terça-feira, 29 de abril de 2014

3486) Zumbis vs Pensadores (30.4.2014)



Nós éramos pálidos, cinéfilos, apolíticos, neuróticos e noturnos; era como se estivéssemos implorando para sermos chamados “os zumbis”. E eles eram sobranceiros, empedernidos, profundos, enciclopédicos e sonhadores, e não é de admirar que a gente o chamasse “os pensadores”.  E, como todo mundo na turma sabe, quem deu esse nome fui eu.

Na verdade, éramos as editorias dos dois jornais de Altavista (PB), o Diário Popular, reduto zumbi, e a Gazeta da Manhã, quilombo dos Pensadores.  O Diário defendia o simbolismo, o livre comércio, a livre iniciativa estética amparada pela asa pública. A Gazeta pugnava por liberdade de associação, imunidades sindicais, o regionalismo, o cooperativismo, e alguns estilos de canção popular.  A cidade tinha um cinema, e a 2a.feira era a Sessão Cult: o ingresso era mais caro e o filme mais problemático. Ambos os jornais tinham que ver o filme e já na terça-feira publicar uma crítica consagradora ou impiedosa.

Claro que éramos amigos-e-inimigos. A cidade era grande, mas os jornais eram na mesma rua, com um botequim no meio do caminho.  Bebíamos juntos, conversávamos, travávamos polêmicas políticas ou por causa dos atributos de alguma atriz estrangeira que nunca ouviu falar em nós e que se nos visse chamaria a polícia e a carrocinha.  Nunca uma frase foi travada entre nós-todos que não fosse uma cuidadosa, sopesada, dissecada, bem avaliada equação capaz de duplos e triplos sentidos e de triplos e quádruplos mortais. 

Um diálogo que ainda hoje, tanto tempo depois, ainda é contado entre risadas foi aquele dia em que bebíamos (quatro, divididos em três e um) Serra Limpa com ribaçã e entrou no bar o restante dos dois grupos, encerrando um expediente intenso, após a sessão do filme, todos doidos pra relaxar.  Houve então, numa mesa, o seguinte diálogo.

A: A melhor cena do filme, todo mundo, OK?  A minha é a da tempestade.  B: Bom, eu fico com aquela cena onde ela recupera a memória, e é tudo na rua, som ambiente, câmara parada, e ela faz só com os olhos.  C: Eu gostei da cena da cama, embora o melhor fosse o som, claro, mas ele achou superfícies refletoras em tudo que tinha no quarto.  D: Eu posso indicar duas?  Não? É, já sei como é, tudo ter que ser de acordo com o Estatuto, com o olho do juiz em cima... Ah, fico com a cena daquele bicho, aquela coisa que eu não sei o nome, matando o passarinho. Me senti mal até.  Muito bem fotografada.  E: A da passagem do tempo, todo um verão.  F: A da perseguição do menino pelo mercado da China, pelas vielas da Índia, pelo sol da Palestina, pelo rumo da caatinga, pelo infinito do sevagram.


3485) "A Desintegração da Morte" (29.4.2014)



Com todo esse moído em relação à Copa do Mundo, acabei me lembrando de um dos romances mais curiosos da ficção científica brasileira: A Desintegração da Morte (1948) de Orígenes Lessa.  Escrito pouco antes da Copa de 50, ele conta que um cientista chamado Klepstein consegue “desintegrar a morte” em seu laboratório (como, ele não explica) e que daí em diante ninguém mais morre, mesmo esfaqueado, fuzilado, reduzido a pasta. Continua sofrendo, e vivo. Há cenas dantescas, como é de esperar. As guerras produzem partes mutiladas que se recusam a morrer.

Lessa adota o estilo de H. G. Wells do romance com múltiplos pontos de vista, em escala planetária. (Veja-se “A estrela” de Wells, no livro O país dos cegos, e “A gargalhada” de Lessa, que incluí na antologia Páginas de Sombra).  São capítulos curtos, compactos, pulando de país em país, de continente em continente, com flashes de personagens que surgem, produzem uma cena extraordinária, e somem para sempre. Cada capítulo é um pequeno mosaico na construção de um grande painel.

E o capítulo XLII começa dizendo: “É quando se realiza em Santiago mais um campeonato sul-americano de futebol.”  (É engraçado que, em 1948, o Sul-americano de seleções, pelas rivalidades regionais, parecia motivar mais do que a Copa do Mundo.) Há um clima de antagonismo entre as seleções, relembrando campanhas bélicas antigas, Humaitá, Tacna, Arica, Monte Caseros. Na véspera do primeiro jogo, atletas de várias seleções fogem da concentração e vão ao mesmo bordel, o “La Quintala”. Um argentino e um brasileiro brigam por causa de uma mulher. No capítulo XLIII, durante o jogo, os dois se estranham. O argentino quebra a perna do brasileiro. E começa ali uma briga que se estende para fora do estádio, e pelos dois países.

O capítulo XLIV começa: “Vinte e quatro horas depois a guerra acabara. Meio Rio de Janeiro não passava de um montão de ruínas. São Paulo era escombros. Buenos Aires, menos protegida pelos acidentes naturais, plana e entregue, estava praticamente destruída. Erro de cálculo, nunca se soube se argentinos ou brasileiros tinham varrido do mapa a pequenina Assunção. Montevidéu sofrera horrivelmente. O fogo lavrava em Porto Alegre, Rosário, Córdoba, Florianópolis. (...) E milhões de seres humanos eram fragmentos dispersos, inidentificáveis, que as turmas de emergência recolhiam em carros, em caixões, em depósitos sanguinolentos.  Naquele macabro recolher de restos humanos palpitava, entretanto, o princípio trágico da vida.” Moral da história: qualquer problema que venhamos a ter com esta Copa do Mundo, sempre vai ficar aquém da imaginação dos escritores de FC.

domingo, 27 de abril de 2014

3484) Motes e glosas (27.4.2014)




A arte de dar motes para que alguém crie uma glosa parece hoje ser exclusiva dos que vivem no meio da poesia popular.  

Pra quem não sabe do que se trata: o mote é um tema que se propõe ao poeta, em geral sob a forma de um ou dois versos que fornecem um assunto a ser desenvolvido até completar uma estrofe de dez versos, que segue um esquema de rimas obrigatório.  

Desse modo, glosar um mote é fazer uma parceria momentânea, em que você me lança um desafio, fornecendo essas linhas (que deverão ser o final do verso, da estrofe) e eu aceitarei o desafio, improvisando na hora outros versos que desenvolvem o assunto até chegar nos versos que recebi.

Isso é a cara do Nordeste? É a cara do Brasil antigo, um Brasil que já houve, e que no Nordeste se manteve vivo, ao contrário, por exemplo, do Rio de Janeiro. 

No conto “Um erradio” (Páginas Recolhidas, 1899) Machado de Assis mostra estudantes cariocas propondo a um amigo o mote “Podia embrulhar o mundo / a opa do Elisiário” (meu comentário sobre o conto, aqui: http://tinyurl.com/nlqsjep).  

No capítulo XII (“Um episódio de 1814”) de Brás Cubas ele descreve o Dr. Vilaça, “glosador insigne”, num ritual semelhante ao que vejo ainda hoje em qualquer mesa de glosas em Campina ou no Pajeú: 

“Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado.”

E hoje, procurando outra coisa nas Memórias da Cidade do Rio de Janeiro (1955) de Vivaldo Coaracy, encontro este episódio saboroso: 

"Eram as freiras [do convento] da Ajuda carinhosamente benquistas pela população carioca que as tinha em alta estima. Não as impediam a clausura e a sua devoção de serem alegres. Por ocasião de certas festividades religiosas, atiravam elas, pelas janelas, rebuçados, biscoitos e outras guloseimas aos grupos que se formavam em frente ao mosteiro. Nem só doces e balas jogavam. Com frequência atiravam pelas grades do locutório papeluchos em que vinha escrito algum mote, em desafio a ser glosado por qualquer poeta presente. E nunca faltavam vates para, entre aplausos ou apupos, improvisar as glosas sugeridas”.

O Rio já cultivou esses hábitos, que nós da Paraíba consideramos tão sertanejos. Mas a roda do tempo não para. Veio a ordem... veio o progresso... e o sertão virou mar.





sábado, 26 de abril de 2014

3483) William Castle (26.4.2014)



Quando eu era menino, ele era chamado por grande parte da imprensa “o rival de Alfred Hitchcock”. Seus filmes, mais até do que os de Hitchcock, eram verdadeiros eventos. Para mim ele e Hitchcock (eu era fã de ambos) eram cineastas parelhos, nivelados, uma dupla parecida, que fazia uma concorrência saudável – algo como Lucas & Spielberg, ou como Coppola & Scorsese. 

Foram precisos alguns anos de estudo para eu perceber a diferença essencial. Hitchcock foi (talento à parte) um dos mais ricos e poderosos diretores do seu tempo. William Castle era um diretor de filmes B, que compensava em esperteza o que lhe faltava em poder político. Em termos práticos, estava mais próximo de um Roger Corman (o rei do filme de terror barato) do que do diretor de Rebecca.

Seu centenário está sendo comemorado neste mês de abril, sem muito alarde, porque só os fãs de filmes de terror se lembram dele.  Seus filmes só passam nos corujões a cabo, enquanto que Os Pássaros (1963), de Hitchcock, reestreou com cópia nova e publicidade no mês passado. 

Em vida, a publicidade era o instrumento preferido de Castle. Quando ambulâncias foram estacionadas na frente dos cinemas que exibiam O Exorcista em 1973, isso virou notícia. Castle havia feito o mesmo com Macabro (1958), que inclusive dava a cada espectador uma apólice de seguro de vida para o caso de alguém morrer de medo durante a projeção.

Castle assustava os espectadores ligando motores que faziam vibrar a poltrona durante a projeção, fazia um esqueleto pendurado no ar passar sobre as cabeças da platéia, distribuía óculos especiais para ver os fantasmas vistos pelos personagens do filme, interrompia a projeção antes da cena culminante para que os espectadores medrosos fossem embora (com devolução do dinheiro)... 

Não, não vi nada disso no Cine Capitólio – funcionava apenas em salas escolhidas nos EUA, mas o mundo inteiro comentava.

É dele um dos filmes que mais me aterrorizaram na infância, Força Diabólica (The Tingler, 1959), com Vincent Price, descrevendo uma espécie de centopéia que se desenvolve na coluna vertebral das pessoas amedrontadas (causando o famoso “frio na espinha”) e que só pode ser morta se a pessoa gritar a plenos pulmões. Quando Vincent Price, no final, se vira para a câmera e manda gritar, o que vocês acham que o cinema inteiro fazia?

Castle, que se divertia tremendamente inventando essas coisas, trouxe de volta ao cinema aquelas tecnologias mambembes de quermesse, do tempo de Georges Méliès, e recriou nos anos 1950 aquele terror inocente dos espectadores que pulavam para o lado quando o trem dos irmãos Lumière se aproximava da câmera.


sexta-feira, 25 de abril de 2014

3482) Tempestade de espadas (25.4.2014)



A Storm of Swords é o terceiro volume das “Crônicas de Gelo e Fogo”, de George R. R. Martin, em que se baseia a série de TV Game of ThronesA quarta temporada começou este mês, já com episódios de grande violência, puxadas de tapete de deixar de boca aberta o espectador, diálogos cortantes e imagens de alto impacto. Sempre temos que levar em conta, nessas adaptações, a enorme diferença entre a página escrita e a imagem filmada.  Uma coisa é você escrever o melhor diálogo do mundo na página: a única coisa de que precisa é um leitor inteligente o bastante para perceber o que o dialogo diz. Outra coisa é ver esse diálogo entregue a atores que no momento de falar aquelas palavras se tornam parceiros de criação, para o bem ou para o mal. A regra básica diz: um mau ator pode estragar o melhor diálogo, um bom ator pode pegar uma frase banal e enriquecê-la de significado. O ator é o ponto final da cadeia criativa, pode valorizar ou destruir tudo que foi feito antes.

Game of Thrones conta com bons atores, e mais do que performances excepcionais (são todas no nível B+ da TV) tem atores corretamente escalados para os papéis. Isso valoriza os ótimos roteiros, porque na TV não existe a preparação gradual de tensões dramáticas, os monólogos interiores, o acesso aos pensamentos íntimos dos personagens, que dão consistência aos livros. Martin é um escritor exuberante, não em termos de estilo, mas de imaginação dramática. Ao contrário da maioria dos romances de fantasia heróica, onde tudo parece “escrito nas estrelas”, seus livros nos dão a impressão de fazerem correções de rumo o tempo todo. Com cem páginas de intervalo, muda a balança do poder, mudam os interesses políticos, mudam as alianças pessoais, muda o caráter ou a disposição íntima dos personagens. E tudo se encadeia, porque numa terra onde só há duas leis, a política e a espada, ninguém tem certeza absolutas, principalmente quando são os personagens com certezas absolutas (leia-se: princípios morais inabaláveis) que são abatidos como carneiros.

Assassinatos em festas de casamento, sexo incestuoso em pleno velório, massacre de inocentes só pra mandar um recado a alguém, tortura, estupro: dito assim parece que o seriado é uma câmara de horrores, mas na verdade tudo isso não é mais violento do que uma guerra sertaneja ou uma tragédia shakespeariana. Game of Thrones é uma espécie de Macbeth elevado à sétima potência, e foi descrito por alguém como “O Poderoso Chefão na época do Senhor dos Anéis”.  O jogo dos tronos é o jogo do poder, e ninguém até hoje ganhou esse jogo de mãos limpas, seja de sangue, seja de dinheiro.


quinta-feira, 24 de abril de 2014

3481) Os jovens acomodados (24.4.2014)



(foto: Klaus Pichler)

Um artigo de Bruce E. Levine (aqui: http://tinyurl.com/k6zrjsz) discute o conformismo, a passividade e a acomodação por parte da juventude dos EUA, que já foi mais combativa, mais disposta a lutar por causas sociais. Os oito sintomas e causas que ele aponta são locais, mas alguns podem ser extrapolados para outros países, como o Brasil.

Um: débito educativo, e o receio que ele provoca. Cerca de dois terços dos universitários têm uma dívida média de 25 mil dólares, sendo que em alguns casos isto chega a 100 mil.  O sujeito que deve tanto ao governo (e lá essas coisas são cobradas pra valer) pensa duas vezes antes de sair à rua com cartazes de protesto. Dois: patologizar o protesto. Entre outras, a “Oppositional Defiant Disorder” (ODD) é uma doença oficialmente reconhecida: o doente “frequentemente desafia ou recusa-se a cumprir exigências ou regras dos adultos, (...) discute com frequência, (...) deliberadamente faz coisas para aborrecer outras pessoas”. Tarja-preta nele, numa cumplicidade entre pais, médicos e escola.

Três: escolas da obediência. Todo o sistema de ensino tem se voltado para fazer o jovem cumprir regras, atingir metas, temer punições, obedecer. As escolas ensinam teorias democráticas, mas são autoritárias em sua prática. Quatro: educação competitiva. Programas como “No Child Left Behind” e “Race to the Top” estimulam a ansiedade e a competição, e minimizam a curiosidade, a espontaneidade de ação, o pensamento crítico.

Cinco: valorização cada vez maior do ensino formal, em detrimento do aprendizado na família e na rua; mentalidade “quem não tem diploma não sabe de nada”. O autor diz que vai longe o tempo de Mark Twain, que dizia: “nunca deixei a escola interferir na minha educação”.  Seis: normalização da vigilância. Os jovens estão achando cada vez mais normal que a vigilância eletrônica permeie sua vida e suas atividades. Pais controlam a vida dos filhos através de CPS e câmeras domésticas, além de vigiar sua vida escolar via websaites. Isso produz nos jovens uma atitude generalizada de “De que adianta?”.

Sete: televisão (que inclui TV, computadores e celulares). Mídias cada vez mais controladas pelas corporações, programações desviando a agressividade e a energia dos jovens para atividades dissipativas que não envolvem críticas ao regime. Oito: religião fundamentalista, consumo fundamentalista. O consumo torna-se “ópio do povo”, produzindo uma população voltada para o culto ao que é produzido e massificado, e a uma vulnerabilidade maior à linguagem, argumentos e técnicas da propaganda.  Poucos espaços da vida do jovem não são ocupados pela máquina ideológica corporativa.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

3480) Dicionário Aldebarã VII (23.4.2014)



O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Alquonnin”: aquelas discussões explosivas e melodramáticas das quais, no dia seguinte, as pessoas não conseguem lembrar uma frase sequer. 

“Esplangs”: gestos maquinais que fazemos quando estamos distraídos ou preocupados, e que todo mundo percebe, menos nós mesmos.  

“Zirguenns”: moedas que é hábito esconder em diferentes partes da casa, para, ao serem encontradas um dia, proporcionarem um momento de alegria inesperada.  

“Treschiolint”: mini-altar com imagens de divindades que são substituídas por outras quando os pedidos do fiel não são atendidos.

“Handol”: um subalterno que realiza todo o trabalho para que seu superior fique com a fama. 

“Relodans”: todas as pessoas que compartilham a mesma data de nascimento (dia, mês e ano). 

“Huwennoks”: a súbita sensação que temos, quando estamos num ambiente qualquer, de que há um detalhe que nos separa de todo o resto das pessoas presentes.   

“Roduc”: o estado de nervosismo de uma multidão entrando em pânico, ou de uma manada de gado prestes a estourar.

“Izannes”: o hábito de encerrar uma conversa com despedidas e logo em seguida lembrar um novo assunto e começar tudo de novo. 

“Lumpas”: exclamações sem sentido que são ditas no lugar de palavrões quando a pessoa está num ambiente mais formal. 

“Moitum”: a coincidência de dois ou três compromissos urgentes aparecerem na mesma hora e ao mesmo tempo. 

“Guembes”: talismã que se pendura ao pescoço apenas um dia por semana, o que deve ser decidido no momento do despertar.

“Trevon”: a boa sensação de cansaço após uma tarefa dura que foi cumprida de maneira satisfatória. 

“Iquinde”: pulseiras e colares feitas de pequenas sementes vegetais, que servem como repelente de insetos. 

“Maironde”: historietas tradicionais compartilhadas por um grupo de pessoas que espera o transporte à beira da estrada. 

“Onfra”: arranjos de jardinagem que são realizados periodicamente para assinalar datas importantes na vida da família.

“Ersala”: o modo como episódios ou pessoas inconvenientes são substituídos por circunlóquios quando precisam ser mencionados em público. 

“Elcadre”: um duelo entre duas pessoas ou equipes em que cada uma possui uma vantagem diferente em relação à outra. 

“Parfil”: flauta rústica que é possível improvisar apenas dobrando qualquer folha de papel, de acordo com um esquema tradicional.


terça-feira, 22 de abril de 2014

3479) O navio fantasma (22.4.2014)



A morte de Garcia Márquez me deu aquela tristeza de saber que nunca mais ouvirei falar sobre “o mais novo livro de Garcia Márquez”.  Geralmente, compenso esse efeito melancólico com a lembrança de que não li a maior parte do que o autor escreveu, então, bem ou mal, quando eu pegar para ler O veneno da madrugada ou Doze contos peregrinos é como se fosse um livro com a tinta ainda úmida.

Fui dar uma relida nos textos dele online e me bati com um pequeno mistério, que aproveito para dividir.  GGM tem um continho curto que é uma beleza, “A última viagem do navio fantasma”, um daqueles contos de parágrafo único que nos arrebatam da primeira à última palavra e se transformam numa pequena epifania literária. É a história de um menino num povoado à beira-mar que vê passar um navio fantasma (que somente ele vê) o qual acaba afundando; isso se repete todo ano, na mesma data, e ele pensa que é a reconstituição sobrenatural de um fato ocorrido num passado remoto.

Não tirarei de ninguém o prazer da leitura dessa joiazinha de apenas 2 mil palavras (dá mais ou menos a extensão de 4 artigos como este), num fluxo de imagens que aqui lembram Ray Bradbury, ali Mario Quintana, mais adiante Marc Chagall ou Fellini. No final (que não revelarei), o menino tem um vislumbre do nome do navio, quando o descreve: “...veinte veces más alto que la torre y como noventa y siete veces más largo que el pueblo, con el nombre grabado en letras de hierro, balalcsillag...”.

Nome esquisito, que parece inventado, não é mesmo?  Mas hoje temos São Google, em cujo altar dou minhas clicadas cotidianas. Lá vou eu perguntar pelo nome. Praticamente todas as respostas se reportam ao conto de Márquez, que é reproduzido mundo afora em várias línguas. Mas no alto da página o Google faz aquela ressalvazinha robótica de sempre: “Você quis dizer ‘halálcsillag?”. Era tão parecido que eu cliquei, pensando, “sim, digamos que foi isso mesmo”.

Fui dar numa página cheia de que? De reproduções da “Estrela da Morte”, a Death Star de Star Wars. “Halálcsillag” (começando por um “H” e com um acento no segundo “A”) é o nome da Estrela da Morte em húngaro (magyar)!  Que coincidência é essa? A Wikipédia em espanhol dá a data do conto como sendo 1968, ou seja, muito antes do filme de George Lucas, e a publicação em livro foi no volume A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada, que é de 1972. Não tenho o livro, não sei se nas traduções se mantém esse nome (é nas últimas linhas do conto). A questão é: Por que motivo o nome do navio gigantesco do conto de Márquez é quase igual ao nome da Death Star em húngaro? Hipóteses serão bem vindas.


domingo, 20 de abril de 2014

3478) Ladrão é gente (20.4.2014)



É tanto crime, tanto assalto, tanta violência feia campeando no mundo que as reações das pessoas pipocam por todo canto. Ninguém é tão veemente quanto um cidadão de bem quando vê seus direitos ameaçados.  Nas redes sociais, cada um traz sua receita de como lidar com o problema.  Um pede mais polícia no seu bairro, para que os ladrões vão todos para bairros mais distantes (e os bairros distantes que se danem, afinal ele não conhece ninguém lá). Outro exige educação gratuita e de boa qualidade para todos, o que é uma das melhores idéias da humanidade em todos os tempos, mas como não tem efeito retroativo deixa sem saída o camarada que está tendo os bolsos revirados sob a mira de um tresoitão.  Vem um terceiro e brada: “Vamos pra rua linchar!”, e de fato vai pra rua e lincha, e esta é uma solução tão eficaz que não tarda a surgir um outro grupo para linchar ele próprio, assim como os guilhotinadores franceses morreram todos na guilhotina.

Alguns dizem: “Que é isso... conversa com o ladrão... às vezes ele está ali por mero desespero... explica pra ele que aquilo não resolve...”.  Ouvi uma história de um cara que foi rendido por um ladrão: “Passa a grana!”  Ele meteu a mão no bolso, tirou todo o dinheiro que tinha, mas disse: “Vou te dar, mas isso não vai ser um roubo, eu quero salvar você desse caminho que não leva a nada, toma o dinheiro, é um presente!”.  O ladrão recebeu, desconcertado, e pra não perder a moral falou: “Tá OK, mas então me dá também o sapato.”

Não tem solução mágica, porque mesmo quando a solução serve para um ladrão, não serve pra outro.  Ladrão é gente.  Cada ladrão é um indivíduo, com uma história única e imprevisível, irredutível às estatísticas. A gente pode sair moendo números até concluir que 17,8% roubam porque fumam crack, 22, 1% porque estão desempregados, 7,4% porque são psicopatas... Mas na hora de encarar um indivíduo armado e ansioso, essa tabela serve pra quê? 

Pixinguinha foi assaltado uma vez, puxou conversa e acabou levando os ladrões pra beber num boteco. Sorte dele, porque se fosse o ladrão anterior ou o próximo ele podia ter acabado ali mesmo na calçada, coberto pela foto de um gol. Ladrão travado de crack mata sem saber que está matando. Psicopata mata e larga o dinheiro na calçada, pois não dá valor a dinheiro. Pai-de-família num momento de desespero acaba matando porque ficou com medo da reação da vítima.  Cada ladrão tem uma história; mesmo cruzando o eixo cartesiano de razões marxistas e freudianas, cada ladrão é tão gente quanto a gente, é tão único e imprevisível quanto a pessoa que está assaltando. Claro que nenhum cidadão-de-bem é obrigado a aceitar esta tese.


sexta-feira, 18 de abril de 2014

3476) Roubado não é bom (18.4.2014)




Continuam se fazendo sentir, Brasil afora, os abalos sísmicos provocados pela decisão do Campeonato Carioca de domingo, quando o Vasco vencia por 1x0 (resultado que lhe dava o título) e o Flamengo empatou no último instante, tornando-se campeão com um gol que, minutos depois, todo mundo viu que foi feito em impedimento. Dizem (eu procurei, mas não achei as imagens) que nas comemorações pós-jogo o goleiro Felipe, do Fla, teria dito: “Roubado é mais gostoso”. Ou seja, ganhar praticando uma injustiça é mais divertido, certamente porque eleva ao quadrado o desespero e a revolta dos adversários. Esse traço de muitos torcedores de futebol (não só aqui; creio que é assim no mundo todo) revela o que o esporte significa para eles. Significa a chance de tripudiar sobre um adversário, de exercer a “hubris”, a arrogância dos vencedores, para quem não basta derrubar o outro no chão, precisar pisar na cara, também.

Eu não acho uma vitória assim mais gostosa. Gostosa é quando o adversário faz um gol em impedimento, e depois a gente vai lá, faz um gol legal e ganha o jogo. Aí sim, é bom de esfregar a vitória na cara do outro. O gol roubado é um privilégio, e eu torço pelos desprivilegiados (inclusive para expurgar meus privilégios de sexo, de classe e de cor; quem foi que disse que agnóstico não crê em pecado original?). Vitória gostosa é virar para 3x2 um jogo que estava 0x2. É ficar com um a menos e derrotar o outro time. É ganhar na casa do adversário.  É precisar de um golzinho durante o jogo inteiro e fazê-lo nos acréscimos.  Ou seja: a vitória é mais gostosa (para mim, e acho que para alguns outros torcedores) quando o privilégio ou a vantagem estão todos do lado oposto, e mesmo assim a gente vai lá e passa por cima.

Nelson Rodrigues (ou seria Mário Filho?) tinha um personagem para quem a vitória só valia se o gol fosse de mão. Há pouco, um saite publicou uma matéria apontando 12 erros de arbitragem em favor do Brasil em Copas do Mundo (acertou em todos). Parece que existe em nós aquele complexo do sujeito que, mil vezes roubado, precisa roubar também para convencer a si mesmo de que não é um imbecil, não é um banana. Roubando, podemos enfim curtir aquele momento breve de esperteza que leva tantos otários mais cedo para o buraco.  

O futebol é um reflexo da nossa sociedade, onde (para alguns) só existe ascensão social através do privilégio.  O gol impedido dá ao torcedor a ilusão (porque se não for ilusão, é o quê?) de que daquela vez o grupo de que ele faz parte estava do lado dos poderosos, dos privilegiados, dos que podem fazer qualquer coisa porque acima deles não há ninguém para puni-los.



3477) Escrever no Brasil (19.4.2014)




Numa discussão sobre ficção científica brasileira, com dois ou três amigos, me queixei do pouco que o Brasil é retratado em histórias de FC nacionais. Todo mundo ambienta suas histórias em outro país ou outro planeta, e histórias ambientadas no Brasil são proporcionalmente poucas. Por que?  Alguém questionou: “Peraí, que dirigismo é esse? Então o escritor é um funcionário, tem que obedecer um Plano Quinquenal de Romances Futuristas?  O autor não é livre pra criar? Tem que produzir dentro de uma fórmula fornecida pelos críticos, ou pelo governo?” 

A crítica é procedente, e concordei. Cada sujeito, quando se senta para escrever, é livre para ambientar suas histórias onde bem quiser. Dei como exemplo eu mesmo: nos 19 contos de meus dois livros de FC, há dois que só poderiam ser ambientados (como são) no Rio de Janeiro. São dois contos sobre um Rio do futuro (“Príncipe das Sombras” e “Jogo Rápido”). O resto, ou é em outros planetas, ou numa cidade que poderia ser qualquer uma. (Há um conto, “Oh Lord, won’t you buy me”, ambientado em São Paulo, mas sua primeira versão, que escrevi nos EUA, era ambientada em Chicago, e o conto era exatamente o mesmo.)

O que acontece é que o questionamento sobre ambientação não deve ser feito aos indivíduos, e sim à uma geração inteira dos autores, depois dos livros escritos.  Cada um de nós, autores, é livre para ambientar suas histórias onde quiser, mas nós, críticos, temos o direito de estranhar se somente uma fatiazinha desses livros brasileiros diz respeito ao Brasil. Não se pode cobrar nada de cada escritor (cada um é livre, repito) mas se o país está conspicuamente ausente dessa produção literária isto é um sintoma cultural que não pode ser ignorado.  O crítico tem a obrigação moral e intelectual de perguntar por que é assim.

Um fato assim indica um viés, uma preferência. É mais fácil escrever sobre Marte do que sobre o Brasil?  Para mim, pelo menos é.  Se eu pudesse ambientar todas as minhas histórias em Londres na década de 1890, ô beleza, eu escreveria um conto por semana, porque não existe ambiente literário mais cômodo (pra mim) do que esse.  Doses cavalares de Conan Doyle, Stevenson, Chesterton, James, etc. me deixaram à vontade para passear literariamente por essa cidade (que nem conheço, aliás).  Ambientar no Brasil me leva a uma contaminação de realidade que, pra quem dá importância à verossimilhança externa do que escreve, chega a ser paralisante. É como pedir a um chargista para pintar a Capela Sistina.  O Brasil, como cenário minimamente verossímil, parece estar além da capacidade de muitos autores, inclusive eu mesmo.

(Por distração, este artigo, que é do "Jornal da Paraíba" do sábado 19 de abril, foi postado aqui neste blog no dia 18, sexta. A postagem correta referente à a sexta 18 é "3476) Roubado não é bom".)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

3475) Bilac e o Brasil (17.4.2014)



O Brasil se vê como uma cultura periférica em relação à Europa e EUA, assim como o Nordeste em relação ao Rio e São Paulo.  Existe o fervilhar endêmico de sentimentos nativistas, separatistas, rebeldes, etc., mas o fato deles terem alvo certo comprova a existência do fenômeno.  Isso é errado?  É feio?  É não, rapaz, é a vida.  Na cidade-de-esmeralda distante tudo parece maior, melhor, mais bonito e mais bem feito do que na cidade-de-taipa que nos rodeia. Ouvimos as músicas dela, lemos os livros, sonhamos em conhecê-la. Uns vão tentar a vida lá, alguns dão com os burros nágua, outros descobrem que o tesouro estava enterrado no pé do sicômoro onde cochilavam...  É a vida.

No ensaio O alexandrino Olavo Bilac (1965) Virginius da Gama e Melo passa um pente fino na obra do poeta da Via Láctea. Virginius (para quem não conhece, um dos grandes intelectuais boêmios que a Paraíba produziu), faz um passeio amplo pela métrica, rima e temática bilaqueana, e a certa altura toca num ponto interessante. Cadê o Brasil na obra de Bilac?

Parece uma pergunta ociosa. Por que diabos um poeta brasileiro é obrigado a escrever sobre o Brasil? A pergunta procede, contudo. Bilac defensor do serviço militar obrigatório, fez letra de hino, fez poema ufanista (“Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste! / Criança, não verás país nenhum como este!”). Mas... Diz Virginius: “Basta a verificação dos seus temas principais, temas obtidos ora da mitologia e da história greco-romana, ora do cristianismo primitivo e medievo, além duma evidente inspiração francesa. Há numa visão panorâmica quase o levantamento total dos grandes episódios criadores e informadores dessa cultura latina (...)”.

Folhear os livros de Bilac é passear em Cartago, em Atenas, em Roma; é esbarrar em Xenócrates, em Frinéia, em Cleópatra.  Um épico como “O Caçador de Esmeraldas”, sobre Fernão Dias Paes Leme, é exceção, e mal se distingue do épico dedicado à Escola de Sagres (“Sagres”, que Ariano Suassuna, num ensaio notável, sugere ter influenciado o Mensagem de Fernando Pessoa, publicado pouco depois).  A inspiração de Bilac, diz Virginius, não lhe vinha da vida e sim da literatura: “Era ele, entretanto, pessoalmente, um patriota sincero, e muita fé no nacionalismo fez. Acontecia apenas que, de certo modo, passara sua sensibilidade a existir apenas literariamente. (...) O descritivo estereotipado de Bilac, as paisagens referidas nos seus elementos universal e historicamente comprovados, situam o poeta, nesse campo, numa categoria puramente intelectual, onde as imagens são produto do eruditismo, e não da sensibilidade”.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

3474) O erro poético (16.4.2014)




O erro pode ser fonte de criação e de fagulha poética. Até mesmo o erro produzido por ignorância ou desinformação.  

João Saldanha contou numa crônica a discussão que viu num ônibus entre dois sujeitos e um deles afirmava com veemência: “Você é um indivíduo sem crepúsculo!”.  

Se eu ouvisse isso, ficaria maravilhado com a finura de percepção poética do litigante. Um indivíduo que não tem crepúsculo é decerto um indivíduo que não conhece sutilezas, transições... Uma beleza, se bem que Saldanha adverte que o cara na verdade quis dizer “sem escrúpulos”. 

Não muito diferente do locutor de uma rádio de Campina que escutei, após a conquista de um título pelo Treze, berrar entusiasmado ao microfone: “A torcida do Galo está comemorando enfurecida!”  Pelo contexto, acho que ele quis dizer “eufórica”, mas euforia é assim, às vezes ela se sabota a si mesma.

Em outras situações de erros desse tipo – quando estamos ouvindo, e não falando – a palavra que entendemos mal cria um ruído em nossa mente e nosso primeiro esforço é para corrigir esse ruído, transformando a palavra que não faz sentido em algo que nos é familiar. 

Uma vez eu estava no aeroporto e havia umas senhoras idosas, visivelmente novatas em voos aéreos, pedindo explicações sobre como proceder para embarcar. A moça da empresa disse a uma: “Primeiro, a senhora precisa fazer o check-in”, e mostrou um bilhete de embarque que tinha na mão.  

A senhora voltou para junto das amigas e disse: “Ele disse que tem que fazer o chequinho, ter que ir no balcão e pegar aquele chequinho ali” – e macacos me mordam se naquele tempo um bilhete de embarque não tinha mesmo o formato de um cheque bancário.

Philip K. Dick dizia que nossa mente tem sede de sentido, sede de que as coisas tenham significado, de que o inexplicável possa ser explicado, não importa como.  

Em outra situação, vi duas pessoas novatas tentando acessar um saite na Web.  Uma delas disse: “Eles falaram que a gente tem que clicar nesse espaçozinho ali em cima e escrever a URL.”  A outra, estranhando: “A o quê?” “A URL, foi o que eles disseram.” (Como se sabe, URL quer dizer ‘Uniform Resource Locator”, é aquele endereço começando por “http” que a gente digita para chegar onde quer chegar.) 

A outra num esforço de tradução, perguntou, intrigada: “A arruela?...”, e fez com os dedos a forma circular do objeto. E a primeira, visivelmente aliviada, repetiu o gesto e disse: “Sim!  A arruela!  É como um link!”.  

E é desse jeito que acabamos chegamos ao destino certo por vias tortas, e mesmo virando à direita ao sair da porta podemos dar a volta ao quarteirão e chegar no prédio vizinho à nossa esquerda. Tipo assim.




terça-feira, 15 de abril de 2014

3473) Começar pela pintura (15.4.2014)




Um professor nos disse certa vez: “Começar a escrever um romance preocupado com o estilo é como começar a construir uma casa pela pintura, depois pensar onde vão ficar as paredes, e só no fim planejar em que rua vai ser a casa.”  


Exagero, é claro. Até porque a relação entre estilo e história não é a relação entre pintura e parede. Estilo não é uma coisa exterior que se espalha sobre algo de natureza diversa que foi colocado antes.  Estilo e história são como a casca da fruta e a “carne” da fruta. Coisas diferentes mas entrelaçadas, que crescem juntas, a partir de um só impulso inicial e do mesmo material genético.

Já citei aqui George Lucas, para quem de nada adianta ter 15% de um roteiro perfeito e não ter o resto. “Escreva tudo, até o The End,” aconselha ele; “depois volte ao começo e venha ajeitando. O importante é trabalhar em cima de algo já feito de ponta a ponta.”  

Essa recomendação pode até sofrer ressalvas de quem (como eu) acha Lucas um roteirista apenas sofrível, na melhor das hipóteses.  Mas não difere muito do que Raymond Chandler, um grande intuitivo que detestava planejar enredos, dizia numa carta a seu amigo Charles Morton em 1945: 

“Improvise a história o melhor que puder, com muito ou com pouco detalhe, conforme a inspiração do momento, escreva os diálogos ou deixe para depois, mas registre o andamento, os personagens, dê vida à história. Começo a perceber que um grande número de histórias são desperdiçadas por nós, sujeitos ultra-meticulosos, simplesmente porque permitimos que nossa mente fique paralisada por causa de pequenas falhas, em vez de permitir que ela trabalhe por algum tempo livre daquele supervisor crítico que fica implicando com cada coisinha que não ficou perfeita”.

Chandler sabia que uma história, e ainda mais um roteiro de filme (que é uma experiência sensorial e dinâmica, antes de chegar à alfândega do intelecto) depende desse andamento, desse movimento interno desencadeado pelo que acontece às pessoas e pelo modo como as pessoas reagem ao que lhes acontece, desencadeando novos fatos e novas reações, e assim por diante. 

Seus famosos atritos com Hitchcock (durante a roteirização de Pacto Sinistro) se deram porque Hitchcock não estava nem aí para as motivações íntimas dos personagens. O que lhe importava era o impacto visual, a dinâmica entre montagem e fotografia; não tem coisa mais improvável do que alguém querer fugir de um bando de espiões escalando os rostos esculpidos no Monte Rushmore (Intriga Internacional), mas ele sabia que o público ia ficar de boca aberta.  

Os dois estavam certos, ele e Chandler; apenas queriam fazer tipos diferentes de filme.






domingo, 13 de abril de 2014

3472) Planta de terraço (13.4.2014)



Ela chegou ali numa tarde em que o sol fazia do céu uma placa de churrasqueira, crestando a pele e encandeando os olhos.  Precisou de três homens suados para trazê-la, aos arrancos, dentro de um pote de barro atochado de terra, pesado como um bloco da Pirâmide. Foi instalada na quina do terraço onde o vento sul e a chuva batiam oblíquos e fortes quando era o caso, e onde o sol da manhã fazia sua vistoria diária entre as seis e as oito. Era uma palmeira-ráfia altiva, eriçada de lâminas verde-escuras, reluzentes, num desenho entrecruzado que o mexer do vento e os vidros da porta corrediça multiplicavam.

Parecia que a futura crônica estava se encaminhando bem, rumo a alguma platitude final sobre a possibilidade de harmonia entre a natureza e a construção civil, mas aí o dono da casa viajou, demorou-se, foi correr trecho para minimizar o vermelho do saldo.  Tome avião, tome hotel, tome entrevista na TV, tome passagem de som, tome espetáculos com zilhões de decibéis para porrilhões de pessoas, tome van do camarim para o aeroporto.  E no retorno, depois de cumpridas as mais agradáveis formalidades do reencontro familiar, chegou o momento da rede no terraço. Espanto!  Horror!  O que era aquela estrutura marrom, cinza, com os ramos pendidos, as folhas ressecadas, espantalho de si própria?  Como pode uma criatura em menos de um mês passar de vicejante a escangalhada?

Pode. Aquele recanto de terraço onde-o-vento-faz-a-curva a colocou num ângulo privilegiado do leiaute, deu-lhe uma visibilidade que vizinhos de outros prédios não deixaram de constatar; mas toda superexposição tem um preço. O dono da casa fumou em paz seu tranquilizante enquanto meditava sobre o preço da fama, o preço de brilhar e arder sob o resplendor das luzes “intelabeam”, sobre o deficit metabólico acumulado dos jet-lags, sobre o distanciamento brechtiano que lhe permitia berrar versos e fazer coreografias ensaiadas enquanto lá dentro de sua mente pensava que prato iria pedir no restaurante após o show.  O vento fustiga e mata, concluiu ele, por isso que a mata se agrupa, se encouraça em números para se proteger.  Palco fustiga e mata, derivou: mas lá em cima a gente é uma dúzia, e é no astro principal que mais recai o olhar vampírico e sequioso da multidão. Seu álbum seguinte se chamou Planta de Terraço e a foto da capa foi uma do seu próprio rosto depois de acordar e antes de fazer a barba.  Escusado dizer que foi um fracasso, o que lhe permitiu a saída honrosa de ir morar numa beira-de-praia num Estado onde ninguém o conhecia, e encher o terraço de palmeiras-ráfias que nas noites de cigarro aceso farfalhavam agradecidas.


sábado, 12 de abril de 2014

3471) "Sérgio Samba Sampaio" (12.4.2014)


Para os muitos jovens ele é um nome desconhecido, porque suas músicas não tocam mais nas rádios FM nem na TV.  Estão na Internet?  Sim, estão, mas achar algo por acaso na Internet é o mesmo que achar uma agulha de vitrola num palheiro de irrelevâncias.  Para os mais ligados em música brasileira, ele é o autor da uma das marchas-rancho-pop mais cantadas dos anos 1970, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”. Para quem prestou mais atenção na sua obra, principalmente no seu inquietante primeiro álbum (que teve esse mesmo título), Sérgio Sampaio (1947-1994) foi um desses cantores-compositores surgidos na época da ditadura, cheio de talento imprevisível, de uma simplicidade poética que o colocava meio próximo de Luiz Melodia e Odair José, de uma pegada roqueira que o levava para a praia de Raul Seixas (de quem foi parceiro no projeto “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista”), de uma nunca apaziguada angústia existencial que o fazia ainda tão jovem ter algo do torvelinho dark e inescapável de Torquato Neto ou Nelson Cavaquinho.

Deve ser difícil encontrar os álbuns de Sampaio, mas sua audição pode ser complementada pela leitura de um precioso livrinho de análise do primeiro deles, de Paulo Henriques Britto: Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua (Ed. Língua Geral, 2009).  Mas o que muitos não sabem é que ele também era compositor de sambas saborosos e sincopados, pontuados por breques e refrões daqueles que grudam no ouvido.

Coube a um paraibano recuperar os sambas desse capixaba. Chico Salles, natural de Sousa e radicado no Rio há mais de 40 anos, é forrozeiro, sambista e cordelista de primeira água, e nas horas vagas de seu trabalho autoral fez o álbum Sérgio Samba Sampaio, produzido por Henrique Cazes e José Milton, com participações especiais de Zeca Pagodinho, Raimundo Fagner e Zeca Baleiro (este último, aliás, autor de outra compilação póstuma do poeta, Cruel, 2005). 

Nesse disco precioso encontrei tesouros que nem lembrava que sabia de cor, como “Cala a boca, Zé Bedeu” (“Mas que mulher danada / essa que eu arranjei / ela é uma jararaca / com ela eu me casei...”), composto pelo pai do artista. Tem o partido alto de “O que pintar pintou”, tem o criativo jogo de palavras de “Polícia, Bandido, Cachorro, Dentista”, o samba-canção de separação “Nem assim”...  Sérgio Sampaio era a cara dos anos 1970, meio Novos Baianos em sua mistura de rock e samba, mas sempre com um travo de angústia que era só seu, umas melodias com ziguezagues inesperados, um apreço pelas rimas toantes.  Sua obra inteira ainda merece um estudo mais profundo, proporcional à emoção que ele ainda desperta em quem o viu surgir e depois desaparecer.


sexta-feira, 11 de abril de 2014

3470) "True Detective" (11.4.2014)




(Marty Hart e Rust Cohle)

A série True Detective, encerrada recentemente na TV a cabo, conta a investigação de crimes seriais na Louisiana, envolvendo elementos ritualísticos e satânicos. Os protagonistas são dois detetives, Marty Hart, um pai de família convencional, que convencionalmente trai a mulher a-dar-com-o-pau, e Rust Cohle, um semi-junkie niilista com fascinação por crimes rituais.  A história total abrange 17 anos da vida dos personagens e pode ser resumida assim: Hart e Cohle investigam os crimes, descobrem o criminoso, mas não se contentam e querem investigar mais, pois suspeitam de uma rede muito maior de fanáticos que sacrificam crianças e mulheres. A rivalidade mútua os leva a brigar, e Cohle larga a polícia. Muitos anos depois, crimes parecidos são descobertos, e dois novos policiais interrogam Hart e Cohle (os dois já enormemente mudados) para saber os detalhes da história, e solucionar a dúvida principal: se o criminoso foi apanhado anos atrás, como se explica que crimes idênticos tenham voltado a acontecer?

Hart (Woody Harrelson) é um daqueles policiais-modelo de um milhão de filmes, caras durões, sem frescura, sem teorias, interpretados por Richard Widmark ou Kirk Douglas. Rust Cohle (Matthew McConaughey) é de outra natureza. Um sujeito calejado, atormentado, que diz ter perdido a filhinha pequena anos atrás (não dá detalhes), e por isso torna-se obcecado por matadores de crianças (um pouco como o Fox Mulder de Arquivo X, que julga ter tido a irmã abduzida por alienígenas). O duplo arco narrativo (passado e presente) converge para uma situação em que dois ou três desfechos são plausíveis. Um deles acontece. Gente reclamou que era previsível. Eu achei que ia dar outro; mas acabei preferindo que terminasse como terminou. O final que eu imaginei seria cruel demais.

Louisiana é um estado anômalo nos EUA, com influência francesa, caribenha, negra, tudo misturado. É a pátria dos vampiros e bruxas de Anne Rice, e locação de muitas histórias de vudu e feitiçaria. Curiosamente, há poucos negros em True Detective.  O satanismo que campeia naquelas quebradas escondidas no mato é um satanismo do “white trash”, o lixo-humano branco, geneticamente deformado por séculos de semi-incesto dos miseráveis, misturado à mentalidade sádica e torturadora dos lordes escravagistas.  E instituído por uma organização que envolve xerifes, políticos, pastores evangélicos; é “o lado tenebroso da Força”, o retrato-de-dorian-gray onde se acumulam todos os crimes e pecados de uma América que se exibe ao mundo limpa, imaculada, conservadora e cristã.  Quem sabe o mal que se oculta no coração dos homens?  Rust Cohle sabe.


quinta-feira, 10 de abril de 2014

3469) A Vida e os Tempos de Ribebê Trancaz (10.4.2014)



Cap. 1 – De como Ribebê Trancaz desembarcou certa tarde em Brasília de um voo da Avianca, vestindo um terno da “Taylor and Stewart” e trazendo consigo três smartphones e uma pasta de documentos com dois cadeados. 

Cap. 2 – De como ele foi direto para o restaurante Piantella, onde sentou vizinho à mesa onde almoçavam dois ministros e logo-logo lhes vendeu a idéia de uma base espacial secreta a ser construída em algum lugar entre o Bico do Papagaio e Brasília, e o pitch foi tão bem sucedido que durante o petit gâteau já manipulavam a alta do cimento. 

Cap. 3 – De como Ribebê decolou novamente, e, sentado por acaso junto a um neurocirurgião, maravilhou-se com essa coincidência que o obrigou a confidenciar um segredo cuidadosamente guardado, o de que um laboratório da Noruega acabava de produzir um coagulante específico para a rede vascular cerebral, e diante da esteira de bagagens trocaram cartões de visita e apertos de mão efusivos.

Cap. 4 – De como ele desembarcou na Cidade do México e foi direto reunir-se com o Núncio Apostólico, a quem apresentou um documento de cardeais brasileiros pronunciando-se sobre uma tecnicalidade metafísica qualquer, e apesar da resistência inicial do Núncio saiu de lá com sua assinatura no documento e um convite para visitar sua casa de veraneio em Acapulco.  

Cap. 5 – De como Ribebê desceu no Recife e havia à sua espera um carro que o levou ao estúdio do artista ghoul420: aquários com leishmaniose, pregos enferrujados, copo de cólera, sêmen congelado com HIV; “o direito a escolher a morte”, disse o artista, e Ribebê assinou o patrocínio da expô inteira a percorrer Genebra, Paris e Milão.  

Cap. 6 – De como Ribebê Trancaz tirou três dias de folga e relax na Tailândia (“seeeei...”).  

Cap. 7 – De como Ribebê voltou à carga em Toulouse (França), usando uma megacorp aeroespeacial como mula para produzir um sistema de malotes transgeográficos entre a Provença medieval e o Nordeste mais medieval ainda.

Cap. 8 – De como, numa reunião urgente em Zurique, Ribebê foi acusado de malversação de fundos durante um pau-na-mesa da diretoria, mas defendeu o bastião com bravura, conseguindo um voto de confiança dos acionistas e a instauração de duas comissões de inquérito contra os que o acusavam.  

Cap. 9 -  De como ele desceu em Brasília num jatinho japonês fretado, convocou uma entrevista coletiva, e no meio da discussão foi finalmente identificado, localizado e preso pelos encarregados do Pinel, de onde fugira um mês antes numa madrugada de temporal, após nocautear o psiquiatra-residente sueco e furtar-lhe um terno, três smartphones e uma pasta de documentos com dois cadeados.


quarta-feira, 9 de abril de 2014

3468) Hiper-Mistério (9.4.2014)



Suponhamos um romance policial em formato eletrônico. O livro total tem (digamos) 70 capítulos.  O leitor, ao "entrar no livro", clica e vê o começo de um capítulo, com título, sem número.  Ele lê.  No fim da página, um link, escrito: “Próximo”. Ele clica (ou encosta o dedo, ou pisca o olho, sei lá como vai estar isso daqui a uns anos). O clique nesse link escolhe (aleatoriamente) o capítulo seguinte. Cada capítulo acessado pelo leitor vai sendo arquivado, de modo que ele possa a qualquer momento rever a lista dos capítulos que lá leu. E reler, se quiser. (Depois de lidos, ficam como que grudados uns aos outros: é impossível voltar atrás e modificar o passado).

Acontece que a história básica, a trama central da história, é contada em 15 capítulos, que (sem que o leitor saiba) estão numerados em sequência. Nestes capítulos de “1” a “15”, estará a história a ser contada.  Eles estão linkados entre si de tal forma que o 2 só pode ser acessado depois que o 1 foi lido; o 3 depende igualmente do 2, e assim até o final.

Os 55 capítulos restantes serão "capítulos prescindíveis", como os de “Rayuela” de Cortázar.  Todos terão alguma informação extra, de caracterização, ambientação, revelando detalhes dos personagens, etc., sem mexer no enredo em si.  O processo de salto para o próximo capítulo tem embutido um “lance de dados” para que cada leitor, depois de ler o cap. 1, possa ler outros aleatórios antes de ler o 2.  Todos lerão os capítulos de 1 a 15 nessa ordem – mas entremeados com capítulos intermediários, sorteados pelo processador.

Após a leitura do 1, que será o mesmo para todos os leitores, poderá ser sorteado qualquer um, menos os de 3 a 15 (da história básica, que só poderão ser lidos depois de ser lido o 2). Digamos que saia o 44.  No clique seguinte, voltam a ser possíveis todos, menos o 1, o 44 e os de 3 a 15.  No terceiro clique, sai o 18.  No próximo, portanto, serão possíveis todos os números, menos 1, 44, 18 (já lidos) e os de 3 a 15.  Portanto, esse leitor lerá o livro assim, p. ex.: 1 – 44 – 18 – 29 – 2 – 45 – 16 – 3... Outro lerá talvez: 1 – 23 – 65 – 43 – 2 – 38 – 3 – 57 – 19 – 4...  E assim por diante.

Se os capítulos “do enredo”, de 1 a 15, demorarem a sair nos primeiros cliques, irão se acumulando para o final; ao surgirem bem próximos um do outro darão a sensação de que a narrativa se acelera. Se, ao contrário, forem sorteados com frequência na fase inicial da leitura, parecerá que a história começou acelerada e a partir de um certo ponto o "autor" começou a divagar.  Seria legal imaginar que tipos de história poderiam render melhor, submetidos a uma estrutura assim.


terça-feira, 8 de abril de 2014

3467) José Wilker (8.4.2014)



(a última foto dele)

Minha primeira imagem de José Wilker é ainda uma das mais fortes: o Tiradentes que ele (então um ator jovem e desconhecido) interpretou no filme Os Inconfidentes de Joaquim Pedro, em 1971.  Um Tiradentes sem barba, intenso, vibrante. O filme é um dos melhores filmes políticos daqueles anos difíceis, e isto ajudou a marcar na memória a presença do ator.  Depois vieram papéis clássicos, de grande sucesso, em O Homem da Capa Preta (um Tenório Cavalcanti rude, irascível, imprevisível) , Dona Flor e seus dois maridos (Vadinho das candongas, o malandro arquetípico, e nu ainda por cima), além das novelas que o consagraram, como Roque Santeiro, que juntamente com Vadinho deve ser seu personagem mais famoso, o que mais ficou na memória do público. Acho que meu preferido é o Lorde Cigano do Bye bye Brasil de Cacá Diegues: sardônico, espertalhão, naïf, mambembe, imperturbável, é um dos grandes personagens picarescos do nosso cinema.

Wilker era um ator cerebral, uma explosão contida em cada segundo de gestos precisos, voz cortante, esgares impagáveis.  O excesso de exposição na TV o fez, a partir de certa altura da carreira, recorrer ao piloto automático que acabou sendo a salvação-da-lavoura de tantos atores talentosos de sua geração. Não é fácil um ator de verdade, com densa formação teatral, trocar frases com rapazes e moças cujo talento mal dá para um comercial enaltecendo a fórmula de um dentifrício. A TV brasileira é um pouco como o filme de FC norte-americano, um recorde de desperdício de dinheiro e de talento por minuto gravado. Wilker fez personagens caricatos, com falas constrangedoras, mas ele gravava como quem não está nem aí.  Devia considerar o salário uma espécie de indenização por mau uso do seu tempo de vida, e às vezes parecia que estava fazendo um pastiche de John Malkovich para ganhar uma aposta contra meia dúzia de amigos. Por sorte, seu último papel marcante, em Gabriela (2012) trouxe de volta algo do sarcasmo e do ar sobranceiro que ele dominava tão bem.

Alguns atores dão a impressão, até pela idade avançada em morrem, de que encerraram suas carreiras de maneira feliz e honrosa.  Outros, mesmo com tudo que já fizeram, sempre nos dão a impressão de que o grande papel da sua vida pode muito bem surgir (como já surgiu para tantos) quando todo mundo já os encaminhava para o guichê da aposentadoria. Wilker, aos 66, morreu naquela idade em que poderia estar iniciando um terceiro estágio de sua vida útil; aquele, como já disse um ator, “em que a gente está cansado de fazer Hamlet e começa a considerar a possibilidade de fazer o Rei Lear”.


domingo, 6 de abril de 2014

3466) Shakespeare e a ciência (6.4.2014)



Este ano estão sendo comemorados os 450 anos de nascimento de William Shakespeare (1564-1616) e é claro que pipocam artigos sobre ele o tempo inteiro.  

Achei no saite do The Telegraph (aqui: https://tinyurl.com/yxvgspmu), um texto intitulado “Shakespeare, o Rei do Espaço Infinito”, em que Dan Falk examina os conhecimentos astronômicos do Bardo e sugere que eram muito avançados para sua época, que ainda defendia a visão ptolemaica (a Terra como centro do universo). O poeta de Avon foi contemporâneo de Copérnico (cujo livro De Revolutionibus é de 1543) e de sua teoria do Sol como centro do sistema solar, e há muitos doutorandos ingleses passando pente-fino nas peças em busca de referências.

Falk menciona que o primeiro relato detalhado de um inglês sobre a teoria de Copérnico foi de Thomas Digges (c.1546-1595), que morava a algumas centenas de metros do dramaturgo. Seu filho Leonard Digges era admirador dele, e contribuiu com um texto para o famoso First Folio, a primeira edição das peças shakespearianas. 

Falk lembra que Shakespeare era contemporâneo de Giordano Bruno, John Dee, Francis Bacon, Montaigne e outros homens de ciência cuja obra ele bem podia conhecer, mesmo indiretamente.

Ele observa que Shakespeare tinha oito anos quando explodiu a Supernova de Cassiopéia, de 1572, e que talvez fosse essa a estrela brilhando “a oeste do polo” nas palavras da Hamlet. Em todo caso, essa supernova foi observada por Tycho Brahe, o maior astrônomo da época, na Dinamarca (a supernova ainda hoje é chamada “estrela de Tycho”). 

Brahe morava pertinho do castelo  de Elsinor (local da história de Hamlet). O astrônomo norte-americano Peter Usher vê em Hamlet uma alegoria entre as duas visões cosmológicas do universo, com a vitória final da teoria copernicana.  E observa que dois parentes próximos de Tycho Brahe chamavam-se “Rosencrans” e “Guildensteren”, dois personagens cruciais no desfecho da peça.

Clássico é um autor que disse tanta coisa que parece ter dito dez vezes mais.  Sempre há pessoas dissecando seus textos em busca de idéias marxistas ou ecológicas, em busca de segredos sexuais ou profecias apocalípticas. Em Hamlet o príncipe diz que poderia se imaginar “o rei do espaço infinito”, e isso dá uma lente moderna ao olhar que ele ergue para as estrelas. 

O Bardo dá um passo adiante de Camões, que em Os Lusíadas (1572) já havia descrito com olhos mistos de poeta, crente e cientista a “máquina do mundo”, ainda geocêntrica, um sistema de estrelas que, como a cultura Renascentista que o produziu, era um edifício religioso que foi implodido aos poucos pelo edifício científico que cresceu dentro dele.