domingo, 6 de julho de 2014

3544) Parcerias literárias (6.7.2014)



A literatura é uma atividade individual, solitária. Em nossa cultura, um romance com dois autores chama a atenção, tanto quanto um quadro pintado por dois pintores diferentes.  Há um consenso de que a criação artística se dá num recesso tão íntimo e remoto que não há como duas pessoas acessarem as mesmas idéias ou emoções, ou as mesmas habilidades técnicas.

Sempre me perguntei por que a literatura não faz como a música popular. Fulano faz uma melodia, e quando está pronta ele a entrega a Sicrano para que coloque ali uma letra. Ou, no caso inverso, Beltrano escreve uma letra e dá para Fulano musicar. Assim trabalharam duplas famosas de músico/letrista, não só da MPB (João Bosco / Aldir Blanc, Baden Powell / Paulo César Pinheiro, etc.) como da música internacional (Rodgers / Hammerstein, Gilbert / Sullivan, etc.).

Há também o caso das duplas versáteis, em que ambos fazem música e letra, como Lennon / MacCartney. O que não se altera é o senso de criação compartilhada, de um trabalho conjunto que nem por isto deixa de ser individualíssimo.  Claro que é preciso haver um entendimento e um respeito muito grandes, para superar todo o desgaste da criação conjunta (“não gostei disso que você fez, é melhor tirar e fazer de novo”), mas em música ninguém estranha a criação em parceria.

Penso nisto sempre que vejo alguém tocar na eterna dicotomia da prosa de ficção: os escritores de enredo e os de estilo.  Os primeiros são grandes inventores de histórias interessantes, mas escrevem de maneira pobre, fosca, cheia de clichês, etc.  Os segundos têm uma criatividade verbal impressionante, mas são incapazes de imaginar uma história que não seja repetição banal do déjà-vu e do déjà-lu.

Por que não trabalham em parceria, um inventando e o outro escrevendo?  Roteiristas de cinema fazem isso o tempo todo. Parece que esse tipo de parceria só vinga na ficção popular, como o romance policial, e volto ao meu exemplo preferido. Ellery Queen é o pseudônimo de uma dupla de autores, onde Frederick Dannay preparava resumos detalhadíssimos, de 20 ou 30 páginas, com todos os detalhes importantes da história, e os entregava a Manfred Lee, que de posse deles dava vida aos personagens, aos diálogos, às situações, às emoções.

Acontece também no que a gente chama brincando de “FC da quarta idade”, onde um autor veterano e já idoso, sem fôlego para escrever um romance de 400 páginas, prepara uma escaleta para ser desenvolvida por um autor mais novo.  Mas na literatura mainstream esse conceito ainda vai demorar. No Brasil, a única dupla de romancistas em parceria que conheço é a de José Roberto Torero & Marcus Pimenta.


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