sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

3676) A maldição da trilogia (5.12.2014)



Há um mecanismo na mente humana que eu denomino Síndrome do Solitário Exemplo.  E defino assim: quando temos uma única experiência de algo, somos incapazes de perceber (e isto é mais do que compreensível) o que existe ali de necessário e o que existe de contingente. Em outras palavras: o que faz parte da própria essência daquilo, e o que não passa de um detalhe colateral, irrelevante, que tem importância naquele exemplo isolado mas não pertence à categoria como um todo.

Sou meio ruim de abstrações filosóficas e o jeito é correr para o abrigo do exemplo mais próximo.  Você desce num aeroporto na Turquia, país que visita pela primeira vez, e o taxista é barbudo, tem um terço católico pendurado no retrovisor, e usa óculos escuros.  Sua primeira conclusão é estender as características do Solitário Exemplo à categoria em geral e pensar que todos os turcos (ou todos os taxistas turcos) têm barba, terço e rayban. Quantas vezes ouvimos de um recém-chegado, desembarcados há meia hora, como “os cariocas” ou “os paraibanos” são gentis/grosseiros/prestativos/distraídos/faladores/...

Na literatura de Fantasia Heróica aconteceu algo parecido.  Muitos jovens leram O Senhor dos Anéis e botaram na cabeça a noção de que qualquer texto que se escreva em Fantasia Heróica tem que constar obrigatoriamente de três volumes.  Aí, o autor de 20 anos diz: “Estou com uma idéia ótima para a minha primeira trilogia”.

Sem querer entrar nos méritos estéticos ou estruturais do equívoco, me basta o argumento biográfico.  Tolkien detestava o conceito de trilogia.  Na cabeça dele, estava escrevendo um romance, a ser publicado como romance.  Seus editores tinham tido uma bela vendagem com O Hobbit e tiveram paciência bastante para passar meses argumentando.  Tolkien não era um escritor profissional.  Era um filólogo, um acadêmico, e livros com 1.500 páginas faziam parte de seu repertório de consulta habitual.  Ele mal lia a literatura de seu tempo, era carrança e ranzinza, e foi um trabalho para a editora Allen & Unwin convencê-lo a desmembrar o livro em três, mesmo tendo este uma estrutura que favorecia essa subdivisão.

Chegaram a um acordo: o livro seria apresentado como trilogia, mas a publicação seria em rápida sequência, num espaço de menos de dois anos.  Quando o leitor terminava um, o próximo já estava nas vitrines.  Mas... o carimbo tolkieniano foi forte.  O conceito de trilogia se impôs na Fantasia Heróica de um modo que nunca tinha se imposto na FC, apesar de exemplos como a Trilogia da Fundação de Asimov.  E se hoje você publica um livro no gênero, os fãs ficam perguntando “quando é que saem os outros dois”.


Um comentário:

Daniel Monteiro disse...

E se não bastasse a memética natural do ídolo para os fãs, as editoras ainda reforçam o conceito. Se no cinema até as trilogias estão dividindo o último filme em partes, só nos resta aguardar até que a moda caia no gosto do mercado editorial (se é que a prática de universo expandido na forma de contos já não pode ser considerada como parte deste filão).