terça-feira, 29 de abril de 2014

3486) Zumbis vs Pensadores (30.4.2014)



Nós éramos pálidos, cinéfilos, apolíticos, neuróticos e noturnos; era como se estivéssemos implorando para sermos chamados “os zumbis”. E eles eram sobranceiros, empedernidos, profundos, enciclopédicos e sonhadores, e não é de admirar que a gente o chamasse “os pensadores”.  E, como todo mundo na turma sabe, quem deu esse nome fui eu.

Na verdade, éramos as editorias dos dois jornais de Altavista (PB), o Diário Popular, reduto zumbi, e a Gazeta da Manhã, quilombo dos Pensadores.  O Diário defendia o simbolismo, o livre comércio, a livre iniciativa estética amparada pela asa pública. A Gazeta pugnava por liberdade de associação, imunidades sindicais, o regionalismo, o cooperativismo, e alguns estilos de canção popular.  A cidade tinha um cinema, e a 2a.feira era a Sessão Cult: o ingresso era mais caro e o filme mais problemático. Ambos os jornais tinham que ver o filme e já na terça-feira publicar uma crítica consagradora ou impiedosa.

Claro que éramos amigos-e-inimigos. A cidade era grande, mas os jornais eram na mesma rua, com um botequim no meio do caminho.  Bebíamos juntos, conversávamos, travávamos polêmicas políticas ou por causa dos atributos de alguma atriz estrangeira que nunca ouviu falar em nós e que se nos visse chamaria a polícia e a carrocinha.  Nunca uma frase foi travada entre nós-todos que não fosse uma cuidadosa, sopesada, dissecada, bem avaliada equação capaz de duplos e triplos sentidos e de triplos e quádruplos mortais. 

Um diálogo que ainda hoje, tanto tempo depois, ainda é contado entre risadas foi aquele dia em que bebíamos (quatro, divididos em três e um) Serra Limpa com ribaçã e entrou no bar o restante dos dois grupos, encerrando um expediente intenso, após a sessão do filme, todos doidos pra relaxar.  Houve então, numa mesa, o seguinte diálogo.

A: A melhor cena do filme, todo mundo, OK?  A minha é a da tempestade.  B: Bom, eu fico com aquela cena onde ela recupera a memória, e é tudo na rua, som ambiente, câmara parada, e ela faz só com os olhos.  C: Eu gostei da cena da cama, embora o melhor fosse o som, claro, mas ele achou superfícies refletoras em tudo que tinha no quarto.  D: Eu posso indicar duas?  Não? É, já sei como é, tudo ter que ser de acordo com o Estatuto, com o olho do juiz em cima... Ah, fico com a cena daquele bicho, aquela coisa que eu não sei o nome, matando o passarinho. Me senti mal até.  Muito bem fotografada.  E: A da passagem do tempo, todo um verão.  F: A da perseguição do menino pelo mercado da China, pelas vielas da Índia, pelo sol da Palestina, pelo rumo da caatinga, pelo infinito do sevagram.


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