São dois temas bem antigões, que parecem não ter muito a ver um com o outro, mas têm:
1)
A possibilidade tecnológica de fazer uma pessoa desaparecer de um documento, de
uma lista, de um arquivo, de uma foto, de mil registros ao vivo em televisão.
2)
A escolha entre uma decisão rigidamente técnica (baseada em provas concretas) e
outra decisão que é jogo-de-cinturalmente política (baseada em opiniões). A
distância entre uma cultura onde tudo fica registrado, o preto no branco, o
cinzel na pedra, a tinta no papel, e uma cultura sem documentos, oral, maleável,
baseada apenas na memória e no testemunho do momento.
Diz um personagem de Ted
Chiang, em “The Truth of Fact, the Truth of Feeling” (2013):
Antes
de adotar o uso da escrita, uma cultura tem os seus conhecimentos transmitidos
exclusivamente de forma oral, e pode facilmente revisar sua própria história.
Isto não é proposital, mas é inevitável: pelo mundo inteiro os bardos e os
griots vêm adaptando seu material poético às platéias para quem cantam, e assim
vão gradualmente ajustando o passado às necessidades do presente.
(Trad. BT. Aqui, o conto completo: http://subterraneanpress.com/magazine/fall_2013/the_truth_of_fact_the_truth_of_feeling_by_ted_chiang).
Essa
é a idéia geral por trás da noção de que a História é escrita e ensinada pelos
vencedores, de que são os vencedores que contam a sua versão dos fatos. “História”
neste caso inclui até mesmo as epopéias, rapsódias, ou que nome tenham as obras
de grande porte contando um episódio glorioso do passado.
O
melhor relato de uma batalha tanto pode ser de um escritor do lado vencedor
quanto de um escritor dos vencidos; e ambos serem igualmente grandes e
necessários. E, mais uma vez, não há determinismo prévio nessas escolhas. Os Sertões de Euclides da Cunha foi uma
obra encomendada pelos vencedores mas que acabou celebrizando o heroísmo dos
vencidos.
De
novo Ted Chiang:
A
idéia de que relatos do passado não podem ser modificados é um produto da
reverência que as culturas alfabetizadas têm com relação à palavra escrita. Os
antropólogos nos dirão que as culturas orais entendem o passado de maneira
diferente: para elas, suas histórias precisam menos de ser factualmente exatas
do que de validar o entendimento que a comunidade tem sobre si mesma. Desse modo,
não seria correto afimar que suas histórias não merecem confiança; suas
histórias fazem o que eles precisam que elas façam.
Em
1984 de George Orwell temos uma das
primeiras obras mais consistentes, na literatura distópica, na tentativa de imaginar
como seria uma língua do totalitarismo. Orwell chegou a criar alguns termos que
são usados hoje em qualquer contexto, como Novilíngua (Newspeak) etc. Sua visão
do futuro, apesar de muito pessoal, parece uma tentativa de sintetizar
precursores variados como Metropolis (1926)
de Fritz Lang, Nós (1921) de Yevgeni Zamyátin, sem falar nas ditaduras judiciárias
de Kafka (O Processo (1925), Na Colônia Penal (1919) etc).
No
livro de Orwell o protagonista, Winston Smith, passa dias inteiros reescrevendo
notícias da imprensa dando uma versão diferente de cada fato do passado, no
mesmo número de linhas, para que novas páginas do jornal sejam reimpressas.
Nas
fotos clássicas dos politburos stalinistas, um trio de líderes vira um
quarteto, ou o contrário. A parede nem se altera. Na política, pelo mundo
afora, uma chapa eleita numa entidade qualquer manda eliminar um indesejável
dos arquivos, da fototeca, de tudo. De pincéis habilidosos a manipuladores
digitais, hoje (a partir de hoje) é possível fabricar do nada uma prova
incontestável de alguma coisa.
No
mundo do Grande Irmão existe (tendo como combustível emocional o uso de jargão,
de rituais de ódio coletivo a poder de slogans) a reescritura constante do Passado.
Nas casas, nas escolas e no trabalho a mensagem é uma só. E se alguém tivesse
motivação suficiente para recorrer a arquivos e bibliotecas, só encontraria
confirmações variadas da versão oficial.
José
Saramago brincou um pouco com essa noção de interferência em coisas já
acontecidas com seu personagem historiador em História do Cerco de Lisboa (1989), que insere um não antes da narração de um fato num
livro e muda a História. Tal como os viajantes no Tempo de Isaac Asimov em O Fim da Eternidade (1955), eternamente
saltando de século em século para preservar a linha temporal para a qual
trabalham, impedindo que o passado, sempre instável, possa lhes fugir ao
controle.
Esses
crono-agentes têm às vezes a missão de voltar a um século qualquer para entrar
num avião, abrir o compartimento de bagagem em cima de uma poltrona, e empurrar
uma pasta para longe do alcance de
alguém. Quando a pessoa procurar a pasta ali, não a encontrará, e vai imaginar
que já a guardou em segurança. Com isto, inverte-se o resultado de uma
importante reunião.
O
minimalismo dessa coreografia (viajar séculos para empurrar um objeto quarenta
centímetros para além de onde estava) confirma uma porção de teorias do Tempo
que concordam todas com o chamado efeito “som de trovão”, devido ao conto de
Ray Bradbury: a morte de uma borboleta pode reverter o resultado de uma eleição
presidencial.
Um
dos aspectos da guerra pelo Poder é a guerra pela narrativa da guerra. A guerra
pelo futuro Saber, pelo futuro da informação. Na frase famosa de Orwell:
“Aquele que controla o passado controla o futuro. E aquele que controla o
presente controla o passado”.
Essa
guerra ganhou agora uma dimensão maior no contexto vídeo-digital-eletrônico: um
contexto fluido, impalpável, imaterial, muito parecido ao das culturas orais
pré-alfabeto, pré-escrita.
O
tempo agora é de registros pós-papel, pós-Gutenberg, pós-documento com firma
reconhecida.
Todo
grupo centralizador, autoritário, quando se apossa do Poder dá início a uma
completa desconstrução do Passado e reconstrução para confirmar sua narrativa
das coisas.
Essa
batalha nunca será dada como “ganha e perdida”, para usar a frase da bruxa do Macbeth. Essa batalha existirá enquanto
existirem política humana, linguagem humana e memória humana.
2 comentários:
Por isso o desespero da grande imprensa brasileira, a narrativa do golpe não saiu como eles imaginavam, pois havia um Greenwald no meio do caminho.
pedroadl@hotmail.com
Bastante pertinente o texto por conta da queda da presidente Dilma. Essa narrativa ainda está em aberto, assim como todas, vamos dar conta de utilizá-la para que isso não exista mais?
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