Jeanette Winterson, autora britânica bastante respeitada,
põe à disposição dos pretendentes a autores, como nós, esta lista de tarefas,
de dever de casa, ou de koans do i-Ching. O convite e a publicação foram do
jornal The Guardian.
- Turn up for work. Discipline allows
creative freedom. No discipline equals no freedom.
A tradução disso
é: Vá ao trabalho. O “turn up” aí é um pouco no sentido de comparecer numa hora
e local combinados. Disciplina, em arte, significa haver um consenso em torno
de certos tipos de ordem, como a existência de notas musicais (e toda a
matemática resultante), sem a qual talvez só existissem cacofonias sem sentido.
Disciplina é haver um instrumento, linhas delimitando o chão, um cronômetro, um
placar, uma bola, algum esforço físico-mental para encarar. A liberdade só se
consegue através da disciplina. E a disciplina pessoal (trabalhar todo dia)
ajuda a compreender isto.
- Never stop when you are stuck. You may not be able to solve the problem, but turn aside and write something else. Do not stop
altogether.
Nunca pare, quando
der uma travada. Talvez não dê para resolver aquele problema, ali, na hora, mas
guarde aquilo e vá fazer outra coisa. Não pare de vez. Muitas vezes a gente chega
a um impasse na narrativa de um conto e tem que parar. Tem que pensar, porque
digamos que seja uma decisão de plot
fundamental, e você vai ter que escolher prevendo todo o resultante. Precisa de
tempo.
Muito bem: você
salva tudo (se não salvou até esta altura, sinto muito, você é um amador) e vai
fazer algo diferente. Tem que ter sempre não digo um plano B criativo, mas
vários planos A. Você fechar a aba do conto, e se vê com três ou quatro
arquivos de textos (um artigo, outro conto, uma resenha, uma palestra) abertos
ao mesmo tempo. Você vira um trem transdimensional, porque quando empaca num Universo
basta mudar de canal para a outra janela e pegar outro trilho igualmente
interessante. A menos que tenha algo mais interessante para fazer, não
desperdice esse jorro final de combustível.
- Love what you do.
Virou meio que um
chavão entre jogadores de futebol dizer algo na linha de “Eu sou um
privilegiado, ou um sortudo, ou um ungido, por ganhar uma fortuna... pra fazer a
coisa que mais gosto!”.
É bastante
compreensível, mas eu já conheci grandes artistas que diziam: “Faço pra ganhar
a vida, mas prazer não me dá nenhum”. Eu até dou um desconto, acho que dizem
isso mais por ranzinzice cultivada do que por desprazer real. São grandes
artistas, pouco importa que sejam velhos ranhetas, complicados, que reclamam de
tudo e de todos. Eles não amam o que fazem? Talvez não amem, mas não importa, o
que importa é que alguma outra razão, que não esta, os leva a escrever, e é
pelo que escrevem que somos gratos.
Você pode até ter
a literatura como segunda fonte de recursos, ou terceira, mas procure tê-la
como a primeira em termos de importância pessoal. Escrever por obrigação, só
quando houver dinheiro bom envolvido.
Uma vez, eu tinha
30 e poucos anos, conversei com um roteirista mais velho, no intervalo de algum
trabalho, num bar de esquina. “Quando tempo,” eu perguntei, “o cara leva até
poder impor o que quer escrever, a história que ele quer contar?”. Ele
disse: “Quando você conseguir me telegrafe, estou tentando até hoje.” Ame o que
você faz, principalmente se você tiver
mesmo que fazer.
- Be honest with yourself. If you are no
good, accept it. If the work you are doing is no good, accept it.
Todas as pessoas
que eu conheci afirmavam estar sendo 100% honestas consigo mesmas. As únicas
pessoas com dúvidas íntimas que eu conheci foi através do romance, do
cinematógrafo e de outras diversões de quermesse.
Ela diz: seja
honesto, com força. Se você não presta
pra nada, entenda, e assuma. Se esse trabalho que você está fazendo não vale
porra nenhuma, aceite, e assuma.
Isso torna você um
grande escritor, pergunta-se? Não, mas como dizia o meme, haverá um panaca a
menos no mundo.
Se seu trabalho é
uma merda, talvez você esteja escutando a sereia errada. Digamos: você não é jogador
de xadrez, é saxofonista. Ou: seu negócio não é escrever fantasia, é criar em
publicidade. Ou então: seu negócio não é ser jogador, mas você pode ser
roupeiro do seu time do coração. Quem sabe se o problema de todo mundo não é que
deviam estar tentando (e conseguindo) fazer outra coisa? Mas alguém lhes botou
na cabeça que teria de ser na literatura. Não tem. Sem querer ser bairrista,
mas a literatura é para quem vê nela sua primeira prioridade. Talvez tudo (tudo
que vale a pena) seja assim.
- Don’t hold on to poor work. If it was
bad when it went in the drawer it will be just as bad when it comes out.
Aí está um ponto
em que não poderíamos divergir mais. Eu guardo tudo, e o que não guardei foi
porque não pude. O pior dos poemas tem uma linha genial. Trinta e cinco anos
depois você está de caneta em punho precisando exprimir uma determinada coisa e
pensa: “Oxente, eu já falei isso, e foi assim-assim, e eita, deu certinho
agora.” Será exagero chamar isso de
improviso?
O que Winterson
quer dizer é talvez: Não perca tempo. Vá cuidar de alguma coisa com mais
futuro. Escreva outro conto. Produza outro filme, com outras pessoas. Ensaie
outro espetáculo, um bem diferente. Isso é um conselho típico do autor bem
energético. Outros sentem de maneira diferente, não são tão entusiasmados assim.
Escrever lhes custa um esforço maior do que à maioria. Vivem “com o combustível
na reserva”. Na hora de trabalhar, foco total – e só no que vale a pena. É como alguém que tem direito a 40 minutos
de caminhada ao sol por dia, e sabe que precisa aproveitá-los bem.
- Take no notice of anyone you don’t
respect.
Um autor não deve
botar no papel ninguém que ele não respeite, personagem nenhum a quem ele não
esteja disposto a conceder sono, suor e álgebras.
Muitos anos atrás
um ator profissional me disse: “Não tem coisa mais chata do que um papel onde
você toda noite troca de roupa, sai da sua casa, vai para o teatro, passa lá
dentro um total de seis horas toda noite, e tudo isso pra nada, pra fazer um
papel que não diz nada importante, está ali só para compor cenário e servir de
escada para algum colega mais sortudo”.
Você deve
respeitar o personagem tanto quanto deve implicitamente respeitar seus atores.
Muitas vezes basta a esse ator uma cena, uma boa troca de diálogos, ou um momento
forte na peça para o personagem dele. O ator sai de casa toda noite com boa
expectativa, ele tem pelo menos uma cena de cinco minutos onde ele mostra a que
veio, justifica aquele aluguel todo.
Não dê atenção aos
personagens, se você não os respeita. Coloque neles as coisas que você
respeita, mesmo nos vilões. Os vilões precisam de boas qualidades, mesmo que
elas não os justifiquem. Os heróis precisam de fraquezas. Um herói não é nunca
igual à gente. Um herói é sempre alguém maior que a existência – mas com uma
fraqueza. Uma kryptonita, um calcanhar vulnerável, o que for.
Respeitar o
personagem é estar disposto a preenchê-lo e dar-lhe corda de manivela para que
ele saia se amostrando.
- Take no notice of anyone with a gender
agenda. A lot of men still think that women lack imagination of the fiery
kind.
Não ligue para as
pessoas que têm preconceitos de gênero. Muitos homens ainda acham que falta às
mulheres um certo tipo de imaginação rebelde.
Não tem muita
relação com a técnica literária, e sim com a história da literatura: mas nas
últimas décadas a presença da imaginação feminina nos ramos da FC e da fantasia
tem sido imensa, para não falar da literatura policial e de horror, territórios
já conquistados por elas em épocas mais afastadas. Tem mais pessoas achando que
vale a pena fazer um sacrificiozinho mas escrever, sim.
- Be ambitious for the work and not for
the reward.
Pense na qualidade
do produto final, e não nos valores financeiros. Aliás, os dias que precedem a
assinatura do contrato podem ser totalmente dedicados a esta questão dos
valores estipulados em contrato. Para o sujeito depois não ter que ficar
pensando nisso na hora em que está escrevendo. Negocie a recompensa antes.
Pegue um adiantamento. Comprometa-se a produzir. Passe o recibo, emita a nota. Arregace
as mangas e mãos à obra. Mergulhe no texto. Adeus contrato.
Ser ambicioso com
relação ao trabalho não é coisa de gênios desmedidos como Van Gogh ou Julio
Verne. Pode ser a auto satisfação de um mecânico que resolve de maneira mais
que satisfatória um quiproquó técnico qualquer. É a arte de fazer bem feito,
mais elevada que as das nove musas. Mas não descure o dinheiro, o contrato.
Dinheiro cuida-se com trinta mil sentidos, etc.
- Trust your creativity.
Acredite na sua
criatividade. Todos os livros de auto-ajuda dizem isto de alguma forma, talvez
porque todo o restante da mídia ambiente, imprensa, diversões, lengalenga do
dia-a-dia, tudo induza essas pessoas a acharem que são diferentes e menores do
que são. Ou consegue iludi-las dizendo que são maiores, ou mais importantes, ou
mais interessantes que todo o resto, e não são.
Umas não são tão
espertas ou talentosas quanto julgam. Outras poderiam perfeitamente estar
fazendo bem mais do que fazem, e tendo repercussão equivalente, mas estão
presos a outros compromissos. Uns trabalham muito, outros têm problemas na
família, todos dizem: “eu só queria ter tempo pra escrever”. Mas você só sabe
se tem criatividade se você se testar. Como em qualquer outra atividade
coletiva.
- Enjoy this work!
Curta o trabalho
de agora. Cultive o seu jardim. Escape para contar a história. Domine o sevagram.
Mantenha a pressão do boiler sob
controle.
2 comentários:
Muito boas as dicas, Braulio. Valeu! Carrego comigo, como um amuleto, dois verso do Drummond: "Convive com teus poemas, antes de escreve-los/Tem paciencia, se obscuros. Calma se te provocam" (onde se le poemas, entenda-se contos, romances, etc)
Muito inspiradora! Mais uma vez, meus parabéns, Bráulio!
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