro, passa lá dentro um total de seis horas toda noite, e tudo isso pra nada, pra fazer um papel que não diz nada importante, está ali só para compor cenário e servir de escada para algum colega mais sortudo”.
Você deve respeitar o personagem tanto quanto deve implicitamente respeitar seus atores. Muitas vezes basta a esse ator uma cena, uma boa troca de diálogos, ou um momento forte na peça para o personagem dele. O ator sai de casa toda noite com boa expectativa, ele tem pelo menos uma cena de cinco minutos onde ele mostra a que veio, justifica aquele aluguel todo.
Não dê atenção aos personagens, se você não os respeita. Coloque neles as coisas que você respeita, mesmo nos vilões. Os vilões precisam de boas qualidades, mesmo que elas não os justifiquem. Os heróis precisam de fraquezas. Um herói não é nunca igual à gente. Um herói é sempre alguém maior que a existência – mas com uma fraqueza. Uma kryptonita, um calcanhar vulnerável, o que for.
Respeitar o personagem é estar disposto a preenchê-lo e dar-lhe corda de manivela para que ele saia se amostrando.

  1. Take no notice of anyone with a ­gender agenda. A lot of men still think that women lack imagination of the fiery kind.
Não ligue para as pessoas que têm preconceitos de gênero. Muitos homens ainda acham que falta às mulheres um certo tipo de imaginação rebelde.
Não tem muita relação com a técnica literária, e sim com a história da literatura: mas nas últimas décadas a presença da imaginação feminina nos ramos da FC e da fantasia tem sido imensa, para não falar da literatura policial e de horror, territórios já conquistados por elas em épocas mais afastadas. Tem mais pessoas achando que vale a pena fazer um sacrificiozinho mas escrever, sim.

  1. Be ambitious for the work and not for the reward.
Pense na qualidade do produto final, e não nos valores financeiros. Aliás, os dias que precedem a assinatura do contrato podem ser totalmente dedicados a esta questão dos valores estipulados em contrato. Para o sujeito depois não ter que ficar pensando nisso na hora em que está escrevendo. Negocie a recompensa antes. Pegue um adiantamento. Comprometa-se a produzir. Passe o recibo, emita a nota. Arregace as mangas e mãos à obra. Mergulhe no texto. Adeus contrato.
Ser ambicioso com relação ao trabalho não é coisa de gênios desmedidos como Van Gogh ou Julio Verne. Pode ser a auto satisfação de um mecânico que resolve de maneira mais que satisfatória um quiproquó técnico qualquer. É a arte de fazer bem feito, mais elevada que as das nove musas. Mas não descure o dinheiro, o contrato. Dinheiro cuida-se com trinta mil sentidos, etc.

  1. Trust your creativity.
Acredite na sua criatividade. Todos os livros de auto-ajuda dizem isto de alguma forma, talvez porque todo o restante da mídia ambiente, imprensa, diversões, lengalenga do dia-a-dia, tudo induza essas pessoas a acharem que são diferentes e menores do que são. Ou consegue iludi-las dizendo que são maiores, ou mais importantes, ou mais interessantes que todo o resto, e não são.
Umas não são tão espertas ou talentosas quanto julgam. Outras poderiam perfeitamente estar fazendo bem mais do que fazem, e tendo repercussão equivalente, mas estão presos a outros compromissos. Uns trabalham muito, outros têm problemas na família, todos dizem: “eu só queria ter tempo pra escrever”. Mas você só sabe se tem criatividade se você se testar. Como em qualquer outra atividade coletiva.

  1. Enjoy this work!
Curta o trabalho de agora. Cultive o seu jardim. Escape para contar a história. Domine o sevagram. Mantenha a pressão do boiler sob controle.


2 comentários:

Paulo Henrique Passos disse...

Muito boas as dicas, Braulio. Valeu! Carrego comigo, como um amuleto, dois verso do Drummond: "Convive com teus poemas, antes de escreve-los/Tem paciencia, se obscuros. Calma se te provocam" (onde se le poemas, entenda-se contos, romances, etc)

Joel Andrade disse...

Muito inspiradora! Mais uma vez, meus parabéns, Bráulio!